Fábulas italianas: varda que te vedo

 

Wilson Valentim Biasotto*

4.06.99

 

Esta é a terceira de uma série de fábulas que anunciei contar. Como as demais, baseio-me em versão relatada por minha mãe, Maria Secagno Biasotto, e que tive o cuidado de gravar em cassete. A expressão “varda que te vedo” significa “olha que te vejo”.

Disfarçado em moço, muito bonito, o diabo foi à casa de um casal que possuía três filhas. Pediu uma delas em casamento e teve o seu desejo satisfeito, foi-lhe concedida a mão da filha mais velha.

Realizado o enlace e celebrada as bodas, a moça acompanhou o marido para a sua morada. Era um palácio enorme que logo foi sendo apresentado para a esposa. Deslumbrada, a moça foi conhecendo todos os encantos da nova morada, cada ponto mais bonito que o outro. Mas, num determinado momento, o moço parou diante de um aposento e disse para a esposa que aquele local era o único do palácio onde ela jamais poderia olhar, sequer poderia abrir a porta.

No outro dia, bem cedo, o moço se despediu dizendo que ia trabalhar e que voltaria tarde. Colocou-lhe uma flor nos cabelos e se foi.

Ah! Maldita curiosidade! A moça não conseguia pensar em outra coisa que não fosse abrir aquela porta proibida. Fazia uma coisa, admirava outra, tinha todo o palácio para ver e conhecer melhor, mas a sua idéia fixa era conhecer o que havia dentro do aposento proibido.

Mal passara a hora do almoço, não agüentou, foi abrir a porta. Era o inferno, uma fornalha quente onde as almas imploravam misericórdia. Fechou aquela porta apavorada e somente se deu conta da hora quando o marido estava chegando. Tentou recompor-se mas não adiantou. A flor murcha nos cabelos denunciara a desobediência. O marido, implacável, jogou-a para o inferno.

Passado uns dias o diabo voltou à casa do sogro. Disse que a esposa tivera um mal-estar e que ele gostaria de levar uma das irmãs para ajudá-la nas tarefas do lar.

Lá se foi outra filha. E o diabo procedeu da mesma forma que fizera com a outra; mostrou-lhe o palácio, falou do aposento proibido e arrumou uma desculpa para não dizer onde estava a esposa. Da mesma forma, no outro dia, bem cedo, saiu colocando uma flor nos cabelos da cunhada.

Ao voltar, a mesma história. A moça abrira a porta, vira o inferno e, inclusive, a própria irmã lá dentro. Também quando o marido chegou tentou se recompor, mas a flor a denunciava. Foi atirada ao inferno.

E o diabo, matreiro, voltou à casa do sogro. Argumentou que as suas duas filhas estavam passando mal e que precisava levar a outra para ajudá-las naquele momento de doença. O pai aquiesceu e lá se foi a filha mais nova.

Chegando ao palácio tudo se repetiu como houvera sido com as outras duas irmãs e, no outro dia, bem cedo, o moço colocou uma flor nos cabelos da moça e se foi para o trabalho.

A moça, da mesma forma que as irmãs, não se agüentou de curiosidade, abriu a porta proibida, viu o inferno e lá as suas duas pobres irmãs, mas, para a sua sorte, havia retirado a flor dos cabelos e colocado num copo com água, somente recolocando-a quando o moço estava chegando.

Percebendo a flor intata, o diabo perguntou apenas por perguntar se ela havia aberto a porta. A moça, evidentemente, disse que não e o diabo ficou convencido de que, finalmente, encontrara alguém em quem pudesse confiar.

Passados uns dias, a moça, muito esperta, retirou do inferno uma das irmãs. Fez uma caixa bem feita e colocou-a dentro e combinou que quando o diabo tentasse abaixar a caixa ela deveria dizer “varda que te vedo”. Quando o moço-diabo, no outro dia cedo, se despediu para sair para o trabalho, com muito jeito, pediu-lhe que levasse para os pais aquele pacote com roupas e advertiu-lhe: não deveria se deter por nenhum motivo, muito menos tentar abrir o pacote. E, mais, não adiantaria nem tentar abaixar a caixa, pois ela tinha um poder muito grande: enxergava longe.

Pacote nas costas o diabo seguiu o seu caminho. Com o tempo a caixa lhe parecia mais pesada e isto, misturado à sua curiosidade, fez com que tentasse várias vezes colocá-la no chão para ver o que tinha dentro.

Percebendo a manobra, a moça que estava dentro da caixa, fez voz procurando insinuar que estava longe e disse: “varda que te vedo”. O diabo reergueu a caixa e seguiu viagem. Mais adiante, nova tentativa e, outra vez a moça, de dentro da caixa alertou: “varda que te vedo”.

Quando pensava estar longe o suficiente para não ser visto o diabo tentava descer a caixa que carregava sobre os ombros, mas a voz lhe repreendia: “varda que te vedo”. E assim foi, até chegar à casa onde depositou a encomenda e se foi para o seu trabalho.

Passados uns dias, a moça retirou a outra irmã do inferno, colocou-a numa caixa bem fechada e pediu para que  o moço levasse para a casa dos pais. Da mesma forma como acontecera com a encomenda anterior, quando o diabo ia baixar a caixa para ver o que havia dentro, a moça fazia uma voz como que estivesse bem longe e dizia “varda que te vedo”. O diabo tentou, tentou, mas, como da outra feita, deixou a encomenda sem que pudesse ver o que era.

Paciente, para evitar desconfiança, a moça esperou mais alguns dias e na hora de ir dormir disse ao diabo: “Olha, amanhã você deve levar uma outra caixa de roupas para os meus pais, eu vou dormir até mais tarde e nem vou me despedir de você, mas lembre-se, eu enxergo longe, nem tente ver o que tem na caixa, pois da mesma forma que eu não abro a porta proibida você também há de me obedecer”.

E tudo se repetiu como das outras vezes, a cada tentativa do diabo, de descer a caixa, a moça ameaçava: “varda que te vedo, vaarda que te vedo, vaarda que te vedo” . E, também desta feita, o diabo deixou a caixa sem saber o que que levara.

Ao abrirem a terceira caixa, e reaverem também a filha mais nova, a alegria voltou a reinar naquela casa, e o diabo, não sei dizer quantos socos se deu na própria cabeça, quando percebeu que fora enganado.

Fico pensando se nós, cidadãos, fossemos todos espertos como a filha mais nova daquele casal e, a cada ato de nossos governantes, estivéssemos prontos a dizer: “varda que te vedo”.

 

                        *O autor é doutor em História Social 

                            pela USP e diretor do CEUD/UFMS

 

A reprodução do texto é permitida desde que citada a fonte.

Voltar

Livros

As Fabulosas Histórias de Bepi Bipolar

Ser convidada para escrever o prefácio deste livro de literatura
foi realmente muito gratificante e a deferência a mim concedida
pelo amigo, historiador e escritor Wilson Valentin Biasotto foi
recebida com surpresa e alegria

Abrir arquivo

2010: O ANO QUE NÃO ACABOU PARA DOURADOS

A obra ora apresentada é uma coletânea de crônicas publicadas em diversos meios de comunicação no ano de 2010. Falam, sempre com elegância e fluidez, de nossas vidas, de acontecimentos e de possíveis eventos em nosso país, especialmente em nosso município.

Abrir arquivo

MEDIEVO PORTUGUES: O REI COMO FONTE DE JUSTIÇA NAS CRÔNICAS DE FERNÃO LOPES

Nossa preocupação, nesse trabalho, foi a de estudar o comportamento dos reis, no que concerne à aplicação da Justiça, baseados nas crônicas de Fernão Lopes.

Abrir arquivo

Crônicas: Educação, Cultura e Sociedade

O livro ora apresentado é um apanhado de 104 crônicas, algumas de 1978 e a maioria escrita a partir de 1995 até a presente data. O tema Educação compõe-se de 56 crônicas, outras 16 são relatos descrevendo fábulas ou estórias oriundas da cultura italiana, e os emas Cultura e Sociedade compreendem, cada um, 16 crônicas.

Abrir arquivo

Crônicas: globalização, neoliberalismo e política

Esta obra foi editada em 2011 pela Editora da UFGD e reune 99 crônicas escritas principalmente nos últimos quinze anos, versando sobre a globalização, o neoliberalismo e política

Abrir arquivo

[2009] EDIFICANDO A NOSSA CIDADE EDUCADORA

Esse trabalho tem três objetivos principais, cada qual contemplado em uma das três partes do livro, como se verá adiante. O primeiro é oferecer ao leitor algumas reflexões sobre temas que ocupam o nosso dia-a-dia; o segundo é divulgar os vinte princípios das Cidades Educadoras e, finalmente o terceiro, é tornar público o projeto que nos orienta na transformação de Dourados em uma Cidade Educadora e mostrar os primeiros passos para a operacionalização desse projeto.

Abrir arquivo

[1998] Até aqui o Laquicho vai bem: os causos de Liberato Leite de Farias

Ao refletir sobre a importância do contador de causos/narrador para a preservação da cultura, percebe-se que cada vez menos pessoas sabem como contar/narrar, com a devida competência, as experiências do cotidiano. Por quê? Para Walter Benjamin, as ações motivadoras das experiências humanas são as mais baixas e aterradoras possíveis em tempos de barbárie; as nossas experiências acabam parecendo pequenas ou insignificantes diante da miséria e da fragmentação humana, numa constatação que extrapola os espaços nacionais.

Abrir arquivo

[1991] O MOVIMENTO REIVINDICATÓRIO DO MAGISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL: 1978 - 1988

Momentos de grandes mobilizações têm teito do professorado de Mato do Sul a vanguarda do movimento sindicalista deste Estado. Este fato motivou a realização deste trabalho, que teve como proposta inicial analisar criticamente o movimento reivindicatóno do magistério de Mato Grosso do Sul, na perspectiva de revelar-lhe, tanto quanto possível, o perlil de luta, ao longo de sua palpitante trajetória em busca de melhorias salariais, estabilidade empregatícia e melhoria da qualidade do ensino.

Abrir arquivo

Contato

Informações de Contato

biasotto@biasotto.com.br