Nos limites da tolerância

 

 Wilson Valentim Biasotto*

 

Imaginei-me cansado. Era domingo e me recusara até mesmo a me levantar na hora combinada para o futebol. Após o almoço deitei-me novamente para descansar. Algo estava errado. Seria cansaço? Logo comigo que sempre me vangloriei de não sentir cansaço e preguiça? Não dormia, entretanto, a notícia recebida pela manhã deixara-me profundamente triste, um nó apertava-me o peito, mas o corpo queria cama. 

De repente a campainha. Pulei rápido. Quem seria? Algo anormal com certeza, a hora não era apropriada para visitas. Abri o portão e deparei-me com uma criaturinha frágil que estendeu-me uma garrafa plástica de coca-cola e foi logo dizendo que queria comida e água. Sorri, tomei a garrafa e entrei.

Abri a geladeira, tomei uma garrafa de coca-cola bem geladinha e entreguei para o meu inoportuno visitante. O indinho tomou-a nos braços, apertou-a no peito, levantou o seu rostinho sujo, sorriu-me e se foi.

Foi contente, saltitando. Eu, se não tinha motivos para alegrar-me com minha boa ação, afinal uma garrafa de coca é muito pouco, talvez pudesse contentar-me com a minha tolerância, afinal não é qualquer ser cansado que levanta de merecido descanso, dá de cara com um pedinte e ainda seja capaz de sorrir; mas entrei triste, o peito apertado, uma vontade imensa de chorar. Comparei a minha tolerância com a tolerância dos assassinos de Dorcelina.

Soubera do assassinato pela manhã. Há tempos não me sentia tão indignado. Nem no que me tange individualmente, nem pelo que me toca como homem de partido. Individualmente tenho me debatido com as picuinhas cotidianas e nem sequer aquela nota da associação médica de Campo Grande contrária ao nosso curso de Medicina me tiraram do sério. Como homem de partido passei os meus últimos vinte e cinco anos neste estado, perdendo eleições, sem nunca ter atirado um ovo em ninguém. Passei esses anos todos sendo administrado por governantes de direita, alguns de reputação duvidosa e nunca atirei-lhes uma pedra sequer. Em respeito às instituições democráticas, em respeito à soberana vontade do povo sempre resignei-me.

Agora, neste momento em que um companheiro de meu partido assume o governo do estado e que duas, duas mulheres, também do meu partido, assumem duas modestas prefeituras, não foi suficiente execrá-los pela imprensa, não foi suficiente o boicote às verbas federais, não foi suficiente a ação judicial. Foi preciso matar. Extirpar um corpo honesto e digno, do meio político.

Agora, justo agora que este estado toma um rumo, depois de vinte anos de bandalheiras. Agora, logo agora que boa parte da população de Campo Grande e Dourados vislumbra a possibilidade de colocar em suas respectivas prefeituras homens da estatura moral e ética de Dorcelina, um assassinato dessa natureza!

Bem Hur e Tetila que se cuidem. Nem todos têm a tolerância de sorrir para o indinho de cara suja que nos acorda da sesta.  

*O autor é doutor em História Social pela USP

e diretor do Câmpus de Dourados da UFMS

A reprodução do texto é permitida desde que citada a fonte.

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