Eleições 2008: a sedução das imagens.

 

Essa crônica dedico-a, de modo especial a você, caro amigo, que sentiu falta de meus escritos analíticos sobre as eleições desse ano. Faço ouvido mouco àqueles, não menos amigos, que me aconselharam a sossegar o meu irrequieto espírito. Não foram poucos os que afirmaram não valer a pena tais desideratos. Além do mais, inferem, por me quererem bem, evidente, que ter bom siso e ficar calado é santo medicamento para que os ventos soprem amenamente sobre a luz tênue dessa pequenina vela de nossa vida. Água-benta, caldo de galinha e silêncio podem não fazer bem algum, mas mal é que não fazem. Ou, como diria minha falecida e finada avó, de saudosa memória: o que não tem remédio remediado está. Isso, afora os que contestam as minhas versões. Desaforados! Provo por uma fração de segundo a prepotência de ser historiador, mas dessa água não bebo. Engulo logo essa besteira. Vem-me à memória um seminário na USP nos idos de 1975. Eu, um jovem professor, experimentando conceitos mais elevados nos estudos, após engolir várias vezes em seco, tive a coragem de abrir a minha boca para uma pergunta que se me aparentava como o início de um grande debate: e a história como ciência, então, nesse contexto, como fica professor? Nenhum arruído, nenhum debate. Apenas uma assertiva incisiva: “a história é uma arte”. Ainda não tinha lido Kant, meus colegas talvez, com certeza o saudoso mestre Eurípedes Simões de Paula o conhecia profundamente. Calei-me. Nem me veio à mente que Cícero já ensinara que a história é a mestra da vida. E, ora, se é mestra tem sabedoria, se tem sabedoria é ciência. Nem isso! Marx saiu-me da boca, mas não para os lábios, não para contestar o velho e querido mestre, engoli Marx garganta abaixo para vomitá-lo mais tarde, em minhas aulas, quando o amadurecimento acadêmico me permitiu perceber que não existe ciência neutra mesmo porque neutros não são também os advogados, cientistas, jornalistas, juizes, professores, políticos, padres e pastores. Por que a história não haveria de ser ciência? Tem método! Mas isso tudo somente para lhe dizer que mesmo sendo historiador não quer dizer que eu tenha absoluta razão em tudo o que já disse e o que não disse, mas penso, sobre as eleições de 2008 em nosso município.

Não radicalizo. Não, José Régio, o meu destino nem é desflorar florestas virgens e nem navegar por mares nunca dantes navegados. Há muito aprendi a ouvir. Sei com Ítalo Calvino que quem comanda a narrativa são os ouvidos. O meu destino é ser irreverente. Que fazer? Se um dia deixar de me indignar com as injustiças, os mal-feitos, as intrigas, as traições, então o vento poderá soprar forte e apagar a chama da vela de minha vida, pois ela já não terá sentido algum.

Não aspiro ser um Policarpo Quaresma, embora o personagem de Lima Barreto, convenhamos, seja admirável. As suas patriotadas, no entanto, andam há tempos fora de moda. Prefiro importar Don Quixote, consciente de que haverei de continuar combatendo moinhos de vento. Ou acha você que vou acabar com a compra desavergonhada de votos, com as insidias, que vou proibir que se publiquem pesquisas falsas, vou acabar com a infidelidade partidária, vou corrigir áulicos de todos matizes inclusive os que distorcendo a verdade, mentindo e caluniando insuflam jovens a manifestações? Acha você que vou impedir que se diplomem aqueles que mesmo tendo sido pegos com a mão na botija acabaram inocentados? Sempre haverá falta de provas para alguns e provas em demasia para outros.

Colocando-se viventes e inanimados, há muito aprendi que o melhor amigo do homem não é o cão. É o livro. E aí a minha justificativa de interromper as crônicas que escrevia sobre as eleições. Pus-me a ler. Não, ler seria dizer pouco. Pus-me a engolir livros. Primeiro, você nem vai me acreditar, (re)li o Pequeno Príncipe de Exupéry. Gosto muito do diálogo que o Pequeno trava com a raposa e esta lhe ensina que nos tornamos responsáveis por quem cativamos. Daí voltar a escrever a pedido seu. Daí a minha consciência da responsabilidade dos políticos ao cativarem os eleitores. Depois me caiu às mãos um livro chamado Ilusões, do mesmo autor de Fernão Capelo Gaivota, Richard Bach. Não gostei. Prefiro Fernão Capelo. A sua história lembra-me a de São Jerônimo que jamais li mas ouvi contar que depois de duzentos anos vivendo apenas e tão somente do ar que respirava virou luz. Após essas duas leituras firmei o propósito de ler e (re)ler nossos escritores brasileiros. Estabeleci meta, da mesma forma que se faz com a vida ou com a administração pública. Uma coleção de dezoito volumes. De quinze já dei conta. Ah! Mas se lhe conto isso não é para me gabar, é com medido recato, os nossos vícios não temos que ficar espalhando-os por aí. Tenho motivo justo para dizer-lhe dessas leituras. Encontrei no meio delas muitos, muitos tesouros. Aí fiquei pensando sobre a precisão de pás e picaretas para se descobrir riquezas. Tão fácil é abrir um livro. Mas, foi um desses tesouros, não o mais precioso, Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa, um texto chamado Espelho, que me mexeu a massa cinzenta da cabeça e não é que comecei a juntar todos os espelhos que pude e coloquei-os a jogarem entre si. E comigo. E com toda a nossa cidade. 

Espelhos. Espelhos retilíneos, côncavos, convexos, poligonais, poliédricos. Espelhos. Espelhos no piso, no teto, à direita, à esquerda, no centro, no canto. Espelhos. Eis o segredo: somente colocando-se os espelhos jogando entre si é que se conhece o real. Experimente. Deite-se. Levante-se. Coloque-se abaixo. Coloque-se bem acima dos espelhos. Você se surpreenderá. Terá se visto magro, torto, doente, bonito, corcunda, gordo, alegre, triste, bom, feio saudável, mau. Experimente com a nossa cidade. Percebeu? Não é mesmo nada fácil. Mas não desista que lhe dou uma pista. De aos espelhos formas humanas, ao invés do retilíneo imagine fulano, no lugar do côncavo coloque beltrano, no lugar do convexo ponha sicrano e vá imaginando essas pessoas-espelho no mesmo jogo dos espelhos verdadeiros e você então terá a chave do segredo para ver a nossa cidade como é e como será. Viu? É como naqueles livros de imagens tridimensionais em que no início você somente vê uma figura qualquer e conforme o foco e o ângulo de repente você enxerga uma bela ou apavorante surpresa. Saudoso dessa memória que me ocorreu para explicar-lhe o jogo dos espelhos busco na estante: “3 D: a sedução da imagem”, de Steve Perry. Meu filho o ganhou dos padrinhos em 1995, com a dedicatória: “Querido Etienne, esperamos que consiga ver sempre em sua vida algo mais de belo que a própria vida. Clayme e Ramiro”. Abro-o ao acaso. Página 11. Olho para uma figura ovalada, colorida, repleta de pequenas folhas, estrelas e tantas outras formas não identificáveis. Olho que olho. Trago a figura à ponta do nariz, afasto-a, insisto, e, depois de muito tentar sem jamais desistir surge-me resplandecente, num nicho espelhado, a Virgem de Guadalupe. Melhor sorte tive no livro que no jogo de espelhos. 

Nada é concreto. Colocam-se apenas os espelhos a jogarem entre si. E comigo. E consigo. E com a nossa cidade. Minha filha caçula segredou-me dia desses que, quando pequenininha, pensava que eu não tivesse boca. Talvez pela colocação dos seus espelhos o meu vasto bigode não lhe permitia ver-me a boca. Mais grandinha percebeu o óbvio, a boca estava embaixo do bigode. Essa lembrança faz com que se choquem os meus neurônios, esquenta-me novamente a massa encefálica e me vem outra idéia esdrúxula. Agora que minha filha percebe bigode e boca, se eu tirar o bigode, já amarelado pelo tempo, não será possível que me veja então outra dimensão, que enxergue abaixo de minha boca todas as palavras que tenho presas na garganta?

Suas críticas são vem vindas: biasotto@biasotto.com.br

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