Uma crônica tosca para esse Natal

Na crônica do último sábado contei-lhes alguns episódios do dia-a-dia de Zé Kubum, um trabalhador rural que vivia com a esposa em uma tranquila fazendola de gado. Nem mesmo as frequentes visitas do patrão abalavam o sossego do lugar, embora tivesse que cumprir algumas ordens além da rotina diária, como ir pegar e arrear um cavalo, que às vezes nem era usado. Apesar dessas pequenas inconveniências Zé Kubum considerava-se um sujeito feliz e acreditava que vida dura era a do patrão, pois não tinha sossego, morava na cidade e tinha que passar dia e noite preocupado com as coisas.

Zé e a esposa tinham, é verdade, o sol escaldante a lhes fazer reluzir a pele escura, não à toa chamava a esposa por Morena, mas ao contrário do patrão, coitado, tinha sombra, água fresca, o vento refrescante das tardes, os pássaros seresteiros pela manhã e o regato ao fundo, oferecendo água à boiada, lambaris e piaus, além de banho restaurador de energias, na pedreira onde uma cachoeirinha com menos de meio metro de queda d’água fazia o barulho de uma fonte. 

Os dias se arrastavam lentamente, sem pressa alguma. O casal levantava-se com o raiar do sol e ia dormir quase tão cedo quanto as galinhas que mal esperavam o sol esconder-se. Vida saudável, a horta oferecia abundância de legumes e verduras sem agrotóxico, os ovos tinham a gema avermelhada, os frangos e os porcos eram criados sem hormônios e as goiabas e mangas não eram pulverizadas com nenhum tipo de veneno. Às vezes à noitinha recebiam a visita da chuva que entoava no telhado uma cantiga induzindo ao amor.

Não de estranhar que a mulher tivesse embuchado, no dizer do Zé, e gerado um filho já perto de completar um mês de vida. Zé deveria registra-lo naquele dia. Cavalo arreado à porta, Zé Kubum pegara os documentos, o papel onde a mulher escrevera o dia do nascimento, e coçando a cabeça, olhava a criança como quem diz “eita, como é que pode ser branquinho desse jeito. Só por Deus mesmo”.

O cavalo ia à passo, não precisava pressa, a cidade não era tão longe e, além do mais, Zé kubum não judiava do cavalo. Vez ou outra, Zé Kubum, como de costume, quando tinha alguma preocupação, coçava a cabeça e ficava imaginando aquela criança branquinha, de olho claro. De repente tomou uma decisão. Não colocaria Kubum no nome do filho, seria Juvelino Silva, o sobrenome de Mariana, a Morena. Kubum lá é nome de gente? De onde será que me arrumaram isso: José kubum, ora, vai ser Juvelino Silva, sobrenome da mãe.

Criança registrada, Zé foi para o bolicho, não que a cidade não tivesse um supermercado, é que entrar nesses ambientes não o deixava à vontade. No bolicho podia conversar com o dono e até pendurar a conta se fosse preciso, mas não era o caso. Comprou mamadeira, chupeta e, ao lembrar-se de que o Natal estava próximo pediu um guaraná de dois litros. Mas não é que o diabo, ou a perturbação da mente, criam situações novas e maléficas. Zé Kubum bateu o olho em uma garrafa de vinho e mandou abri-la. Tomou um trago que desceu ardendo, mas sem querer demonstrar que era abstêmio, cravou: “esse matou a véia”.

Matula no bornal, Zé Kubum, empreendeu a volta para casa. De vez em quando mandava um trago, e sugava o sol, e deixava o vento soprar sobre o suor, refrescando o seu rosto avermelhado pelo sol ou pelo álcool. A camisa encharcando, os olhos embasando, o corpo balançando de um lado para outro e o cavalo, que sabia o caminho de volta, seguiu devagar levando aquele companheiro de tantas jornadas, agora sem muito equilíbrio.

À porta de casa Zé Kubum grudou no arreio, desceu meio desajeitado e sentiu-se diferente, zonzo, bêbado, para ser franco. Fixou os olhos no batente da porta, firmou o pé para não cambalear e conseguiu entrar na casa. No quarto o menino dormia. Zé amparou-se no berço, tentou dar-lhe a chupeta, mas ela caiu, então ficou olhando para aquela criança loirinha que parecia sorrir-lhe e pensou em voz alta: “parece o menino Jesus”. Então arrependeu-se por não ter registro o menino como sendo também de Jesus, além de ser da Silva. Juvelino de Jesus Silva.

Sentou-se na cama, tentou tirar a botina, mas estando demasiadamente apertada resolveu jogar-se sobre o colchão com roupa botina e a sua zonzeira, não antes de gritar bem alto para a mulher que devia estar lá fora, no quintal: Feliz Natal Morena!

Publicado em O Progresso 22/12/2018, The Book Depository

A reprodução do texto é permitida desde que citada a fonte.

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