Se todo o brasileiro fosse um craque (2)

Com esse título escrevi uma crônica em 2 de junho de 1978, vésperas da Copa do Mundo realizada na Argentina, quando o Brasil sagrou-se campeão moral porque terminou invicto e o time da casa classificou-se por saldo de gols ao bater o Peru por 6 a 0. Uma vergonha, que alimentava outra, a ditadura militar de Jorge Videla. Não falei sobre a Copa propriamente, mas sobre outra vergonha: a disparidade salarial entre craques de futebol e o trabalhador comum. Vejamos: 

“Originário na Inglaterra o futebol ganhou fronteiras tornando-se o esporte preferido por milhões de habitantes da Terra. Sem dúvida é um esporte sadio e muito bonito que merece inclusive apoio. Em certos países, entretanto, como é o caso do Brasil, existe um certo exagero devido talvez à excessiva profissionalização de nossos atletas.

O ordenado de nossos jogadores, como é do conhecimento de todos, não é nada mal comparando-se com os de outros profissionais. Tomemos como exemplo um caso, possivelmente o mais exorbitante que existe, o de Zico. Para ganhar o que Zico fatura mensalmente é necessário que um executivo trabalhe seis meses; um professor secundário, quase quatro anos e o trabalhador que recebe salário mínimo quase quinze anos.

Mas não fica apenas nisso a exorbitância da coisa. Ainda ontem (01/06/1978), data em que se iniciaram oficialmente as disputas da Copa do Mundo, as emissoras de rádio noticiaram que uma comissão de jogadores da seleção brasileira reivindicava em nome dos jogadores, um “bicho” de nada mais nada menos que um milhão de cruzeiros, caso o Brasil sagre-se campeão.

Fatos dessa natureza chegam a se tornar revoltantes porque enquanto essas estrelas de nosso futebol enxergam apenas cifrões, nós torcedores, incluídos os que ganham salário mínimo, corremos o risco de sermos considerados antipatriotas se não torcermos pela seleção canarinho.

Evidentemente a culpa não cabe somente aos jogadores, estes aliás, tem uma certa razão. Uma vez que o bolo é grande eles pretendem tirar boas fatias. Com quem dividir a culpa? Com o povo que optou por outras profissões diferentes do futebol?

Enquanto isso a propaganda vai correndo solta. “Todo o brasileiro é um técnico” dizem por aí, E nós ficamos intimamente satisfeitos sem percebermos que na verdade estamos sendo enganados porque todo brasileiro deveria ser um craque, isto sim. Bem, mas nem todos sabem dominar a bola com perfeição e então está possibilidade não existe, mas bem que se poderia pensar em empregar as gordas rendas da Loteria Esportiva em quadras de esportes e campos de futebol modestos, mas que propiciassem o “esporte para todos”.

De qualquer forma haveremos todos de torcer por mais uma vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo”.

Ao (re)editar essa crônica acima, quarenta anos depois, verifico exorbitâncias ainda maiores. Os Ronaldos e Neymar que o digam. Hoje, o craque menos badalado de nossa seleção ganha muito mais do que ganhou Zico. E que dizer sobre o dedinho de Neymar que movimentou milhões e comoveu os torcedores mais fanáticos?

Enquanto que nos países desenvolvidos, com elevado índice de desenvolvimento humano (IDH), como Noruega, Austrália, Suíça, Dinamarca e Países Baixos, as diferenças salariais entre as diversas categorias de trabalhadores diminuem, no Brasil o abismo aumenta. Se o salário de Zico em 1978 era igual ao de quinze anos de um trabalhador com salário mínimo, hoje, o salário de apenas um dia de Neymar (36,8 milhões de euros anuais, cerca de 408 mil reais por dia) equivaleria a quatro meses do salário de um juiz (com os penduricalhos), doze meses o salário máximo permitido pela Constituição, 13 anos do piso salarial de um professor e 35 anos de trabalhador com salário mínimo. E como em nossa região a agropecuária é forte, comparemos também o salário diário de nosso craque com a saca de soja e a arroba do boi: respectivamente, 6276 sacas, produzidas em torno de 125 hectares e 3100 arrobas, ou seja, 174 bois bem gordos.

Mesmo nos gramados a disparidade salarial é enorme, ser um Neymar é quase sempre apenas um sonho. De qualquer forma, creiam-me, vou torcer pela nossa seleção, pela recuperação do dedinho do Neymar mesmo porque não sou contra os altos salários, mas lamento as desigualdades e reivindico do governo um país mais justo e mais igual.

Publicada em “O Progresso” em 10/03/2018

A reprodução do texto é permitida desde que citada a fonte.

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