Manga, leite e outras mistificações

 

Meu amigo Hermínio Galeano brinca em relação a uma crônica na qual escrevi que nos tempos coloniais os escravos foram convencidos de que manga com leite fazia mal. Aos senhores, sobravam então as mangas, escassas àquela época. Mas os mistificadores acabaram também mistificados e até recentemente acreditava-se que manga e leite era veneno. Tendo entendido a mensagem, o Hermínio pergunta-me se manga com leite continua fazendo mal.

No sentido figurado, sim, a elite dominante é a grande produtora de mistificações, desde a manga com leite até conceitos mais complexos. Por sua vez, com o tempo, a classe trabalhadora vai desmistificando essas engenhosas enganações, e então reage a elas, às vezes de forma violenta, uma vez que não possui os mecanismos da classe dominante para impor suas ideias.

Na Idade Média criou-se o imaginário de que a nobreza, clero e servos da gleba, existiam por vontade Divina, os excluídos seriam recompensados em outra vida. Para tudo havia justificativa, os pobres existiam não apenas como portadores da maldição do espécie humana, mas também para que os ricos pudessem praticar a virtude da generosidade.

Os pobres tiveram reações, tardias é verdade, devido estarem mistificados, mas reagiram promovendo as revoltas campesinas, depois urbanas e que foram se avolumando até culminarem com a Revolução Francesa, que pôs fim definitivamente à servidão medieval.

Com a Revolução Industrial veio a exaltação ao trabalho. O trabalho dignifica, enobrece, só não trabalha quem não quer, enfim, a classe trabalhadora de tal forma foi mistificada pelas elites dominantes que sente a consciência pesada se por acaso lhe falta trabalho.

Como os pobres medievais, os trabalhadores atuais também reagem, agora com manifestações de rua. Essas manifestações estão ancoradas em um processo mais profundo, o do inconsciente coletivo, que faz com que o povo bote para fora a indignação com tanta desigualdade e opressão. Mas esse extravasamento não tem um comando, e assim, como as primeiras revoltas camponesas, as manifestações são difusas. O transporte coletivo, a falta de teto ou de terra, a liberação da maconha, a questão do aborto, da homo afetividade, a falta de recursos para saúde e educação, a realização da Copa do Mundo em nosso país são apenas alguns dentes de uma enorme engrenagem que oprime de forma perversa a sociedade subjugada pela elite. Esse extravasamento, portanto, não chega ao âmago da questão, os manifestantes não percebem que a perversidade não está nos dentes da engrenagem, mas no sistema como um todo.

Mudar um presidente em um regime democrático é relativamente fácil. Difícil é mudar o sistema. No Brasil, a busca da eliminação das desigualdades por via democrática está em andamento. Começou com Lula e continua com Dilma. Mas não tem como fazer milagres. Os governos podem muito, mas não podem tudo (Eis-me citando Sarney). Eliminar a pobreza significa distribuir melhor a riqueza, o que significa chocar-se com os interesses da elite, cuja ganância é sem limites e que, portanto, continuará insistindo em pregar que manga com leite faz mal.

Basta prestar atenção aos discursos dos candidatos de direita (também mistificados de tanto mistificar) e nos seus bordões:  redução de despesas públicas”, “controle de gastos previdenciários” “enxugar a máquina pública”, “crescimento mais equilibrado e sustentável”. Ora, esses bordões ainda fazem com que o eleitor menos atento pense que manga com leite faz mal. Na verdade, esses chavões significam mais privatizações, menos escolas fundamentais e universidades, menor valorização do funcionalismo, arrocho salarial, desaceleração dos programas sociais etc. Tudo isso para gerar desemprego e, por via de consequência, um exército de reserva pronto a ocupar por menores salários cargos que hoje estão dando ao povo brasileiro um bom nível de dignidade.

A verdade é que a elite econômica não quer abrir mão de privilégios, mas que fique atenta, pois as manifestações populares, ainda difusas, como já afirmei, podem ser aprofundadas. Dilma poderá ser afetada, mas um outro presidente, se insistir na quebra desse círculo virtuoso que estamos vivendo, poderá promover uma ruptura danosa ao nosso país, com repercussões imprevisíveis.  

A reprodução do texto é permitida desde que citada a fonte.

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Livros

As Fabulosas Histórias de Bepi Bipolar

Ser convidada para escrever o prefácio deste livro de literatura
foi realmente muito gratificante e a deferência a mim concedida
pelo amigo, historiador e escritor Wilson Valentin Biasotto foi
recebida com surpresa e alegria

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2010: O ANO QUE NÃO ACABOU PARA DOURADOS

A obra ora apresentada é uma coletânea de crônicas publicadas em diversos meios de comunicação no ano de 2010. Falam, sempre com elegância e fluidez, de nossas vidas, de acontecimentos e de possíveis eventos em nosso país, especialmente em nosso município.

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MEDIEVO PORTUGUES: O REI COMO FONTE DE JUSTIÇA NAS CRÔNICAS DE FERNÃO LOPES

Nossa preocupação, nesse trabalho, foi a de estudar o comportamento dos reis, no que concerne à aplicação da Justiça, baseados nas crônicas de Fernão Lopes.

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Crônicas: Educação, Cultura e Sociedade

O livro ora apresentado é um apanhado de 104 crônicas, algumas de 1978 e a maioria escrita a partir de 1995 até a presente data. O tema Educação compõe-se de 56 crônicas, outras 16 são relatos descrevendo fábulas ou estórias oriundas da cultura italiana, e os emas Cultura e Sociedade compreendem, cada um, 16 crônicas.

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Crônicas: globalização, neoliberalismo e política

Esta obra foi editada em 2011 pela Editora da UFGD e reune 99 crônicas escritas principalmente nos últimos quinze anos, versando sobre a globalização, o neoliberalismo e política

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[2009] EDIFICANDO A NOSSA CIDADE EDUCADORA

Esse trabalho tem três objetivos principais, cada qual contemplado em uma das três partes do livro, como se verá adiante. O primeiro é oferecer ao leitor algumas reflexões sobre temas que ocupam o nosso dia-a-dia; o segundo é divulgar os vinte princípios das Cidades Educadoras e, finalmente o terceiro, é tornar público o projeto que nos orienta na transformação de Dourados em uma Cidade Educadora e mostrar os primeiros passos para a operacionalização desse projeto.

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