Lembranças da morte de um pequeno deus: 30 anos sem Marçal

Novembro de 1983, mais um índio assassinado em Mato Grosso do Sul, um líder entre todos os líderes indígenas, conhecido por Marçal de Souza ou Marçal Guarani, embora o seu nome de batismo, segundo o rito de sua tribo, fosse Tupã’I, que significa pequeno deus. A morte de Marçal comoveu ao mundo todo. Jornais locais, nacionais e internacionais noticiaram o assassinato com grande destaque e mais de duzentas instituições de toda parte do planeta cobraram justiça. Centenas de atos públicos foram realizados, mas todo o clamor de Igrejas e das Instituições  laicas, dos antropólogos, familiares e daqueles que reconhecem as injustiças praticadas contra os índios foram em vão. Ninguém foi punido, ninguém preso. Um julgamento foi realizado em Ponta Porã, dez anos após a morte de Marçal e não obstante a grande mobilização organizada, o Tribunal do Juri inocentou os principais suspeitos. Muitos outros assassinatos sucederam-se, a exemplo dos caciques Veron em 2003, Nisio Gomes em 2011, enfim, 270 índios já foram assassinados em Mato Grosso do Sul. Nenhum desses assassinatos deve cair no esquecimento, mas a morte de Marçal foi a mais emblemática de todas elas, tanto pela sua estatura intelectual quanto pela sua convivência junto aos seus e os inúmeros pronunciamentos que fez em Universidades, Congressos Indígenas, na ONU e até para o papa João Paulo II em 1980, na cidade de Manaus, em nome e em defesa de todas as nações indígenas brasileiras.  Por isso a sua história deve ser lembrada e servir como paradigma aos índios de todo o Brasil, especialmente aos de Mato Grosso do Sul que, não obstante alguns avanços, ainda estão muito longe de serem compreendidos e de receberem um tratamento digno tanto dos órgãos públicos quanto da sociedade envolvente

Nesse artigo não tenho a pretensão de (re)escrer a história de luta de Tupã’I que culminou com a sua morte. Seria como chover no molhado, falar mais do mesmo. Procuro apenas e singelamente colocar em texto as minhas lembranças, sejam elas vividas, compartilhadas com colegas da Universidade e com indigenistas ou interiorizadas pelas leituras que fiz sobre o assunto. É como se eu dissesse, tal qual no final do poema de Gonçalves Dias, “I Juca Pirama”: “meninos eu vi”, e dessa forma contribuir para evitar o silêncio e o esquecimento.

Abro um parêntese para esclarecer que na minha juventude nunca tinha visto um índio, conhecia-os apenas pela história, aliás, história mal contada, e principalmente pelo poema acima citado, que sabia quase todo de cor e que me oferecia uma visão romantizada dos índios. Somente vi índios de verdade e conheci a verdade sobre os índios em 1972 quando participei do “Projeto Rondon” no município de Boca do Acre, Estado do Amazonas. Convivi inclusive com um deles, seu apelido era Damy, ele nos guiou durante sete dias por igarapés e pela floresta, até um cemitério indígena composto por centenas de urnas funerárias em forma de vasos no interior da mata. A vida dos índios da tribo de Damy nada tinha a ver com o romantismo de Gonçalves Dias, mas  de qualquer forma, os poemas, e a jornada com os índios amazônicos, delinearam em minha mente um elo de simpatia com esses povos oprimidos, talvez também porque eu, um oriundi,  descendente italiano, tenha tido a minha ancestralidade oprimida, nem tanto quanto os imigrantes japoneses e nem comparada aos sofrimentos dos negros  e índios, mas em menor escala também sofremos nas fazendas de café, a opressão de um capitalismo selvagem à moda tupiniquim.

Meu segundo contato com índios foi com Edna de Souza, filha de Marçal Tupã’I em 1974/75,, aluna do CEUD, hoje UFGD. A primeira aluna índia da história do Mato Grosso,(atual Mato Grosso do Sul), ao menos até onde vão os meus conhecimentos. Aluna aplicada, nunca me falou da luta de seu pai, talvez não porque não quisesse, mas provavelmente porque eu, professor inexperiente (tinha então 28 anos), não soubesse trazer para o debate a questão indígena. Estava mais preocupado com a dívida externa brasileira, tanto é que nesse ano de 1975 promovi um seminário na Universidade denominado “Divida Externa e Afluência do Capital Estrangeiro para o Brasil”, coisa muito mais subversiva àquela época do que falar em índios. De qualquer forma foi por ter conhecido Edna que passei a me interessar por conhecer os índios confinados na Reserva Francisco Horta e, mais tarde os confinados no Panambizinho. Assustava-me o estado de miserabilidade em que viviam.

Depois de uns tempos em Dourados, aprofundei um pouco mais os meus conhecimentos graças às atividades que meus colegas de Universidade exerciam junto aos índios, destacando-se àquela época Irene Nogueira Rasslan (que fez um belo trabalho de Extensão Universitária introduzindo alevinos no açude da Reserva), Marina Evaristo Wenceslau (cuja tese de doutorado reflete a situação dos Guarani) e Laerte Tetila (que depois de participar de vários movimentos em prol da causa indígena escreveu um livro sobre Marçal de Souza).

Mas foi no período entre 2001 a 2008, quando exerci cargos públicos de vereador e Secretário de Governo, que o meu contato com os índios tanto da Reserva Francisco Horta quanto do Panambizinho tornaram-se mais estreitos.

Longo foi o parêntese aberto, mas precisava esclarecer ao leitor esses dados para que as minhas lembranças possam ter credibilidade.

Marçal nasceu em 1920, ficou órfão quando tinha oito anos e juntamente com o seu irmão Ivo, foi criado na, ou sob a proteção da Missão Caiuás, entidade criada e mantida pelos Evangélicos de orientação presbiteriana para dar suporte médico, assistencial e evidentemente objetivando também a conversão dos índios. Em sua adolescência, passou por Campo Grande, Recife e Patrocínio em Minas Gerais, sempre recebendo ao lado do ensino formal uma orientação Cristã Evangélica, o que o transformou em pastor presbiteriano, militando nesse mister durante 30 anos, ao mesmo tempo em que exercia as atividades de enfermeiro, contratado pela FUNAI.

Possuidor de uma inteligência privilegiada e tendo recebido uma educação muito acima da dos padrões de seus irmãos índios, Marçal tornou-se uma liderança expressiva, constituindo-se em uma espécie de ponte, de elo de ligação entre o seu povo e os não-índios, verdadeiro embaixador, não somente para representar a Missão Caiuás em várias cidades brasileiras, mas também por acompanhar e conviver com cientistas interessados em estudar os Guarani, especialmente antropólogos da estatura de Egon Schaden e Darcy Ribeiro.

Infiro que deva ter sido profundamente sofrido para Marçal substituir a crença de seus antepassados pela cristã, aprender novos conceitos com cientistas esclarecidos e conviver com a indigência de seu povo. Verdadeiro choque mental, a troca de um imaginário social por outro, daí resultando crises existenciais que levaram Marçal a muitas leituras e profundas reflexões sobre a vida, a cultura de seu povo e a dos não-índios, especialmente a dos brancos, o que o levou a voltar-se para o seio de seu povo, defendendo as suas crenças, incentivando a sua cultura, a Língua.Guarani e especialmente lutando pelos direitos de sua gente. Esse sincretismo transformou Marçal em um ser híbrido das virtudes Guarani e Cristãs, um ser que me faz lembrar algo de Mahatma Gandhi: franzino, calmo, sereno, pacífico, de fala mansa embora suas palavras fossem contundentes.

Marçal compreendeu como poucos o seu povo, soube avaliar as causas que levavam os Guarani à miserabilidade material e à degenerescência cultural. Compreendia exatamente porque muitos dos seus entregavam-se ao alcoolismo e ao desespero extremo do suicídio. Por isso lutou, mesmo sabendo dos riscos que corria.

Uma vez, em uma de minhas reuniões na Reserva Francisco Horta, na Aldeia Bororo, fui recebido por um índio idoso e doente: “Asseyez vous, s'il vous plait”, disse-me ele com naturalidade. “Merci. parlez-vous français?” perguntei-lhe admirado. Outros índios se aproximaram, e Ivo, o irmão de Marçal, foi deixado de lado, e a nossa conversa ficou resumida a essas duas simples frases. Ele, da mesma forma que o irmão Marçal, recebera esmerada educação, mas a cachaça dos brancos substituiu-lhe a chicha e o transformou em alcoólatra desprezado pelos seus próprios parentes. Impressionante como os seres humanos se comportam em situações adversas. Uns superam obstáculos, incubam em si próprios os sofrimentos de sua gente, são pequenos deuses, são Marçal, outros sucumbem, entregam-se ao vício ou à morte pelo suicídio. Verdade que os suicídios diminuíram, mas Marçal estremeceria no túmulo se soubesse que atualmente são as drogas químicas que consomem a vida de índios, traficadas por próprios índios que assimilaram alguns péssimos costumes da sociedade envolvente e exploram os seus semelhantes tirando-lhes inclusive as suas casinhas, das quais passam a cobrar aluguel. 

Os não-índios, ao menos a grande maioria, não compreende essa questão. Desconhecem que não é apenas a bala disparada a mando do latifundiário que mata. Desconhecem que o etnocídio não significa apenas e tão somente a eliminação física de uma determinada tribo, mas é também, e principalmente, a morte das crenças, da língua, enfim, da cultura de uma determinada etnia. Aliás, muitos índios também não compreendem a importância de sua própria cultura, por terem se alienado em virtude do contato com a sociedade não-índia, que massifica tudo e todos.

 Compreendendo essa questão, Marçal, ao voltar-se para o seu povo, incentivava a construção das casas de reza, as danças rituais, o uso da Língua Guarani e, inclusive, a utilização da chicha, pois sabia que o seu efeito era muito menos danoso que o da cachaça. Entendia que um ou dois litros de chicha, ingeridos em meio às danças rituais pouco mal fazia, e que o teor alcoólico de um litro de pinga ingerido solitariamente deixava os de seu povo cambaleando até caírem deitados ao longo do caminho, muitas vezes com a mulher e os filhos ao redor, assistindo à cena dantesca sem poderem fazer absolutamente nada.

Mas a visão de Marçal ultrapassava esses limites. Tinha consciência de que o seu povo fora livre, alegre e forte, tinha a mata generosa para a caça e a coleta e os rios caudalosos e límpidos para a pesca, e que foi, ao longo do tempo, sendo encurralado, expulso de seus tekohás e aprisionado em reservas. Por outro lado, compreendia também a ilimitada ganância do latifundiário. Tinha absoluta convicção de que a luta era desigual, que o poderio do latifúndio era maior e que a lentidão e o descaso da Justiça para com a questão indígena àquela época eram absolutamente desfavoráveis ao seu povo. Por isso sonhou, lutou e conseguiu que os povos indígenas brasileiros se fortalecessem unindo-se. Para tanto, participou de vários encontros nacionais e foi o primeiro vice-presidente da União das Nações Indígenas (UNI). As cinco balas que lhe tiraram a vida universalizaram a sua luta.

Em dezembro de 1983, pouco depois de seu assassinato, um grande Ato Público foi realizado na Igreja Matriz de Dourados. A missa foi celebrada por Dom Tomas Balduíno, bispo de Goiás Velho, então presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), com a participação de Dom Teodardo Leitz, bispo de Dourados e de vários padres. Após a missa, houve o Ato Público prestigiado por grande público, inclusive por cerca de 200 lideranças indígenas que ao longo do dia haviam se reunido na Vila São Pedro. Algumas dessas lideranças fizeram o uso da palavra, dentre elas Marta Guarani, Mário Juruna, Alvaro Tucano,Marcos Terena, dentre outras. Também lideranças não-índias fizeram-se presentes, representando sindicados e outras entidades, a exemplo de Maria Evaristo Venceslau, representando os professores e Ricardo Brandão, falando pela Ordem os Advogados do Brasil, seção de Mato Grosso do Sul. Dentre os antropólogos presentes, Rubens Thomas de Almeida fez o seu pronunciamento e depois, Darcy Ribeiro, que merece um comentário à parte por ter proclamado que se reconhecia como intelectual, e como tal, sabia muito bem reconhecer os seus pares. Marçal, em suas palavras, era um dos maiores intelectuais que conhecera no Brasil, pois intelectual é aquele que é o espelho de seu povo.

Os discursos desse Ato, bem como toda a trajetória de vida e morte de Marçal, foram imortalizados por Laerte Tetila, então professor do CEUD, atual UFGD, na obra “Marçal de Souza, Tupã’I: um Guarani que não se cala”, editado pela UFMS em 1994.

A reprodução do texto é permitida desde que citada a fonte.

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