Uma vasectomia frustrada

Garis, aqueles que durante oito horas diárias fazem a varrição das ruas da cidade, limpando-a das folhas ou do lixo atirado por gente ainda não tão bem educada, seja durante o sol escaldante de nosso verão tropical, seja durante as noites frias de nosso inverno rigoroso, são seres invisíveis. As pesquisas demonstram isso. Os traseuntes, não importa a categoria social,não os enxergam. Podem até vê-los, ver não é enxergar. Eu os vejo e muitas vezes os enxergo, embora quase nunca os reconheça. Dia desses, inclusive, enquanto aguardava o verde do semáfaro para seguir meu caminho, observava um deles no canto do canteiro central de uma avenida, cavando a terra para fofá-la de tal modo que ficasse acolhedora às plantas que ali transplantaria. Fiquei imaginado se trabalhava com a satisfação de quem embeleza a sua cidade ou com a raiva de quem no final do mês recebe menos do que necessitaria.

Mas isso é secundário para essa crônica, o que importa é que hoje reconheci  um gari que me cumprimentou efusivamente.

- Seu Biasotto, como vai? E a família?

Vou bem, respondi-lhe, e você, quantos filhos têm?

Claro que a pergunta pode surpreender a quantos desconheçam a história que vou contar. Por que afinal eu haveria de perguntar-lhe quantos filhos tinha?

Ocorreu que esse moço, algum tempo atrás foi funcionário de uma entidade que presidi. Casou-se e teve três filhos em uma sequência  de gravidez da esposa que surpreendia a todos os membros da diretoria. Bom moço, trabalhador, pouca formação educacional, não sabia como evitar filhos. Como todos gostávamos dele e também como a casinha da nossa associação não era tão grande quanto a prole do moço, resolvi pedir a um amigo médico que colaborasse conosco e com o moço e lhe fizesse uma vasectomia. Operação marcada, levei o rapaz para a clínica de meu amigo, recomendei-o e, como tinha muitos outros afazeres disse que passaria por lá para pegá-lo daí trinta minutos.

Quando voltei, cadê o moço? Escafedeu-se. O médico, meu amigo, meio chateado por não atender ao meu pedido não tinha o que fazer. Rimos.

                Foi o único pedido que fiz a um médico para prestar esse tipo de favor, e hoje ao encontrar esse meu amigo gari  o leitor já percebeu o porquê de minha pergunta: quantos filhos você tem? Seis, respondeu-me ele, o mais velho está com catorze anos.

                Meu amigo gari mora em uma dessas casas que o governo cobra 55 reais por mês de prestação. Deve ser um aperto danado. Deve ser uma situação dificílima, mas ele tem seis filhos e não apenas os três que teria quando fugiu da vasectomia.

Oh! Dúvida cruel! Qual teria sido o seu melhor caminho? Esse que escolheu? Teria dado destino melhor aos três filhos que tinha quando fugiu da cirurgia? Quem sabe? Pode até ocorrer que  sejam os três últimos que cuidem de sua velhice.

Nunca me esqueço de quando travei uma grandiosa batalha verbal para abrir os cursos de Medicina, Direito, Administração dentre outros que não vingaram e uns representantes do Conselho Universitário da UFMS disseram que eram muitos cursos e que, portanto, não vingariam. O professor Jesus Eurico, àquela época Diretor do Centro de Ciências Hunanas da UFMS, levantou a sua voz em minha defesa dizendo que era o décimo segundo filho de seus pais e que o filhos, como os cursos que se abrem, cada qual segue o seu destino e que ele, logo ele, o décimo segundo, conseguira doutorar-se e ser o diretor de uma faculdade importante. Suas palavras foram importantes para a votação. Agora, sinceramente, não sei se os filhos de meu amigo gari terão idêntico sucesso. Desejo que sim, mas a grande verdade é que tanto os  filhos que colocamos no mundo quanto os cursos que abrimos, cada qual não depende somente de quem os gerou ou criou.

 

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