A maldição do preto (não tão) velho

Não tão velho era o preto, pois escravo nunca teve vida longa. Está certo que alguns senhores - ciosos de que os escravos eram capital e não simples objeto de consumo – forneciam-lhes farta alimentação. Farta, quer dizer, abundante, não necessariamente balanceada. Valha-me São Genaro, devia ser triste comer feijoada dia sim e outro também, embora convenhamos, feijão preto e pedaços de porco têm sustância. E não devia faltar. Ora, se mesmo hoje em dia ouço falar que os javalis, as queixadas e cutias estão causando problemas em várias regiões do Estado de Mato Grosso do Sul, tanto que os plantadores de milho estão ficando com a pulga atrás da orelha devido a devastação que provocam, imaginem na época Colonial como deveriam ser abundantes. Mas, enfim, voltemos à maldição do preto (não tão) velho.

Na África foi capturado como um bicho selvagem, mas os brancos captores alegaram que o libertaram da morte certa por perder uma guerra com a tribo vizinha. Bem sabe o leitor como brasileiro adora eufemismo. Enfrentou um navio negreiro que somente a veia poética de Castro Alves pôde definir. No meu quarto ano ginasial (oitava série de hoje), na festa de formatura, impressionei-me ao ouvir o meu professor de Matemática (ora vejam, de Matemática!), Vergílio de Arruda Sampaio, recitar “Navio Negreiro”. Posso não ter aprendido os primeiros teoremas que ele ensinava, mas marcou-me profundamente aquele velho mestre, envolto em seu impecável terno de linho branco, declamando os versos de Castro Alves.

 Mas não obstante tanto sofrer, o preto (não tão) velho, chegou ao Brasil com músculos fortes. O senhor rejubilava-se, tinha um escravo que muito valia. Mal sabia o senhor do engenho que não somente os músculos de seu escravo eram fortes. Fortes também eram as suas crenças e os seus deuses. Nem sabia também o senhor de engenho que por detrás da aparente subserviência do escravo tinha uma vingança em forma de maldição.

Ah! Que me perdoem meus alunos, eu lhes havia dito ao longo de tantos anos de minha docência que Antonil Andreoni havia reconhecido que os negros eram as mãos e os pés do Brasil, mas nunca lhes revelei a maldição do preto (não tão) velho. E pasme o leitor, só me lembrei agora, após trancos e barrancos sofridos em nossas estradas estaduais. Os sacolejos foram tantos e tamanhos que deve ter revirado a minha massa encefálica de tal modo que a maldição me veio à mente. Um dos versos inclusive deve ter servido de inspiração para Gonçalves Dias mais tarde escrever Juca Pirama, onde relata a maldição de um índio Timbira: “e o regato que límpido corre, mais te acenda o vesano furor, suas águas depressa se tornem, ao contato dos lábios sedentos, lago impuro de vermes nojentos, de onde fuja com asco e terror”. Vejam se os versos da maldição do preto (não tão) velho não são semelhantes: “que as estradas depressa se tornem/ ao contado das rodas possantes/ costelas de vacas, ou de elefantes”. E prossegue a maldição:

 “Nunca chorei na presença do trabalho/ suportei o translado/ a fome/ a soberba do feitor/ suportei o banzo/ comi o que do porco restou/ tomei leite com farinha de mandioca/ sem açúcar/ e me ensinaram que não poderia saborear uma manga. Dava congestão e matava/ era o que diziam/ e eu/ e os meus/ preferíamos o leite com mandioca/ por questão de sobrevivência/ sobrevivência para manter vivo o sonho de liberdade”. Nunca chorei/ trabalhei/ trabalhei/ cortei/ empilhei e moi a cana para virar açúcar/ para virar cachaça/ aguardente que pingava do teto do engenho para as minhas costas feridas por chicotes. “Exu, deus das mensagens/ interceda por mim junto a Ogum/ para que promova uma guerra permanente contra os brancos donos de engenho/ Faça com que os canaviais se espalhem por toda a face dessa terra onde somos escravos/ Que Oxóssi/ deus da caça/ transforme as estradas dos brancos em costelas de vacas/ não de vacas/costelas de elefantes, de elefantes que são bem maiores/ para que os carros se desmontem/ Xangô, deus do trovão/ instigue a queima da cana para que os brancos trabalhem no inferno da cana queimada/ e os que não trabalham diretamente nos canaviais sejam atingidos pelas fagulhas da queima em suas casas/ em seus varais de roupas limpas/ E que as fagulhas se concentrem especialmente nas piscinas/ onde houver. E que o fedor do vinhoto seja levado a cada narina, para que aspirem o cheiro das senzalas”.

Para nossa sorte, o preto (não tão) velho, arrependeu-se no momento de invocar Omulu o deus das piores pestes que se possa imaginar. Achou por bem apelar para Oxum, deusa do amor, pedindo-lhe que convencesse os deuses por ele invocados para que não mais concretizassem a sua maldição. Mas os deuses ficaram meio indecisos e então ora a cana se alastra como erva daninha, ou como uma nova deusa, exigindo sacrifícios de todos para o seu triunfo, ora expande-se comportadamente oferecendo benefícios a toda a nação brasileira.

 

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