PARTE II

A JUSTIÇA REAL EM FERNÃO LOPES

Capítulo III - REI JUSTICEIRO, REI CRUEL


Se, numa época de discriminação social tão marcante como foi a Idade Média, Fernão Lopes evidenciou em suas crônicas as coibições feitas eos soberanos em abusos nas relações sociais, muito mais o fez naquilo que concerne à justiça punitiva propriamente dita.

É de se supor que os costumes violentos que imperavam naquela época gerassem a idéia de que quanto mais severas fossem as penas aplicadas tanto maior seria o receio de se incorrer em falhas. Ao menos é isso que se deduz das páginas das crônicas de Fernão Lopes, onde o rei aparece como que uma espécie de vingador da sociedade; de justiceiro.

A sociedade podia ser ultrajada por crimes, roubos, práticas contrárias aos conceitos religiosos vigentes, ou mesmo por atos considerados imorais. As penalidades, todavia, segundo os padrões da época, variavam de acordo com o estado social do individuo na sociedade (1).

Essa justiça discriminatória, se não condenada abertamente por Fernão Lopes, por razões óbvias, não encontra nele um defensor; ao contrário, na medida em que enaltece

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(1) Cf. as páginas 38 e 39 deste trabalho, especialmente a nota número 37.

os reis que usavam de igualdade na distribuição da justiça não fez outra coisa senão condenar os privilégios.

O interessante, como se vai verificar no transcurso desta exposição, é que Fernão Lopes em nenhum momento condena os excessos das penas. Desde que houvesse comprovação do delito, ficava praticamente nas mãos do rei, a sentença final. Se fosse uma pena cruel, ficava patenteada como exemplo. Por outro lado, se proventura houvesse perdão; esse gesto, era considerado magnânimo.

Se, todavia, os condenados não fossem comprovadamente culpados, Fernão Lopes atribuía aos reis que os sentenciavam o adjetivo de “cruel”. Denominava da mesma forma os que mandavam matar por caprichos pessoais.

Separemos os atos dos soberanos que eram considerados justos por Fernão Lopes - mesmo os que nos pareçam severos demais - reunindo-os sob o título: “O Rei como Vingador da Sociedade”, dos considerados cruéis e assassinos, estes, sob a denominação “Abusos Injustificados”.

1 - O Rei como Vingador da Sociedade

D. Pedro I, mais uma vez, agora como vingador da sociedade, é o mais destacado por Fernão Lopes. Dentre todos os reis que aparecem em suas crônicas, foi este o que

“husou muito de justiça sem afeiçom, tendo tal igualdade em fazer direito, que a nenhum perdoava os erros que fazia, por criaçõn nem bem

querença que com el ouvesse...” (2).

Seus métodos eram práticos, sumários. O trecho abaixo é bem ilustrativo:

“... era ainda tam zeloso em fazer justiça, especialmente dos que travessos eram, que peranti si os mandava meter a tormento, e se confessar nom queriam, el se desvestia de seus reaaes panos, e per sua maão açoutava os malfeitores, e pero que dello muito prasmavom seus conselheiros e outros alguuns, anojavasse de os ouvir, e nom o podiam quitar per nenhuma guisa. Nenhum feito crime mandava que se desembargasse salvo perantelle, e se ouvia novas alguum ladrom ou malfeitor, alongado muito donde el fosse, fallava com alguum seu de que se fiava, prometendo lhe mercees por lho hir buscar, e mandavalhe que nom vehesse ante elle, ataa que todavia lho trouvesse aa maão; e assi lhos tragiam presos do cabo do reino, e lhos apresentavom hu quer que estava; e da mesa se levantava, se chegavom a tempo que el comesse, por os fazer logo meter a tormento; e el meesmo poinha em elles mãos quando viia que confessar nom queriam firindoos cruellmente, ataa que confessavam. A todo o logar honde el Rei hia, sempre achariees prestes com hum açoute, o que de tal offiçio tiinha encarrego, em guisa que como a el rei tragiam alguum malfeitor, e el dizia chamemme foaão que traga o açoute, logo elle era prestes sem outra tardança” (3).

Se em seus métodos há margem para dúvidas sobre as possíveis arbitrariedades que cometia, Fernão Lopes não as denuncia abertamente. Poder-se-ia dizer que quando afirma que dessas atitudes “muito prasmavom seus conselheiros e outros alguuns”, estaria insinuando possíveis dúvidas; todavia isso não tem qualquer sustentação, pois

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(2) Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro... Op.cit. Cap. VI, p. 29.

(3) Idem, ibidem.

poderiam os conselheiros se “prasmarem” não pelas possíveis arbitrariedades, mas pela atitude ser pouco condizente à sua majestade. Somos mesmo inclinados a pensar que Fernão Lopes, de forma alguma condenava tais métodos; afinal

“... bem podem dizer deste Rei Dom Pedro, que nom sairom em seu tempo certos os ditos de Salom filosopho e doutros alguuns, os quaes disserom que as leis e justiça, eram taaes como a tea da aranha, na qual os mosquitos pequenos caindo, som reteudos e morrem em ella; e as moscas grandes e que som mais rijas, jazendo em ella rompemna e vaansse...” (4).

Claro esta que a comparação é mais apropriada para mostrar a imparcialidade do rei na distribuição da justiça, todavia, ela dá a entender que os métodos de D. Pedro eram aceitos pelo cronista, se não, justificados.

Fernão Lopes narra diversas condenações por interferência de D. Pedro, que bem evidenciam como vingava a sociedade:

Por crime e roubos cometidos, D. Pedro mandou degolar dois criados, que haviam roubado e matado um vendedor ambulante judeu. Presos e levados presença do rei, que em hora mantivesse esses dois escudeiros há longo tempo em sua casa e, portanto, os tivesse em grande estima, não os perdoou. De nada também valeram as suplicas dos presentes. Mesmo com lágrimas nos olhos mandou executá-los (5).


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(4) Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro... Op.cit. Cap. IX, p. 43.

(5) Idem, p. 42.

Devemos, nesse caso, sublinhar dois dados que nos parecem importantes. Por serem criados do rei, os dois condenados poderiam receber penas mais leves, afinal, a justiça da época não era a mesma para todos, variava segundo a posição que o individuo ocupava na sociedade e, portanto, se esses dois escudeiros tivessem sido degredados, por exemplo, estariam punidos de forma satisfatória para os padrões gerais da época. E o segundo é que a vítima era um judeu, ser inferiorizado pela sociedade coeva, portanto a sua condição racial deveria funcionar como atenuante. Mas, nem os laços de vassalagem, nem a raça — depois dos judeus viriam os cristãos, justificava, D. Pedro — nem o próprio sentimento do rei, expresso através das lágrimas que lhe enchiam os olhos, foram suficientes para sobreporem-se ao seu desejo de fazer justiça.

Num só dia foram

“onze mortos per justiça entre ladrooens e malfeitores”.

Dentre eles encontrava-se um escrivão do tesouro real que

“recebeo onze livras e mea sem o thesoureiro”.

Fernão Lopes não deixa bem claro se o escrivão foi morto por ter furtado o dinheiro ou se pelo fato de proceder irregularmente desempenhando uma função indevida. De qualquer forma, mesmo considerando-se a primeira hipótese, deduz-se que a pesada pena foi aplicada para que servisse de exemplo aos demais servidores do reino, encarregados da arrecadação (6).

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(6) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro... cap. IX, p. 42.

Por questões de ordem moral, não fosse a interferência do escrivão da puridade — Gonçalo Vasques — açoitaria o bispo do Porto. O bispo era acusado de dormir com uma mulher casada, por isso D. Pedro o queria justiçar. Para tanto mandou chamar o bispo aos paços e provindenciou de forma tal que apenas os dois ficaram na câmara. Despido de seus “reais mantos” e brandindo um chicote, D. Pedro por certo açoitaria o bispo não fosse Gonçalo Vasques que, com a desculpa de trazer cartas urgentes da parte do rei de Castela, entrou na câmara juntamente com alguns privados do rei, convencendo-o de não levar a cabo tal feito (7).

Ao que tudo indica, este episódio envolvendo o bispo do Porto

“constitui-se em pura lenda, ou transposição lendária em pessoa, em época e em assunto” (8).

A intenção de Fernão Lopes, no caso, foi demonstrar que da justiça real ninguém estava isento, nem mesmo os clérigos que, por direito, deviam ser julgados por tribunais eclesiásticos. D. Pedro, no dizer de Fernão Lopes, simplesmente os mandava enforcar se não cumprissem sua jurisdição dizendo que

“assi o entregassem a Jesus Christo que era seu vigairo...“ (9).


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(7) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro..., cap. VII, pp. 33-35.

(8) Damião PERES. Introdução à Crônica do Senhor Rei Dom Pedro..., p. XXVII.

(9) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro..., cap. VII, p. 33.

Também para a moralização dos costumes, mandou queimar uma adúltera, mulher de um tal Afonso André,

“mercador honrrado, morador em Lisboa”,

e degolar seu amante. O mercador, que nem de longe suspeitava da traição, quando quiz saber o que estava ocorrendo foi informado pelo próprio rei

“que já o tinha vingado da aleivosa de sua molher” (10).

Ainda como vingador da sociedade no que concerne à moralização dos costumes, D. Pedro I mandou enforcar o marido de Maria Roussada porque

“dormira com ella per força”.

O episódio era coisa do passado, o casal já possuía filhos que imploravam que não lhes enforcasse o pai. Nada adiantou. O apelido da mulher — Roussada — denunciara ao rei a violentação sofrida e isso foi o suficiente para a condenação de seu marido (11),

As alcoviteiras também se constituíam em alvo da justiça do rei D. Pedro. A tal ponto as justiçava que

“mui poucas husavam de taaes officios”.

Uma tal Helena foi queimada por ordem do rei por alcovitar o almirante. Este, por sua vez, foi obrigado a fugir do reino

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(10) Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro... cap. VIII, pp. 37-39,

(11) Idem, cap. IX, p. 42.

para salvar a cabeça que D. Pedro mandara cortar, e só retornou, depois de “longos tempos”, quando o rei, numa atitude pouco comum ao seu feitio, perdoou-lhe (12).

Estes são, sem dúvida, exemplos significativos da investida feita por esse monarca para a moralização dos costumes e contra todos os tipos de distorções sociais verificadas em seu tempo, como a ladroagem e o banditismo. Por certo eles justificam os dizeres colocados na boca do povo por Fernão Lopes, de que

“taaes dez annos nunca ouve em Portugal, como estes que reinara el rei Dom Pedro” (13).

É bem provável que esses exemplos, citados por Fernão Lopes, se constituissem em sucessos que ele teria conhecido através de sentenças hoje desaparecidas, mas também não se pode ignorar que quando escreveu essa crônica — um século após a morte de D. Pedro I — a fértil imaginação popular já contribuíra em muito na elaboração da lenda do “rei justiceiro” (14).

Essa mescla de verdade e lenda nos leva a abrir espaço para uma apreciação da diferença de tom e caráter entre


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(12) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro... cap. X, pp. 45-47.

(13) Idem, cap. XLIV, p. 202.

(14) Cf. Damião PERES. Introdução à Crônica do Senhor Rei Dom Pedro... pp. XXVI-XXVII.

as três crônicas de Fernão Lopes. Apreciação sumária, digamos que para enfatizar um aspecto implícito no trabalho, mas que até agora não mereceu destaque especial de nossa parte.

O estilo da “Crônica de D. Pedro” mais seco do que das outras; provavelmente a larga utilização da obra de Ayala — nada menos que um terço dos 44 capítulos dessa crônica foram baseados na obra do cronista espanhol (15) tenha contribuído para isto. Não se pode negar, entretanto, o vislumbre de um estilo mais refinado que seria desenvolvido mais tarde nas crônicas de D. Fernando e D. João I. Muito menos se pode relegar o cuidado do cronista em dar equilíbrio ao retrato do rei, contrabalanceando a narrativa de acontecimentos depreciativos à sua imagem com os que lhe faziam simpático (16).

Se por um lado, a história desse rei intermeia-se de lendas, dentre as quais sobressai-se o episódio de Inês de Castro que embaça a verdade histórica, por outro, pode-se admitir a existência de um núcleo primitivo de realidades (17) que — exceto o episódio do bispo de Lisboa — proporciona


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(15) Cf. Damião PERES. Introdução à Crônica do Senhor Rei Dom Pedro..., p. XV.

(16) Cf. P. E. RUSSEL. As fontes de Fernão Lopes... Op.cit., p. 16.

(17) Cf. Damião PERES. Op.cit., p. XXVII.

elevado grau de confiabilidade a esta fonte.

Para a crônica de D. Fernando, Fernão Lopes pôde utilizar-se de mais farto material narrativo e documental. Ayala, apesar de utilizado, desempenha um papel muito inferior em relação à crônica anterior, O progresso é evidente, tanto quanto à técnica como quanto ao estilo (18). Não se pode esquecer de salientar nessa obra, uma certa preocupação do autor em mostrar a falta de valor da familia de Leonor Teles, devido à sua atuação política.

Já na crônica de D. João I — na qual Fernão Lopes, no dizer de Entwistle,

“brilha em passos de inesquecível gênio (19) — apesar da disponibilidade de material documental, Fernão Lopes serviu-se muito de outras crônicas que ele reputa como sendo fontes de confiança e que, de fato, o exame da obra, mostra equivalerem-se a crônicas fidedignas. Dentre essas crônicas, a do eclesiástico Christoforus sobressai-se, não pela extensão utilizada, mas porque no seu espírito ela reflete o ardente nacionalismo português, tão evidenciado


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(18) Cf. P. E. RUSSEL. As fontes de Fernão Lopes... Op. cit. p. 23.

(19) Cf. William J. ENTWISTLE. Crônica del Rei Dom Joham 1 ... Op. cit., parte II, p. XXVII.

na crônica de D. Joao I (20).

Essas diferenças de tom e caráter entre as três crônicas, não implica profunda mudança de critério na avaliação do rei, como fonte de justiça. Se D. Pedro I aparece como exemplo típico de justiceiro — talvez porque a paz do seu reinado tenha propiciado melhores condições para dedicar-se a isto — os outros soberanos que aparecem nas crônicas de Lopes, embora com muito menor relevo, não deixam de merecer referências no que diz respeito à justiça punitira ou a crueldade que manifestaram.

É evidente que os reis portugueses mereceram destaque. O lugar ocupado por estrangeiros relaciona-se ao fato de que, estes, tiveram, de alguma forma, participação em acontecimentos portugueses. Isso implica o fato de não se poder traçar um perfil desses reis tendo por base exclusivamente os depoimentos de Lopes. De qualquer forma alguns exemplos existem, inclusive ressaltando ações que podem ser consideradas beneméritas.

D. Henrique, quando invadiu o reino português, soube que os frades franciscanos do mosteiro onde acampara tomaram armas contra ele. Sua atitude foi colocar os religiosos


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(20) A crônica de Christoforus no dizer de RUSSEL, op.cit., pp. 37-38, “reflete a atitude da Igreja portuguesa durante a crise nacional — ardente nacionalismo ligado à defesa activa do Papa de Roma contra o seu rival de Avinhão. Porque para Christoforus, como para os seus colegas eclesiasticos, os castelhanos não são apenas invasores resolvidos a destruir a independência nacional — são tambem hereges que ameaçam impor a sua heresia Igreja Portuguesa”.

em duas barcas, sem barqueiros, para que com seus próprios esforços atravessassem o rio. Vendo isto, os homens do rei quiseram roubar a sacristia, mas este interveio não permitindo tal abuso e colocando um frade-sacristão para guardá-la (21).

Durante a guerra civil castelhana, quando D. Pedro, o cruel, conseguiu a ajuda inglesa, um cavaleiro inglês que servia D. Henrique com quatrocentos de cavalo, Hugo de Carnavon, abandonou-o para juntar-se ao seu senhor, o príncipe de Gales.

“... el-rrei dom Henrique, pero lhe muito pesou e lhe podera fazer nojo, nom o quis fazer, teendo que fazia dereito em hir servir o principe, filho d’el-rrei seu senhor” (22).

Exemplos como estes não são tão raros nas obras de Fernão Lopes, e isto nos leva a supor que essas ações, narradas com sabor de aprovação, tenham alguma relação com a ética cavaleiresca. Se é verdade que a nobreza ibérica não estava bem familiarizada com as convenções cavaleirescas (23).

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(21) Fernão LOPES. Crônica de D. Fernando, cap.LXXV, p.266.

(22) Idem, cap. II, p. 16.

(23) Em sua tese apresentada ao concurso para Livre-Docência da IJniversidade de São Paulo, Victor DEODATO DA SILVA, analisa pelo menos dois exemplos que bem caracterizam essa falta de familiaridade com as convenções cavaleirescas: o espanto de D. João I, quando soldados ingleses, seus aliados durante a campanha de João de Gândia na Galícia em 1389, solicitavam salvo-conduto para tratarem-se da desinteria que os havia cometido junto com os franceses, seus inimigos, conquanto eram estes, aliados dos castelhanos e os queixumes de D. Pedro o Cruel contra Henrique de Trastâmara em 1367, pelo fato deste não lhe vender os prisioneiros que havia feito. Cf. O declínio da cavalaria... Op. cit., pp. 301, 309 e segs.

por outro lado, não se pode negar que a nobreza tivesse uma

“visão de sua própria função social e dos valores morais que a respaldavam, fornecendo as bases para o sentimento de solidariedade que unia os seus componentes, extravasando as fronteiras dos estados e capaz mesmo de atuar sobre individuos colocados em campos adversários, excetuadas as situações (batalhas, escaramuças, emboscadas, etc.) em que a luta era regra e a agressividade combativa a virtude mais apropriada” (24).

O próprio rei D. João I, de Castela, após a batalha de Aljubarrota, fugindo de cidade em cidade do seu reino, nos oferece um exemplo dessa situação: encontrando-se em Sevilha, vários portugueses presos, limpando os paços onde deveria ficar, sendo maltratados por um escudeiro que talvez quisesse assim se desforrar da derrota, interferiu dizendo:

“Leixaae, leixaae-os muyto em hora maa, ca os portugueeses som boons e leaaes, e nom aues porque lhes fazer mal. Ca quantos forom em minha companhia eu os vy todos morrer ante mim, e os meus me roubarom a coroa da minha cabeça” (25).

No outro dia o rei mandou soltar os prisioneiros.

De D. Fernando, o formoso rei português, Fernão Lopes não faz muitas referências no que concerne à justiça punitiva. No prólogo de sua crônica refere-se a proibições feitas aos fidalgos de coutarem malfeitores (26). Mas, por certo,

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(24) Victor DEODATO DA SILVA. Op.cit. , pp. 300-301.

(25) Fernão LOPES. Crônica del Rei Dom Joham I. Cap. XLIV, p. 103.

(26) Fernão LOPES. Crônica de D. Fernando. Prólogo, p. 8.

suas guerras contra Castela não permitiam ao rei que, a exemplo de seu pai, andasse pelo reino distribuindo justiça.

O mesmo se pode dizer de D. João I que, ocupado com a guerra de independência, não podia dedicar-se de corpo e alma aos feitos da justiça. Sabemos através de Fernão Lopes que

“nom era sanhudo nem cruel, mas manso e benignamente castigaua; assy que amballas virtudes no rey deue dauer, saber justiça e piedade, eram em ei compridamente” (27).

Durante a guerra, não permitia que os seus roubassem os moradores das vilas e cidades portuguesas que ia reconquistando (28) e, mesmo que os saques fossem praticados em terras inimigas, eles deveriam obedecer as convenções previamente estabelecidas.

A tomada de Valdeiras e o saque que se verificou em seguida constitui-se em significativo exemplo para demonstração da violenta reação de D. João I em função do desrespeito a uma convenção feita entre ele e os ingleses.

O duque de Lancaster, aliado de D. João I na guerra contra Castela, tinha pretensões de tomar este reino em nome de sua mulher, D. Constança, considerada lídima sucessora

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(27) Cf. Fernão LOPES. Crônica del Rei Dom Joham I, prólogo, p. 2.

(28) Cf. por exemplo, na parte II da Crônica del Rei Dom Joham I, cap. XI, p. 23.

por ser filha do Rei D. Pedro (29). Com esta finalidade partiu da Inglaterra com poderosa armada, aportou na Galícia, no dia 25 de julho de 1386. Em 1° de novembro encontrou-se pela primeira vez com D. João I, e em março de 1387 invadiu Castela (30).

As forças do Duque com as portuguesas, numa ação conjunta, sitiaram e tomaram Valdeiras através de “preitesia” firmada entre eles e Sancho Velasco que tinha o lugar sob sua guarda. Os castelhanos entregaram a cidade após a garantia dada por Nuno Alvares para que as gentes do lugar saíssem sem riscos de serem roubadas (31).

Desocupada a cidade, combinou-se a maneira de se fazer o saque. Como as forças aliadas não se entendiam entre si, para evitar possíveis desavenças mais sérias, D. João I e o Duque de Lancaster combinaram que a cidade seria saqueada em dois turnos; primeiro, até ao meio-dia, seriam os ingleses, por estarem “com gram myngua” de mantimentos depois os portugueses.

De acordo com o combinado, o

“Duque e suas gentes entraron pella manhaã e começarom de roubar”,


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(20) Cf. a respeito Fernão LOPES. Crônica del Rei Dom Johan I, caps. LXXXIV, LXXXV, LXXXVI, LXXXVII, pp. 189-196.

(30) Idem, cap. C, pp. 213-215.

(31) Idem, cap. CVI, pp. 221-222.

mas os portugueses, não se conformando em apenas presenciarem o saque, entraram na cidade antes do tempo determinado o que gerou uma queixa ao rei D. João I por parte do Duque que alegava, além do desrespeito ao acordo, que os portugueses, em muito maior número. roubavam de seus homens.

D. João, em vista do fato de ver as suas determinações desobedecidas, cavalgou até o local e, com uma espada na mão,

“açesso com gram sanha”

ia batendo nos que encontrava

“de guissa que ouue hi feridos e mortes per tall aazo”.

Mortos apenas dois, diz Fernão Lopes,

“huum que el-rey degolou per sa maão e outro que fez saltar do muro a fumdo, de que logo moreo” (32).

Não menor sanha demonstrou D. João ao mandar queimar Fernando Afonso, seu camareiro, por manter relacionamento intimo com Dona Beatriz de Castro, donzela do paço. De nada valeram as interceções de nobres e da própria rainha em favor do camareiro. Em nome da moralização dos costumes,

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(32) Cf. Fernão LOPES. Crônica del Rei Dom Joham I, cap. CVII, p. 223. Sobre este episódio Cf. também a interessante interpretação dada por Victor DEODATO DA SILVA. Op.cit., p. 387, em que relacionava os desentendimentos entre ingleses e portugueses às diferenças de concepção de guerra, sugerindo inclusive que D. João tivesse um certo complexo em relação a conduta de seus subordinados.

era feita a “justiça” (33).

II - Abusos Injustificados

“Qui veut le roi, si veut la loi”, diz o ditado francês (34) que de certa forma, denota o pensamento da época em termos de superioridade real no trato da justiça. Essa superioridade, conferia ao rei uma certa impunibilidade que lhe permitia agir mais ou menos vontade na aplicação da justiça.

Muito embora o absolutismo real seja caracteristico da modernidade, manifestações da vontade absoluta do rei, ao menos em termos de aplicação da justiça, são perfeitamente detectadas na época que objeto de nosso estudo.

Essas manifestações geravam a possibilidade de sentenças arbitrárias, ditadas não raras vezes por impulsos sentimentais que deixavam os reis completamente esquecidos de seus dois superiores: Deus e a Lei.

Cometidas injustiças, restava aos monarcas o arrependimento na hora da morte, e a procura da salvação através de generosas doações testamentárias (35).


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(33) Esse episódio encontra-se reconstituído mais circunstancialmente às pp. 116-118 deste trabalho.

(34) Extraído de M. BLUNTCHLI. Théorie générale de 1 Etat. Paris, Libr. Guillaumin, 181, p. 351.

(35) Cf. sobre o assunto as pp. 39-45 deste trabalho.

A Fernão Lopes não passaram desapercebidas estas arbitrariedades. Se, como vimos, a severidade das sentenças não lhe causava motivos para condenações, desde que houvesse culpa, atos considerados injustos foram severamente criticados por ele.

Dos reis citados em suas crônicas um deles se destaca como verdadeiro campeão de crueldade: D. Pedro I, de Castela, cognominado, justamente por essas práticas, o cruel.

Não existe nas crônicas de Fernão Lopes, praticamente nenhum espaço para elogios a esse D. Pedro, ao contrário, em suas narrativas as atitudes desse monarca constituem-se num rosário de crueldades praticadas (36), sendo portanto este rei,

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(36) As crueldades praticadas por Pedro, o Cruel, são vistas por alguns historiadores como obras de um “déspota sanguinário” e por outros como de “um estadista pouco escrupuloso quanto aos meios adotados, mas seguro de seus fins”. Essa colocação é feita por Victor DEODATO DA SILVA. Op.cit., p. 311, escudando-se nas obras de W. C. ATKINSON. A history of Spain and Portugal, Hammondsworth, 1960, p. 90 e de L. SUÁRES FERNANDES. História de España. Edad Media. Madrid, 1970, p. 446, para a primeira afirmação e na obra de P. E. RUSSELL. The Enlish intervention in Spain and Portugal in the time of Edward III and Richard II. Oxford, 1965, pp. 61 e segs, para a segunda. Parece, portanto não existir dúvidas quanto ao fato desse rei não ser muito equilibrado, contudo não se deve esquecer que sua linha era radicalmente anti-aristocrática, e tendeu a dar dimensões hipertróficas à afirmação das prerrogativas monárquicas.

“muito arredado das manhas e condições, que aos boons Reis compre daver, ca el dizem que foi mui luxurioso... era muito cobiçoso do alheo... nom queria homem em seu consselho, salvo se lhe louvasse sua rason ... matou muitas honrradas pessoas, dellas sem razom por lhe darem boom consselho, e outras sem que e por ligeiras sospeitas... (37).

A guerra civil levada a efeito contra seu irmão bastardo, Henrique de Trastâmara, não justificava tantas mortes. Ademais, não somente esses verdadeiros crimes pesam sobre a memória deste rei, mas seus desvios, narrados por Lopes, fazem dele muito mais a figura de um monstro sanguinário que a de um ser humano coroado (38).

O
“perverso tresvairado, cujas sevícias assombram


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(37) Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap XVI, pp. 71-75. Somente neste capítulo são enumeradas 45 mortes a mando de D. Pedro. Deve-se levar em conta que este capítulo é um dos que Fernão Lopes escreveu baseado em Ayala e que este cronista era partidário de Henrique de Trastâmara, portanto, com interesses em detratar D. Pedro I.

(38) Sobre os crimes intrigas, perjúrios, profanidades e demais sevícias de D. João I, veja em Fernão LOPES, na Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, os caps. XVI, pp.71-76; XVII, pp. 77-85; XVIII, pp. 87-89; XIX, pp. 91-93; XX, pp. 95-98, XXI, pp. 99-102; XXII, pp. 103-105; XXIII, pp. 107-111; XXVI, pp. 121-123 e na Crônica de D. Fernando, os caps. IX, pp. 33-35; XI, pp. 39-40; XII, pp. 41-44; XIII, pp. 45-47; XIV, pp. 49-51. Vale aqui a mesma observação feita na nota 35 de que Fernão Lopes em vários passos limita-se a traduzir Ayala e que este era partiria do Trastâmara, o que implica em certo comprometimento.

ainda hoje a posteridade” (39),

foi cúmplice de seu homônimo português na extradição mútua de homiziados. Essa extradição foi fruto de um acordo secreto, firmado entre os dois soberanos, através do qual se comprometiam em aprisionar e proceder à troca de Diogo Lopes Pacheco, Pero Coelho e Alvaro Gonçalves — portugueses homiziados em Castela, acusados como responsáveis pela morte de Inês de Castro — por Pedro Nunez de Gusmão, Rodrigues Tenório, Fernão Godiel de Toledo e Fernão Sanchez Caldeiros — espanhóis que por temerem serem mortos a mando do rei castelhano homiziaram-se em Portugal. Efetivada a troca de homiziados — exceção feita a Diogo Lopes Pacheco que avisado por um mendigo conseguiu escapar à prisão (40), sendo posteriormente perdoado (41) — foram os espanhós supliciados em Sevilha e os portugueses em Santarém (42).

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(39) Conde de VILA FRANCA. D. João I e a Aliança Inglesa. Lisboa, Investigações Histórico-Sociais, 1950, p. 68. O peso dessa afirmação talvez possa também ser atribuído à condição de nobre de seu autor.

(40) A maneira como Diogo Lopes Pacheco escapou à prisão é narrada por Fernão LOPES na Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap. XXXI, pp. 145-149.

(41) Diogo Lopes Pacheco foi perdoado por D. Pedro quando este “adoeceu de sua postumeira door”. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap. XLIV,p. 201.

(42) O acordo entre os reis portugueses e castelhanos encontra-se em Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap. XXX, pp. 141-144.
Fernão Lopes condena veetentemente essa avença entre dois reis e hesita em narrar detalhadamente o suplício dos portugueses dada a sua crueldade (43).

Antonio de Vasconcelos ao referir-se a essa passagem, afirma que D. Pedro de Castela

“um verdadeiro tigre coroado, um monstro sanguinário que sempre sentia especial deleite em mandar matar”

e

“D. Pedro de Portugal, também cruel, embora com o colorido de justiceiro”.

bem mereciam serem desacreditados perante a história, por fazerem entre si tão monstruosos e infame contrato (44). D. Pedro de Portugal vingava a morte de sua Idolatrada Inês, D. Pedro de Castela punia os adversários de sua amada Maria de Padilha, mas para tanto feriram o direito de asilo.

Fernão Lopes ao narrar essa passagem diz, com referência ao rei cognominado justiceiro, como quem faz justiça

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(43) “ A meneira de sua morte, seendo dita pelo meudo, seria mui estranha e crua de comtar, ca mandou tirar o coraçon pellos peitos a Pero Coelho, e a Álvoro Gomçallvez pellas espadoas (...) em fim mandouhos queimar; e todo feito ante os paaços omde pousava, de guisa que comendo oolhava quamto mandava... Fernão LOPES. Crônica do Senho Rei Dom Pedro, cap. XXXI, p. 149.

(44) Antonio de VASCONCELOS. Inês de Castro. Estudo para uma série de lições no curso de História de Portugal. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1928, pp. 49-50.


com a arma que possuía – a pena – que

“nosso teemçon he nom o louvar mais; pois contra seu juramento, foi consemtidor em tam fea cousa como esta” (45).

Assim, embora outros atos de D. Pedro de Portugal se revestissem de crueldade, Fernão Lopes subestima-os, mostrando apenas nessa vingança sua indignação à justiça desse monarca.

Quanto a Pedro, o Cruel, foi assassinado por seu irmão bastardo (46). Morte merecida ou não, a verdade é que Henrique de Transtamara inicia seu reinado carregando nos ombros além do peso de um assassinato, o peso de uma traição. Mas, tal assassinato foi tido por muitos como uma ação praticada para fazer justiça e além disso, não são relatadas por Fernão Lopes, crueldades praticdas por esse rei (47), que de certa forma aparece como o redentor de um povo que muito padecia sob o reinado de D. Pedro, o Cruel (48).

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(45) Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, Cap. XXX, P. 141.

(46) O assassinato de Pedro, o Cruel, por Henrique de Transtamara, encontra-se narrado por Fernão LOPES na crônica de Dom Fernando, Cap. XXIV pp. 85-86.

(47) Quando fugia da batalha quefizera com Dom Pedro, vencido que fora, matou um dos habitantes de Soria, mas porque o queria prender. CF. Fernão LOPES. Crônica de Dom Fernando, Cap.XIV, P. 49.

(48) Embora seja isto que se pode inferir na obra de Fernão LOPES, tudo indica que apenas uma reduzida parte da população sofria com suas crueldades, os grandes do reino e seus clientes;
Também D. Fernando não aparece nas Crônicas de Lopes como um rei cruel. Mandou degolar e confiscar os bens de Fernão Vasques e outro cabecilhas de movmentos populares contra seu casamento com D. Leonor Teles, verificados em Santarém, Alenquer, Tomar e principalmente Lisboa. Esse procedimento pode até ser considerado injusto mas não chega a se configurar como cruel (49).

Sevícia, na concepção exata da palavra foi a praticada por D. João I de Castela quando de sua invasão a Portugal pela comarca de Beira, em agosto de 1385. Nessa incursão vários lavradores foram multilados por ordem deste rei e chegando a

“Llerea, non cessou dhusar de toda crueldade, assy, em homeens como molheres e moços pequenos, mandando-lhes decepar as maãos e cortar as linguoas e outras semelhantes crueldades; e isso mesmo poer fogo as igreias...”

Isto por vingança às desobediências dos portugueses quando do assédio à Lisboa e nesta invasão

“Nenhuum tomava sua voz” (50).

Já D. João de Portugal, não era considerado “sanhudo” por Fernão Lopes. De fato, em toda a crônica deste rei encontramos apenas duas passagens significativas que


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(49) Sobre o descontentamento que o casamento de Dom Fernando provocou no povo e as suas conseqüências CF. Fernão LOPES. Crônica de Fernando, Cap LX, pp. 209-211 e sobre a execussão dos principais chefes o Cap LXI, pp 213-214.
(50) Fernão LOPES, Crônica Del Rei Dom Joham I, Parte II, Cap. XXIX, pp28 e 59


refletem uma certa exorbitância nas aplicações da justiça, chegando mesmo a assumir conotações de visível crueldade.

Uma dessas passagens refere-se ao saque de Valdeiras em que D. João I matou dois portugueses e feriu muitos outros porque desobedeceram suas ordens, saqueando a cidade antes da hora determinada em acordo feito com os ingleses (51).

A outra, concernente ao episodio de Fernando Afonso, camareiro que o rei mandou queimar por ter relações intimas com uma donzela do passo, merece um estudo mais detalhado dadas as possíveis divergências de ordem interpretativa ao que o texto de Lopes dá margem.

“... tinha el rei na goarda das molheres de sua casa gram sentido que nenhum nam jugatasse com ella nem teuesse maneyras per que antre ellas podesse naçer cuja fama”

E como o rei
“ começaua a ter maa sospeita”,
de uma donzela – Beatriz de Castro – chamou varias vezes a Fernando Afonso para lhe dizer
“que lhe encomendaua e mandaua que com nennhuuma molher nam teuese jeyto de bemquerença, moormente com esta Dona Beatriz...”

O camareiro prometia sempre acatar as palavras do rei, todavia seu procedimento era justamente o inverso. Certa feita pediu licensa ao monarca para ir a pé a Santa Maria de Guadalupe e no entanto ficou durante o tempo presumível da viagem na casa de Dona Beatriz. D. João I desconfiado do fato

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(51) O episodio foi analisado com mais detalhes a p.107 deste trabalho. A fonte é Fernão LOPES. Crônica Del rei Dom Joham I, Cap. CVII, p 223

“mandou que fosse de sua cassa e nam parecese mais anti elle”.

Fernando Afonso ao invés de cumprir determinação real, mais uma vez

“ Foy – sse meter em cassa, de Dona Beatriz, e ally estaua”

Desta feita foi chamado à câmara onde o rei mandou que o corregedor o prendesse. Estando sendo levado evadiu-se para a igreja de Santo Elói de onde o retirou pessoalmente de D. João I, mesmo quebrando a imagem de Nossa Senhora, a qual se agarrara para proteger-se. Passado o dia, o rei mandou queima-lo, nada adiantando o fato de Dona Beatriz e Fernando Afonso passarem a chamarem-se de Marido e Mulher (52).

O fato é complexo. Atribuir a essa justiça de D. João I um caráter moralizante é temerário; pois, no mesmo capitulo onde Fernão Lopes narra a condenação de Fernando Afonso, relata

“Como el-rei cassou algumas Donzelas”.

sem consulta prévia aos noivos e ao seu bel prazer. Então, da mesma forma, poderia ter feito casarem-se D. Beatriz e Fernando Afonso. Por outro lado, vincular a condenação a uma possível reação de ciúme homossexual é praticamente inadmissível. Expressões usadas por Fernão Lopes para narrar o epsódio, como

“el-rey (o) amaua muyto”

ou


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(52) Cf. Fernão LOPES. Crônica del rei Dom Joham I, parte II cap. CXXXIX, pp. 283-287.

“ Todos eram em conhecimento do grande amor que lhe el-rey mostraua”

não são suficientes para caracterização de homessexualismo. Elas eram usadas na idade média, sem as implicações eróticas do vocabulário atual. Também o fato de D. João I ter proibido a Fernando Afonso “ jeyto de bemquerença” com qualquer mulher que fosse não basta. Embora tal proibição, comparada ao amor do rei pelo camareiro assuma conotações mais viáveis de possíveis insinuações, ela não se constitui em argumento forte para que se possa afirmar categoricamente que a “Justiça” de D. Pedro I, no caso, se configura como cena de ciúme de homosexual (53).

Acreditamos que a condenação do camareiro deva-se exclusivamente ao fato do rei ter-se agravado pelo desacato às suas determinações, Fernão LOPES, ao nosso ver, não pretendeu enfatizar ourta coisa, se não a severidade de que era capaz o rei na aplicação de uma pena quando fosse contrariado. Mas, de qualquer forma, fica evidenciada a natureza cruel do castigo.

Cena de ciúme a que Fernão LOPES insinua homossexualismo poderia ser considerada a castração do escudeiro

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(53) M. Lucia Perrone DEFARO PASSOS. O herói da crônica de Dom João I, de Fernão LOPES. Lisboa, Ed. Prelo, 1974, p.110, diz que Dom João I “talvez” fosse homossexual; já Victor DEODATO DA SILVA. Op. Cit., p.p, não acredita que, no caso de Dom João I, Fernão LOPES tenha feito alguma insinuação nesse sentido.

Afonso Madeira (54), levada à efeito por ordem de D. Pedro I, aparentemente para moralização dos costumes. Diz LOPES à respeito:

“e como quer que o el-rey muito amasse, mais do que se deve a quei de dizer, posta a de parte toda bemquerença (grifo nosso) mandou tomar em sua câmara, e mandou-lhe cortar aquelles menbros que os homens em moor preço tem...” (55)

Mas embora a expressão de Fernão LOPES deixe poucas dúvidas quanto ao procedimento homossexual de D. Pedro, não podemos relegar a hipótese de que ao resaltar esse grande amor, o cronista quisesse frizar que para fazer justiça esse rei era cego a quaisquer sentimentos.

Sendo ou não sendo de ciúmes, a verdade é que esse exemplo, juntado às demais sevicias praticadas por soberanos constantes das crônicas de LOPES, ilustram perfeitamente o fato de que os reis tidos e havidos como justiceiros, muitas vezes exorbitavam às suas prerrogativas cometendo atos cruéis, tomados pelas paixões violentas que imperavam na época.


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(54) “A homossexualidade surgi na idade média com freqüência e não suscitava na vida prática, o pavor do empestado, diz A. H. de OLIVEIRA MARQUES. A sociedade medieval portuguesa: aspectos da via quotidiana. Lisboa, Sá da Costa Ed., 1971, p.129 e na mesma página acentua que Fernão LOPES “não hesitou em lançar suspeitas sobre o rei Dom Pedro, que amava seu escudeiro Afonso Madeira “mais que se deve aqui de dizer” e o mandou castrar por evidentes ciúmes”.
(55) CF. Fernão LOPES. Crônica do senhor rei Dom Pedro, Cap.VII, pp.37-39.

Todavia, essas atitudes cruéis, não se constituíam na regra geral, eram exceções condenadas por Deus e pelos homens segundo a doutrina vigente na época e, se encontramos nas páginas escritas por Lopes a narração dessas crueldades não é porque o cronista concordasse com elas, ao contrario, se é certo que sua pena sempre esteve a serviço da verdade é certo também que se prestou ao louvor da justiça e à condenação do arbítrio.