PARTE II

A JUSTIÇA REAL EM FERNÃO LOPES

Capítulo II - O REI COMO HARMONIZADOR SOCIAL


Devido o caráter agrário da primeira dinastia portuguesa (1), a condição itinerante da corte, o desejo do monarca em atender às queixas, distribuindo sua justiça pelo reino, os reis eram tidos como patriarcas, espécie de pai ou tutor da nação. Todavia à medida que o reino ia crescendo, tornava-se cada vez mais difícil a distribuição da justiça pelas próprias mãos do rei; a sociedade tornando-se mais complexa exigia dos soberanos uma mudança de atitude: a patriarcalidade dos monarcas foi aos poucos cedendo lugar a uma postura legiferante (2).

O reinado de D. Pedro I constituiu-se para Fernão Lopes, num riquíssimo exemplo a ser imitado em termos de justiça, pois, se a complexidade atingida pela sociedade de sua época o obrigava a uma postura legiferante, ele correspondia, sem se omitir da responsabilidade que lhe impunha a tradição, de ser o patriarca do reino. Temos, portanto, nesse rei, o mais vivo exemplo que se pode tirar das crônicas

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(1) Não queremos dizer aqui que na primeira dinastia só se praticava a agricultura ou que a agricultura fosse a única fonte de renda, mas que a maioria da população estava ligada às lides do camno. Cf. a respeito: Antonio SERGIO. Em torno da designação de Monarquia Agrária dada a primeira época de nossa História. Lisboa, Portugália, 1941.

(2) Cf. a respeito: Eduardo D’OLIVEIRA FRANÇA. O poder real ... Op. cit., pp. 92-93.

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de Fernão Lopes de “Vingador” da sociedade e, ao mesmo tempo, de harmonizador social.

Deixemos por ora o vingador e tratemos do harmonizador social, tendo em vista que naquela época

“como os problemas de justiça e administração estavam confundidos, organizar a justiça e organizar o país era a mesma coisa (3).

Nesse sentido Fernão Lopes não mede elogios a D. Pedro I de Portugal, ao afirmar que:

“Ainda que outras mingoas per el passassem de que peendência podia fazer: de cuidar he que houve o galardom da justiça, cuja folha e fruito he, honrrada fama neeste mundo e perdurável folgança no outro”

“... Era de boom desembargo (...) e trabalhavas se quanto podia de as jentes nom seerem gastadas, per aazo de demandas, e perlongados preitos...” (4).

Este rei era muito amado por seu povo porque o mantinha em direito e justiça. Para isso muito contribuiu a organização que deu aos desembargos de sua casa que, segundo Fernão Lopes, funcionava muito bem, pois todas as petições eram encaminhadas ao escrivão da puridade que as repassava a um escrivão auxiliar para distribuir aos desembargadores, de acordo com suas atribuições. No mesmo dia, ou no mais tardar no dia seguinte, os despachos deveriam estar prontos

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(3) Eduardo D’OLIVEIRA FRANÇA. Op.cit., p. 170.

(4) Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro. pp. 6-8.

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sob pena de perderem suas mercês, os relapsos. No que concerne às petições de graça e mercê o processo era praticamente o mesmo, ressalvando-se o cuidado do rei em mandar fazer ementas de tais petições para não correr o risco de ver lesada sua fazenda. Mesmo quando se ausentava para a caça ao monte — esporte muito comum, como se jáviu anteriormente entre os reis medievais — o bom desembargo deste rei não sofria solução de continuidade, pois um dos seus desembargadores se encarregava de levar a ele, onde estivesse, as petições com os pareceres competentes para a decisão final.

Uma vez desembargadas as petições, ponto final, fim do assunto: sim, sim; não, não. Quem ousasse recorrer do despacho era castigado: multa em dinheiro, se fosse pessoa honrada; vinte açoites em praça pública, se fosse do povo meudo (5).

Não cabe aqui discutir se era arbitrário ou não esse procedimento. Assim era o desembargo do rei e, se dermos crédito a Fernão Lopes, funcionava a contento, pois o povo o amava por isso. De fato, numa época em que os meios de transporte eram precários e em que o problema das “tomadias” (6) aviltava principalmente as classes populares, tornava-se facilmente compreensível o alcance social de um rápido desembargo.

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(5) Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap. IV pp. 19-22.

(6) Ver sobre o assunto à página 26 deste trabalho.

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Mas não se resume ao desembargo, o alcance social da justiça de D. Pedro. Outras providências tomadas em prol do bem comum são relatadas por Fernão Lopes. Conta o cronista que

“Dom Pedro era amador de trigosa justiça naquelles que achado era que o mereciam” (7).

Ao descobrir que os procuradores agiam de má fé, ajudando ora uma parte, ora outra, para tirarem proveito pecuniário em detrimento do bom andamento dos processos que se arrastavam penosamente até uma decisão final, D. Pedro I ordenou o fim de tal prática e, como quem pretende mostrar que não estava querendo ver suas ordens desrespeitadas, puniu um desembargador que recebera peita numa causa — mestre Gonçallo — tirando-o de sua mercê e degredando-o e a seus filhos a dez léguas de onde estivesse. E mais, para evitar novos abusos decretou o confisco dos bens e a pena de morte aos juízes que recebessem suborno, mesmo que fosse da parte possuidora da razão (8).

Interessante ressaltar — embora fosse idéia corrente de que ofensa ao agente real era ofensa ao rei, não havendo portanto rei que tivesse ponto de vista diferente em qualquer reino — que esse rei justiceiro, da mesma forma que punia seus juízes relapsos, defendia os que executavam


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(7) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro. cap.V, p. 23.

(8) Idem, pp. 23-24.
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suas leis, a ponto de tomar para si as dores dos ultrajes de que eram acometidos. Certa feita, conta Fernão Lopes, um porteiro foi intimar um escudeiro em sua casa, à mando do Juiz e esse escudeiro prepotente, como resposta, cortou-lhe a barba e deu-lhe um soco. O porteiro procurou o Rei e contou-lhe toda a história. A reação de D. Pedro foi chamar o corregedor que estava presente dizendo

“acorreeme aqui Lourenço Gonçallvez, ca huum homem me deu huuma punhada no rosto e me depenou a barba”.

Nem mesmo o fato do escudeiro ser sobrinho de Joham Lourenço Rubal, privado do rei e do seu conselho, impediu que fosse degolado (9).

Atitudes dessa natureza por certo serviam para dar à justiça o grau de respeitabilidade necessária para seu bom funcionamento, e, respeitada pelo povo, não importando qual fosse a posição do individuo na sociedade, é certo que desempenhava um papel harmonizador da vida social, contribuindo para a tranqüilidade do reino.

Também de caráter social — apesar da dificuldade de mensuração de sua funcionabilidade prática e embora o fundo moral da medida não possa ser relegado – foi a proibição imposta por D. Pedro, dos homens casados e dos clérigos possuírem concubinas (10). A severidade das penas impostas:


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(9) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap. IX, p. 43.

(10) Idem, cap. V, p. 25.

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multas em dinheiro, degredo ou mesmo o açoite aos infratores, nos faz crer que o costume de possuir outra companheira além da esposa legitima era mais ou menos comum naquela época. É mesmo compreensível que o temperamento do homem medievo, acostumado às lidas da guerra e às vicissitudes da vida, favorecesse atitudes pouco ortodoxas em relação ao casamento, mas também é fácil deduzir, com grande probabilidade de acerto que, em tempos dificeis como é o caso desse periodo que estamos estudando, as esposas legitimas ficavam desamparadas se os maridos as preteriam por outras, quiçá mais jovens e mais belas. Desamparadas, nos parece o termo exato, daí inclusive o caráter da “justiça” feita por D. Pedro, pois uma vez preteridas pelos esposos, sustentáculo da família, muitas pessoas — mulheres e crianças — poderiam ficar, de uma hora para outra sem guarida.

D. Pedro, provavelmente também visando o bem social do povo

“... corregeo as medidas de pam de todo Portugal ...“ (11).

Embora a citação de Fernão Lopes seja vaga, sabe-se que na realidade tentou-se alguma coisa no sentido de uniformizar os pesos e medidas pelos padrões da cidade de Lisboa, todavia, além de não se ter conhecimento da extensão social que essa medida acarretou, sabe-se que tal iniciativa jamais se


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(11Cf. Fernão LOPES. Crôica do Senhor Rei Dom Pedro, cap. V, p. 26.
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realizou, embora outros soberanos insistissem nessa tentativa (12).

“Falando el ei huum dia nos feitos da justiça, disse que voontade era e fora sempre, de manteer os poboos de seu Reino en ella, e estremadamente fazer direito de si mesmo...” (13).

Nesse sentido D. Pedro tomou decisões de coibir o mais violento abuso praticado na Idade Média contra as camadas populares (14); começando por sua própria familia, estendeu a todos os vassalos a proibição de tomarem quaisquer coisas de seus donos sem o devido pagamento. As penalidades impostas variavam de multas à própria morte, e se lhe diziam que punha

“mui grandes penas por mui pequenos excessos”

respondia que a morte era o que os homens mais temiam e assim, se um ou dois fossem enforcados, outros temendo tal fim haveriam de se emendar (15).

Se não podemos aformar que tais medidas tenham posto

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(12) Cf. a respeito: Artur de MAGALHÃES BASTOS. Alguns documentos do Arquivo Municipal do Porto: que fornecem subsidios para a História da Cidade de Lisboa. Porto, Publicações da Câmara Municipal do Porto, s.d.

(13) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap. V, p. 25.

(14) Trata-se das “tomadias”, assunto que abordamos na p. 26 deste trabalho.

(15) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap. V, pp. 25-26.

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fim aos abusos (16), ao menos haveremos de admitir que o espírito dessas proibições refletia a grande preocupação de D. Pedro em manter em harmonia social o seu reino.

Fernão Lopes diz ainda que D. Pedro I:

“... hordenou outras cousas por boo paramento e proveito de sua terra...“ (17).

Para quem está interessado nesse estudo, a primeira reação é de criticá-lo por omitir informações que poderiam ser úteis, pelo simples fato de não saber

“quanto prazerion aos que as ouvissem”.

Mas não sejamos demasiadamente duros, Fernão Lopes não se propôs fazer um “diário” de reis, onde pudesse descrever até seus mais insignificantes movimentos e sim, crônicas, nas quais ele tinha o direito de selecionar o que achava mais interessante. É possível mesmo que medidas importantes tenham ficado para trás (18), todavia o fato do cronista ter enfatizado que

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(16) As medidas tomadas contra as tomadias nos reinados de D. Fernando, D. João I e até no de D. João III comprovam que o problema persistiu. Cf. Fortunato de ALMEIDA.
Op. cit., p. 182-190.

(l7 Cf. na Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap.V, p. 77.

(18) Em 1361, por exemplo, D. Pedro I proibiu a publicação de bulas papais sem sua aprovação – Beneplácito Régio – “visando principalmente boa justiça do reino, devido à freqüencia com que eram falsificados documentos pontifícios em assuntos importantes e à necessidade que o rei tinha de travar conhecimento oficial com a documentação oriunda da cúria”. Cf. A. H. de OLIVEIRA MARQUES. História de Portugal. Desde os tempos mais antigos até o governo do Sr. Pinheiro de Azevedo. Lisboa, Palas Ed., 1977, pp. 178-179.

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“... hordenou outras cousas por boo paramento e proveito de sua terra...”

acrescentado ao que vimos discorrendo suficiente para concluirmos que Fernão Lopes formava de D. Pedro I um conceito muito bom no que concerne a justiça social.

Juntar tesouros também, de certo modo, constituia-se numa forma de fazer justiça social. Fernão Lopes conta que nos castelos de Lisboa, Santarém, Coimbra e outras localidades existiam torres destinadas ao armazenamento de tesouros que iam juntando ano a ano, sempre que houvesse superavit no orçamento da coroa. Quando morria o rei apregoava-se pelo reino as suas virtudes, e dentre elas considerava-se que quanto maior a quantidade de moedas entesouradas tanto mais bondoso era. E, mesmo se não conseguisse acrescentar só o fato de conservar o tesouro de seus antecessores já era considerado importante pois, o próprio Fernão Lopes explica, que assim o rei não fazia

“agravo ao poboo, nem lhe tomando do seu nenhuma cousa” (19).

Neste particular D. Pedro I também merece referências elogiosas por parte de Fernão Lopes: este rei não agravou seu povo nem despendeu os tesouros encontrados.
D. Pedro I, de Castela, também não se descuidou

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(19) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap. XII, pp. 53-56.

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desse aspecto. Juntou um grande tesouro (20) que lhe serviu ao menos para custear a desastrosa guerra contra seu irmão bastardo, Henrique de Trastâmara.

Já D. Fernando, nesse particular, éseveramente censurado nor Fernão Lopes. Quando começou seu reinado era o mais rico rei que Portugal teve (21), todavia

“desfalleceu esto quando começou a guerra, e naceo outro mundo novo muito contrario ao primeiro, passado os folgados anos do tempo que reinou seu padre; e veheron depois dobradas tristezas com que muitos chorarom suas desaventura — das mizquindades” (22).

Talvez seja oportuno ressaltar que, embora Fernão Lopes deixe clara sua preferência pelo rei D. Pedro, não lhe passa desapercebido o advento de

“outro mundo muito contrairo ao primeiro”.

Este dado suscita ao menos dois problemas conseqüentes que precisamos levantar. Em primeiro lugar, seria necessário verificar se teria ocorrido realmente uma mudança radical dos tempos e, em segundo, se comprovada a transformação, se ela teria motivado uma mudança de critérios por parte de Fernão Lopes no julgamento do novo rei em relação ao anterior.


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(20) Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap. XlII, pp. 57-59.

(21) Fernão LOPES. Crônica de D. Fernando. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1975. Prólogo, p. 5.

(22) Idem, p. 4.

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Problemas de amplitude considerável, como acreditamos serem os levantados, mereceriam um estudo mais profundo que infelizmente foge ao escopo deste trabalho. Aventuramo-nos entretanto, a antecipar uma conclusão escudando-nos apenas na análise do tratamento dado por Fernão Lopes à justiça de D. fernando: os critérios são os mesmos; raramente esse monarca recebe por parte de Fernão Lopes um julgamento diferente, em função de viver e reinar num

“outro mundo novo muito contrairo ao primeiro”.

Aliás, o reinado de D. Fernando mereceu críticas praticamente da unanimidade dos historiadores que o estudaram, sobretudo no que concerne à política externa (23), mas tendo também recebido duras críticas por falhas quanto ao

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(23) Cf. entre outros: Manuel NUNES DIAS. A depressão monetária do século XIV e a conquista henriquina da Senegâmbia. São Paulo, Ed. Safady, 1959, pp. 12-13, e O Descobrimento do Brasil. São Paulo, Pioneira, 1967, pp. 7-8; Jayme CORTESÃO. Os fatores democráticos... Op.cit., p. 133; Eduardo D’OLIVEIRA FRANÇA. Op.cit., pp. 166, 234 e 267; J. MENDES REMÉDIOS. Os judeus em Portugal. Coimbra, E. França Amado, 1895, pp. 159 e segs.; J. Lúcio de AZEVEDO. Épocas de Portugal Econômico. Op.cit., p. 39; Armando GUEDES. A Aliança Inglesa (Notas de História Diplomática), 1383-1943. Lisboa, Ed. Enciclopédia Ltda, 1943, p. 76; VIEIRA GUIMARÂES. A Ordem de Cristo. Lisboa, Imprensa Nacional, 1936, p. 99; Antonio Caetano de SOUZA. História genealógica da Casa Real Portuguesa, desde a sua origem até o presente, com as famílias illuftres, que procedem dos Reys, e dos Sereniffimos Duques de Bragança. Tomo II. Lisboa, Joseph Antonio da Sylva, 1946, Cap.I, pp. 1-2 e Cap.IX, p. 415 e segs.

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seu procedimento no âmbito interno (24).
Fernão Lopes critica D. Fernando por ter esbanjado os tesouros que seus antepassados haviam lhe assegurado, todavia suas guerras contra Castela são tidas pelo cronista como acontecimentos normais (25). Afinal, de mais de duas dezenas de cidades e vilas escreveram a D. Fernando pedindo que os tomasse por seus (26); e muitos nobres vieram-se a ele para conquistarem o que restava de Castela em mãos de D. Henrique.

Falhas táticas, talvez pela frouxidão de D. Fernando, são mencionadas por Lopes, entretanto o estado de guerra em si não é tido como erro. O erro está, pelo que se depreende da narração do cronista, em não tê-la vencido e com ela desgastado o reino português sem que com isso lhe adviesse qualquer honra.

Ultimamente, historiadores têm sustentado que a melhor política para D. Fernando não seria a intervenção em Castela mas sim, uma política voltada para o mar. Não erram talvez nesta análise. Todavia convenhamos: D. Fernando não possuia nem a gama de dados acumulados por esses historiadores


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(24) Antonio BRASIO, por exemplo, em seu artigo “Prisão do Mestre de Avis, por D. Leonor Teles”, publicado nos Anais da Academia Portuguesa de História, série II, vol. II 1949, p. 195, considera D. Fernando “um palhaço nas mãos hábeis de sua perversa mulher...”

(25) Em várias passagens Fernão LOPES denota que o dispêndio tinha como causa a inércia de D. Fernando. Cf. por exemplo, Cap. XLIV, p. 147 e Cap. L, p.171, da Crônica de D. Fernando.

(26) Cf. Fernão LOPES. Crônica de D. Fernando, Cap. XXV, pp. 87-89.
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nem uma mentalidade moderna ou contemporânea. Era um homem medieval e como tal procedia, achando acertado disputar o trono castelhano (27). Não nos parece ter sido

“empedercido egoísta, (que) lançou os seus subditos, só para satisfação de seus caprichos, em desastrosas guerras...”

como pretende Costa Lobo (28). Sem dúvida, embora contando com a eficiência da ação dos opositores de Pedro, o Cruel, foram desastrosas as guerras de D. Fernando, mas por coincidir que o reino de Castela, alvejado por ele para a expansão portuguesa, estivesse no mesmo estágio de desenvolvimento político-militar, rechaçando, portanto suas tímidas ofensivas.

Fernão Lopes critica essa atitude pouco aguerrida de D. Fernando, dando a entender claramente que suas severas admoestações são feitas à conduta leviana do soberano na condução da guerra e não pela sua promoção em si. Diz o cronista:

“Certamente el rrei don Fernando era mui prasmado dos poboos, dizendo que nehuu rrei podia acabar grandes feitos a que sse posesse, se ell per ssi nom fosse presente com os seus, pera os esforçar e mostrar sua ardileza, e que nehuua cousa


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(27) Fernão LOPES. Crônica de D. Fernando, cap. XXVII e XXVIII, pp. 93-98 relata como os fidalgos castelhanos eram bem “gasalhados” por D. Fernando e como agia nas cidades que lhe haviam tomado voz. Sua ação não é a de um simples conquistador, mas de um verdadeiro rei.

(28) Cf. A. de Souza Silva COSTA LOBO. História da Sociedade em Portugal no século XV. Lisboa, Imprensa Nacional, 1903, p. 282.
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lhe prestava sua macebia e ardimento pois el espalhava todas suas gentes, e se poinha em poder e consselho do conde dom Joham Affonsso Tello e d’outros, que por covardo encaminhamento lhe faziam entender que se non triguasse a poerbatalha, ca onde sse nom percatasse, toda Castella lhe obedeeceria: e per tall aazo este, gastava ell ssi e o rreino com mudança de moedas, por satisfazer a todos e perdia as gentes e logares que tiinha assenhorando-sse d’ell a covardice; assi que todo seu feito era de Santarem para Coimbra, e depois tornar a Lixboa, em guisa que ja as gentes tragiam por rrifam em escarnho dizendo: ‘Ex-vo-llo, vai, ex-vo-llo vem, de Lixboa para Santarem’ ” (29).

É fato também que a política externa de D. Fernando levou Portugal à beira do caos (30), e nem mesmo as providências sabias que tomou em benefício do reino reabilitam totalmente sua imagem de rei impecune. Mas vale a pena estudá-las segundo a ótica de Fernão Lopes, levando-se em conta que as guerras com Castela por certo prejudicaram o de senvolvimento harmônico de uma política de justiça social, mas com ou sem elas, D. Fernando, mostrou-se preocupado com o bem de seu povo e o progresso de seu reino. É bem verdade — e compreensível — que algumas medidas foram tomadas como forma de reparar males oriundos das próprias, guerras.


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(29) Fernão LOPES. Crônica de D. Fernando, cap. XXXVI, pp. 120 e 121. Convém ressaltar que era comum na época atribuirem-se as falhas ao Conselho do Rei e não propriamente ao soberano, todavia o fato da culpa recair sobre Afonso Telo, irmão da malfadada esposa de D. Fernando, parece ser sintomático: partidário da “Revolução de Avis” o cronista estaria preocupado em mostrar a falta de valor dessa família.

(30) Fernão LOPES percebeu claramente as nefastas conseqüências da guerra, ao reino. Cf. o Cap. LV, pp. 187-191, da Crônica de D. Fernando onde trata “Das moedas que el-rrei dom Fernando mudou, e dos preços desvairados que pôs a cada huma”.
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Todavia isso não se Constituiu em regra geral, muitas providências jurídico-administrativas bem podem ser consideradas como expressão de representatividade dos anseios da população do reino.

Uma das primeiras medidas tomadas por D. Fernando para a reorganização econômica do reino, foi a de corrigir o valor das moedas, adulterado violentamente, no período da guerra, para fazer face às despesas. Tal providência tomou-a por considerá-la

“serviço de Deus e desencarregamento de sua conciência e proll de seu pohoo...”(31).

O resultado, todavia não foi satisfatório, muito embora a moeda de D. Fernando fosse considerada “boa moeda antiga” e tanto superior à do primeiro Avis que o próprio D. João I ao mandar pagar uma dívida ao Concelho do Porto, estipulava, por lei de 30 de agosto de 1386, que fosse em moeda de D. Fernando ou na de Castela, e não na sua (32). A instabilidade monetária em Portugal não se fez sentir apenas no reinado de D. Fernando, esta aliás, se pronunciou mais, após sua morte, até meados da centúria de quatrocentos (33).


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(31) Fernão LOPES. Crônica de D. Fernando, cap. LVI, p. 193.

(32) Cf. A. de Souza Silva COSTA LOBO. Op.cit.. pp. 285-289.

(33) Cf. a respeito da desvalorização da moeda em Portugal neste período, entre outros: A. de Souza Silva COSTA LOBO. Op.cit., pp. 281e segs.; Manuel NUNES DIAS. A depressão... Op.cit., pp. 20-22; J. Lúcio de AZEVEDO. Op.cit., p. 47; Marcelo CAETANO. “O Concelho de Lisboa na crise de 1383-1385”. Anais da Academia Portuguesa de História, série II, vol. 4, pp. 192-195; Armando CASTRO. Op.cit., pp. 187-193; Joaquim VERÍSSIM SERRÃO. História de Portugal... Op.cit. vol. I, pp. 345 e segs e, principalmente, A. C. TEIXEIRA DE ARAGÃO. Descripção geral e História das moedas cunhadas em nome dos Reis, Regentes e Governadores de Portugal. Tomo I. Lisboa, Imprensa Nacional, 1874, pp. 173-216.
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Maior benefício social trouxe ao povo português a obra de reconstrução de vilas e castelos e a construção de muralhas em torno de algumas cidades, dentre as quais, pela
sua grandeza e serventia futura, destaca-se a cerca fernandina de Lisboa. De fato, as constantes guerras medievais traziam desassossego constante às populações que residiam entre-muros e a cerca de Lisboa evitou, sem dúvida, prejuízos iguais aos ocorridos durante a invasão de D. Henrique quando do cerco de quatro meses, promovido por D. João I de Castela, redundando em benefício tão significativo como foi a manutenção de independência (34).

Em sua obra de reforma econômica D. Fernando incentivou sobremaneira o comércio marítimo, concedendo privilégios a todos que comprassem ou fabricassem naus. A madeira utilizada para seu fabrico podia ser retirada das matas do rei; os materiais importados necessários à construção eram isentos de quaisquer impostos; isentos também eram os produtos transportados do reino na primeira viagem; e no torna-viagem, pagava-se apenas 50% de quaisquer mercadorias. Além dessas e outras vantagens, os armadores ficavam isentos de fintas, talhas e sisas (35).

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(34) Sobre a cerca fernandina cf. além do cap. LXXXVIII, pp. 307-310 da Crônica de D. Fernando, em que Fernão Lopes narra “Como el-rrei dom Fernando mandou cercar a cidade de Lisboa”. A.VIEIRA DA SILVA. A Cerca Fernandina de Lisboa. 2 vols. Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1948/1949, pp. 185, 190.

(35) Cf. Fernão LOPES. Crônica de D. Fernando. Cap. XC, pp. 317-318.

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O grande impulsodado ao comércio (36), por esta iniciativa, trouxe como conseqüência nova medida, ainda mais benéfica que a primeira: a organização de uma companhia de seguros marítimos em sua forma primitiva (37).

O alcance social dessas duas importantes iniciativas para o fomento do comércio português, não pode ser medido apenas pelo que representou aos armadores; ele se estendeu a um extenso segmento da população afeita ao comércio e navegação que, graças à proteção que lhe traziam essas leis, encontrava trabalho que lhe propiciava rendimentos para uma existência condigna.

Mas, segundo Fernão Lopes, essas providências adotadas e prol do comércio foran em, decorrência de uma

“Santa e proveitosa hordenaçon” (38)


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(36) Sobre o desenvolvimento do comércio português, cf. entre outros J. Lúcio de AZEVEDO, Op. cit. , pp. 81 - 82, Artur de MAGALHÃES BASTOS. Alguns documentos do Arquivo Municipal do Porto... Op. cit. , pp. 111 e segs.; Eduardo D’OLIVERA FRANÇA. Op. cit. p. 194; A. H. de OLIVEIRA MARQUES. Op. cit., pp. 136-139; Antonio SERGIO. Op. cit., pp. 6-7; Joaquim VERÍSSIMO SERRÃO. História de Portugal... Op.cit., vol. 1, pp. 327 e 355-359 e Virgínia RAU. Subsídios para o estudo das feiras medievais portuguesas. Lisboa, s.c.e., 1943, principalmente às páginas 23, 25,

39, 42, 62, 63 e 77; esta última obra no que diz respeito especificamente ao desenvolvimento das feiras.

(37) Cf. Fernão LOPES. Crônica de D. Fernando, cap. XCI, pp. 319-324.

(38) Idem, cap. XC, p. 317.
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que fizera anteriormente. Trata-se da Lei das Sesmarias.

Temos enfatizado que após as duas primeiras guerras contra Castela, D. Fernando adotou medidas para sanar os males que afetavam toda a economia portuguesa. De fato a situação era crítica. Fernão Lopes ao narrar a abertura das Cortes de Santarém de 1375, nos oferece uma idéia clara dessas dificuldades:

“... el-rrei nosso senhor que aqui esta, consiirando como per todallas partes de seu rreino há gram fallecimento de trigo e cevada e outros mantimentos, de que entre todallas terras do mundo ell sohia de seer mais abastado, e esse pouco mantimento que hi ha he posto em tanta carestia que aquelles que am de manteer fazenda e estado nom podem cheguar a aver essas cousas sem gram desbarato d’aquello que am...”

E diagnosticado o mal, no não aproveitamento da terra, propôs logo o remédio: quem tivesse terras a qualquer título, deveria cultivá-las, e se não pudesse, por serem muitas ou se localizassem em regiões diferentes, deveriam colocar lavradores que as aproveitassem. Quem não tivesse bois suficientes deveria adquirí-los, devendo as justiças assegurar para isso preços justos. As justiças deveriam incumbir-se também de arrendar as terras dos que possuindo-as não as aproveitassem, ficando o produto para o proveito comum. Todos os lavradores, seus filhos e netos e aqueles que exerciam ofícios considerados dispensáveis eram obrigados a lavrar a terra, salvo se possuíssem um patrimônio de 500 libras. Os ociosos — tanto mendigos, como os que se denominavam moços do rei ou da rainha, sem o serem e os que se disfarçavam em religiosos — só poderiam continuar mendigando se fossem comprovadamente incapazes de trabalhar, sob pena


de serem açoitados e degredados (39).

Damião Peres informa-nos que o verbo “constranger” é empregado dezoito vezes nesta lei — Fernão Lopes usa-o sete vezes para narrar essa capítulo — que

“atacando o direito de propriedade e a liberdade individual de escolha de profissão, subordinando tudo ao bem da nação, atesta a energia do monarca” (40).

Se dermos fé Fernão Lopes, a essa

“hordenaçon (...) se seguia, gram proveito a ell e a todo o poboo do rreino...”(41).

Algum efeito deve ter-se feito sentir, todavia por pouco tempo. O próprio D. Fernando encarregou-se de arrancar lavradores de seu trabalho para servirem nas gales, que participaram da terceira, e não menos infeliz, guerra promovida contra Castela (42) e a guerra da Independência, travada concomitantemente à ascenção da dinastia de Avis comprometeu definitivamente essa reforma (43).


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(39) Cf. Fernão LOPES. Crônica de D. Fernando. Cap. LXXXIX, pp. 311-316.

(40) Damião PERES. História de Portugal. Porto, Portucalense Ed., 1951, vol. II, p. 349 (Ed. Monumental).

(41) Crônica de D. Fernando. Cap. XC, p. 317.

(42) Cf. Fernão LOPES. Crônica de D. Fernando. Cap. CXXIV, p. 439.

(43) Cf. Joaquim VERÍSSIMO SERRÃO. História de Portugal. vol. I, p. 349.

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De qualquer forma, esta lei de 28 de maio de 1375, constituiu-se na medida de maior alcance político, econômico e social do reinado de D. Fernando (44).

Mas que dizer da imagem daquele que foi, segundo Fernão Lopes, o

“mais excellente dos reys que em Portugal reynarom...” (45);

D. João I, em termos de Justiça Social?

Para o cronista, a principal virtude de D. João I não estava na justiça, mas na grandeza,

“da quall em todos seus trabalhos nunca se esqueçeo dhussar...” (46).

Mas, a grandeza não era sua única virtude e sim a principal; a justiça também completava as qualidades desse “hemauemturado” rei.

“Nom era sanhudo nem cruel”

— diz Fernão Lopes —

“mas manso e benignamente castigaua; assy que amballas virtudes que no Rey deue dauer, saber, justiça e piedade, eram em el compridamente” (47);

mesmo porque, coerentemente, Fernão Lopes considera que

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(44) Cf. Joaquim VERÍSSIMO SERRÃO, Op. cit., p. 351.

(45) Crônica del Rey Dom Joham I, parte II, prólogo, pp. 2-3.

(46) Fernão LOPES. Crônica del Rey Dom Joham I, parte II, prólogo, p. 3.

(47) Fernão LOPES. Idem, p. 2.

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“mor causa he reger huum regno justo e temperadamente que o auer de gaanhar...” (48).

Se na crônica de D. João I — a mais vasta de todas as escritas por Fernão Lopes — não encontramos um número mais elevado de páginas dedicadas à justiça é porque os feitos de guerra mereceram maior atenção. Afinal, Fernão Lopes mostrou ter percebido perfeitamente que era a independência nacional que estava em jogo e daí seu entusiasmo em relatar seu desenrolar; daí a oportunidade de descrever passagens heróicas, muito mais ao gosto dos leitores medievais.

De qualquer forma existem referências significativas à justiça, que endossam tudo aquilo que foi posto em “prólogo” por Fernão Lopes e que transcrevemos acima. Ademais, D. João I, aparece para o cronista, além de herói nacional, como que uma espécie de novo justiceiro.

Várias passagens da crônica de D. João I denotam essa imagem, todavia é suficiente ler a narração da reação do povo de Lisboa, imediata ao assassinato do Conde João Fernandes Andeiro, para sentir que o então Mestre de Avis iniciou sua caminhada política em direção ao trono, vingando a sociedade portuguesa dos ultrajes que sofria da parte da Rainha e do Conde. Matam o Mestre: Gritava um pagem pelas ruas. Na verdade, morto, estava o Andeiro. O assassinato foi bem planejado, o que se pretendia era colocar o povo ao lado de D. João. A execução do plano parece não ter sido

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(48) Fernão LOPES. Crônica del Rey Dom Joham I, parte II, prólogo, p. 3.

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difícil:

“A gemte começou de sse juntar a ele, e era tanta que era estranha cousa de veer. Não cabiam pellas rruas principaaes, e atravessavam logares escusos, desejando cada huum de seer o primeiro; e preguntando huus aos outros quem matava o Mestre? Nom mimguava quem rrespomder que o matava o Conde Joham Fernandez, per mamdado da Rainha”.

E quando o Mestre mostrou-se, diziam uns aos outros:

“Oo que mall fez! Pois que matou o treedor do Comde, que nom matou logo e a alleivosa com elle”.

Também os “homens bons” de Lisboa julgavam, segundo se depreende da mesma crônica, que a morte do Andeiro era necessária ao bem do reino. Reunidos alguns deles na casa do Conde de Barcelos, irmão da rainha, esperavam o mestre para o “jantar” e quando de sua chegada o Conde abraçou-o dizendo:

“Mantenhavos Deos, Senhor. Sei que nos tirastes de gramde cuidado, mas vos mereçiees esta honrra melhor que nos” (49).

Várias outras passagens da crônica de D. João I denotam a séria preocupação que se tinha acerca da justiça. As Cortes realizadas em 1385, propuseram ao recém-eleito rei de Portugal que tivesse

“boons conselheiros os quaaes amdassem sempre com elle, para seu regimento seer mais perfeito e o regno mantheudo em dereito e em justiça; e pois dos conselheiros proçedia muyto mall e dano ou

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(49) Cf. Fernão LOPES. Crônica dei Rey Dom Joham I. Parte I, cap. XI, pp. 21-23.

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bem e proueito segundo o conselho que aos reis dauam...” (50).

Dessa proposta feita em Cortes deduzimos a decorrência de dois fatos significativos: o rei não era diretamente responsabilizado por um eventual ato de mau governo ou decisão, sua pessoa era resguardada ao máximo (51); propondo bons conselheiros, inclusive solicitando o afastamento de certos elementos e citando nominalmente sua preferência por outros (52), o povo não fazia outra coisa senão salvaguardar seus direitos sociais adquiridos junto ao rei para possibilitar-lhe outras conquistas.

A guerra de independência absorveu, como já tivemos oportunidade de referir, muito mais a atenção dos contemporâneos que quaisquer outros problemas do reino. compreensível que um perigo eminente fizesse com que outras questões fossem relevadas. Mas, terminada a guerra, o rei tentou justificar porque fechara os olhos diante de tantos erros praticados


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(50) Fernão LOPES. Crônica del Rey Dom Joham I, parte II,cap. I, p. 4.

(51) O povo de Lisboa ao aconselhar D. Fernando no sentido de que não esposasse D. Leonor Teles referenda este fato. É o próprio Fernão LOPES, na Crônica de D. Fernando, cap. LX, p. 209, quem diz que “Os poboos do rreino, rrazoando em taaes novas, cada huus em seus logares, jumtavom-sse em magotes, como he husança, culpando muito os privados d’el-rrei eos grandes da terra lh’o conssentiam (grifo nosso) e que pois lh’ o elles nom diziam como compria, que era bem que sse juntassem os poboos e que lh’o fossem assy dizer.

(52) Cf. Fernão LOPES. Crônica del Rey Dom Joham I, narte II, cap. pp. 4-5.
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dizendo que

“posto que eu entemdesse que bem nam fazia, convinha-me de outorgar em taees tempos por conprazer aos fidalgos que mos pediam. E por quando eu entendo que huma das coussas a que muyto obrigada sinto mynha alma, quanto a Deus e quamto ao mundo, asy he o feyto da justiça, tanto per Deus ao rey eucomemdada...” (53).

Essa preocupação endossa mais uma vez o conceito do “rei justiceiro”, tantas vezes citadas. A primeira providência tomada por D. João I, no sentido de restabelecer no reino, o estado de justiça, foi todavia, totalmente oposta às atitudes de seus predecessores. O Rei conferiu a Nuno Alvares Pereira, seu condestável, o direito de ministrar justiça em última instância entre o Tejo e Odiana e em todo o reino do Algarve. Ora, temos visto que mesmo os monarcas considerados mais fracos da dinastia anterior, como D. Fernando, não abriam mão de suas prerrogativas de “mais alto senhorio”. Por que o faria o vitorioso D. João?

Talvez pelo fato de que, em conseqüência da guerra, a terra estivesse muito “myngoada” de justiça, é que o rei pedia ao condestável

“que asy como elle fora seu ajudador e parçeiro em trabalhar por ganhar o reino e o ajudara a deffender, que asy lho ajudasse a governar em boa e dereyta justiça, tomando carrego da justiça dantre Tejo e Odiana, e iso mesmo do reino do Alga- rue, sem mais alçada que para elle vyesse...” (54).


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(53) Cf. Fernão LOPES. Crônica del Rey Dom Joham I. Parte II, cap. CCI, p. 415.

(54) Idem, ibidem.
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De fato, o próprio rei admitia que a justiça

“per azo da pressente guerra cada vez fora mays myngoada e deitada em deuassidade, atreuendosse os homeens a cometer muytos mallefiçios, emtemdemdo que por servirem em ella, lhe avyam de ser relleuados, chegamdo-sse a taees capitaëes que lhe de seus erros ganhauão perdão”.

E D. João I procurava justificar seus atos parciais ou convencer Nuno Alvares a aceitar tão pesado encargo dizendo que,

“posto que eu entemdesse que bem nam fazia, convinha-me de outorgar em taees tempos por comprazer aos fidalgos que mos pedia” (55).

O condestável aceitou a incumbência e, já pela própria forma da resposta dada ao rei, percebe-se claramente que o conceito que formava em torno da justiça não diferia em nada do de seus contemporâneos. Referindo-se à aplicação da justiça afirmava que

“certamente, como vos dyzees, este he o moor encarrego que o rey da terra tem, e que entre as coussas mays lhe a de ser demandada; da qual nam devya de devysar por criação, nem rogos de pessoas nem outra coussa que se dizer possa . .. mas pois vossa merçee he de me dardes encarrego dello, a mym me praz, por seruyço de Deus e vosso, porque vejo que a terra he muy myngoada della, de o thomar e de poer em elo maão no mylhor modo que me Deus encamynhar” (56).

Assim iniciou, o conde, sua nova atividade, e Fernão Lopes, que viu em Nuno Alvares um consagrado herói nacional


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(55) Cf. Fernão LOPES. Crônica del Rey Dom Joham I. Parte II, cap. CCI, p. 451.

(56) Idem, p. 452.
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nas lides de guerra, também enaltece seus feitos em termos de justiça. As palavras que usou para o condestável como “justiceiro” foram poucas, mas significativas.

“O conde tomou carrego da justiça daquella comarca ... e pos em ella maão de tal guysa que a terra em pouco tempo foy assessegada e a justiça semtida; porque elle em tal jeyto nam tynha ley nem affeyção com grande nem pequeno nem criado nem amigo, por seu diuydo que fosse, temdo Deus ante seus oolhos, a que se nam escomde coussa alguma, e a ballança dereyta a todos...” (57).

Mas certa feita, relata Fernão Lopes, o rei escreveu ao condestável

“sobre huum caualleiro, seu criado, que mamdaua justiçar, que se ouuesse com elle per outra maneyra, posto que merecedor fosse”.

Nuno Álvares, coerentemente com suas atitudes pregressas, ditadas pelo seu enérgico temperamento,

“respondeo que pois asy era, que tal carrego nam pertencia senam a elle, pedio-lhe por mercee que lho tirasse; e nam quyz delle mays hussar” (58).

Essa desavença entre o rei e o condestável não permitiu que se concretizasse no reino uma cisão quanto à aplicação da justiça, permanecendo única e exclusivamente em
mãos do rei a prerrogativa do mais alto senhorio.

Em termos de justiça social, a mais proveitosa providência tomada por D. João I, embora não possamos avaliar


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(57) Cf. Fernão LOPES. Crônica del Rey Dom Joham I. Parte II. Cap. CCI, p. 453.

(58) Idem, ibidem.

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o grau de sua concretização, foi sem dúvida, a narrada por Fernão Lopes, no capítulo CCII, de sua Crônica. Trata do orçamento do reino. Estimadas as receitas, providenciaram-se cortes profundos nas despesas da casa real, propiciando um superavit de “dez myl dobras” para “outras coussas que conprisem” serem feitas em prol do reino.

Essas dez mil dobras sobejavam mesmo tendo em conta a medida tomada concomitantemente aos cortes das despesas, e de grande alcance social, qual seja, a redução de um terço do valor cobrado das sisas (59). Sem dúvida, após tantos percalços em função da guerra, é de se supor um certo alívio para o povo ao ter seus impostos reduzidos (60).

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(59) Cf. Fernão LOPES. Crônica del Rey Doum Joham I. Parte II. Cap. CCII, pp. 456-457.

(60) Lógico que se tomarmos por base que as sisas primitivamente eram cobradas apenas em certas eventualidades das quais as mais representativas, eram as guerras, a redução não significa muito; ao contrário, ela seria nada mais nada menos que a consolidação desse imposto, e o desconto da terça parte, portanto, não traria vantagem alguma. Ocorre que, lançadas pela primeira vez no reinado de D. Afonso IV, essas sisas acabaram se transformando em impostos usuais (Cf. Fernão LOPES. Crônica del Rey Dom Joham I. Parte II, cap. CCII, pp. 455-456), estando definitivamente consolidadas no reinado de D. João 1. Dada esta consolidação é que se presume ter sido sua redução altamente significativa e benéfica ao povo em geral.