PARTE II

A JUSTIÇA REAL EM FERNÃO LOPES

Capítulo II - PERFIL DE FERNÃO LOPES

Poucos são os críticos de Fernão Lopes que denigrem sua imagem de cronista brilhante e amante da verdade. O General Moraes Sarmento, que por sua obra — “D. Pedro I e sua época” — pode ser considerado o seu mais veemente detrator, encontrou, em Gonçalves Ceregeira, a resposta categorizada que restituiu a autoridade ao consagrado cronista português, se é que esta chegou a ser abalada pelas críticas de Sarmento (1). O Conde de Vila França, que também em algumas oportunidades chegou a ser duro demais em suas críticas a Fernão Lopes, denota uma certa incoerência, pois as inúmeras citações que faz do cronista demonstram por si, que as suas crônicas constituem-se em fonte fidedigna (2). Já Antonio Brásio, ao dizer que:


_________________

(1) Cf. M. GONÇALVES CEREJEIRA. Do valor histórico de Fernão Lopes: Esboço crítico de “D. Pedro I e sua ópoca”, do Sr. General Morais Sarmento. Coimbra, Universidade de Coimhra, 1925, p. 60.

(2) Na obra do Conde de VILA FRANÇA. D. João I e a Aliança Inglesa. Lisboa, Investigações Histórico-Sociais, 1050, en contram-se às pp. 94-96, 108, 230, 237-238, duras críticas a Fernão Lopes. O Conde chama-o de “arteiro” e acusa-o de esconder a verdade; todavia, faz em seu trabalho nada menos que 138 citações do cronista, o que inegavelmente, denota que “a importância dos seus depoimentos pode ser medida pelo vasto número de citacões da Crônica que se pode encontrar em qualquer estudo sério de História Medieval Portuguesa, tal é a riqueza de elementos que fornece, e a sinceridade e fidelidade de que se reveste a narração dos acontecimentos”. M.Lúcia Perrone de FAROPASSOS. O herói na crônica de D. João I, de Fernão Lopes. Lisboa, Prelo Ed., 1974, n. 213.

_________________

“ Fernão Lopes é um cronista palaciano, oficial, a soldo do estado e portanto, de certo modo, ‘comprometido’ “ (3),

apesar de ser um pouco severo, não deixa de retratar uma opinião aceita por grande número de historiadores.

De fato, Fernão Lopes era assalariado régio para escrever os feitos dos soberanos (4), todavia, isso não significa exatamente um comprometimento total com seus empregadores. Ele não nos parece ser o bajulador que pretende Vila Franca; mas, homem consciente da realidade em que vivia não poderia também deixar de render-se ao inevitável: ressaltar as boas qualidades dos reis.

Por este fato que provavelmente Vila Franca o acuse de bajulador, esquecendo-se que o realce dado pelo cronista à verdade e sinceridade dos elogios fosse talvez, como que a abertura de um largo caminho por onde pudessem transitar livremente as suas opiniões sobre o comportamento dos soberanos e dos acontecimentos que narrou.


_________________

(3) Cf. Antonio BRÁSIO. “A argumentação de João das Regras nas Cortes de Coimbra de 1385”. Anais da Academia Portuguesa de História, II série, vol. II, 1949, p. 201.

(4) Cf. entre outros: P. E. RUSSEL. As fontes de Fernão Lopes. Coimbra, Coimbra Ed., s.d., p. 3.

_________________

Não é o caso, neste trabalho, de nos preocuparmos com o método, nem com a técnica de manuseio das fontes utilizadas por Fernão Lopes. Não por julgarmos desinteressante um reestudo, através do qual se procedesse à analise das di vergências de apreciação dos historiógrafos que se dedicaram ao assunto, mas porque isto nos afastaria de nosso tema central que é o Rei como fonte de justiça. Todavia, como estudar a justiça em Fernão Lopes sem qualquer referencial a seu respeito dificultaria nossa compreensão, optamos por traçar um perfil desse cronista, e para tanto, ao invés de um apanhado geral, preferimos deixar que falassem alguns historiógrafos a respeito dele:

“... Fernão Lopes, porém, ainda um homem ‘medieval’ , combinou o inevitável louvor aos vencedores com um relato franco dos acontecimentos dos seres humanos, que o tornou espontaneamente ‘moderno’ e científico” (5).

“Fernão Lopes (...) é o cronista de uma causa nacional e patriótica que triunfou. É o grande cronista da historiografia medieval. É o primeiro cronista moderno. De grande visão da realidade social de sua época, o seu critério de seleção e de crítica aproxima-o, surpreendentemente, da historiografia do século XIX. É um homem do povo que toma posição no quadro das lutas políticas e sociais do seu tempo. Suas crônicas advogam as causas populares. Todas elas mostram as convulsões da nação. Não é um adulador. É um homem que exprime a consciência nacional ferida num momento de crise aguda. Afigura-se-nos superior a Froissart” (6).

__________________

(5) A.H. de OLIVEIRA MARQUES. Op.cit., p. 277.

(6) Manuel NUNES DIAS. A depressão monetária do século XIV e a concluista henriquina da Senegâmbia. São Paulo, Ed. Safady, 1959, p. 13. Em obra posterior: O descobrimento do Brasil. São Paulo, Pioneira Editora, 1967, p. 8, retifica a expressão “afigura-se-nos superior a Froissart” por “Sob certos aspectos superior a Froissart”.

__________________

“Fernão Lopes é considerado o primeiro dos nossos historiadores (...). Primor literário, sóbrio e adequado; verdade e clareza na exposição: coordenação e dedução natural na narrativa; crítica imparcial e perspicaz dos acontecimentos, são requisitos necessários ao historiador e abundantes em Fernão Lopes”

e na Crônica de D. João I.

“mais do que nenhuma outra, aparece em todo o seu esplendor o estilo apropriado, pitoresco, brilhante, por vezes roçando-se até com o sublime, de Fernão Lopes” (7).

“Em contraste com o cronista castelhano (Ayala). Lopes é curiosamente ingênuo em matéria de política ou de ciência militar, só conhece a superfície brilhante dos factos; mas em compensação conhece muito melhor o coracão do homem médio, os sentimentos de patriotismo e toda a gama de emoções que Ayala nunca tem em conta. Conhece a gente meuda; Ayala só a Corte e as Cortes” (8).

“Não precisamos elogiar Lopes pelas qualidades que ele não possui e é um tanto ingênuo continuar a tomar a afirmação nas suas intenções como medida do que conseguiu. Tem os seus defeitos: mas tem

__________________

(7) Anselmo BRAANCAMP FREIRE. Crônica de Dom Joham I. Primeira parte. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1977, pp. V e XX, respectivamente.

(8) William J. ENTWISTLE. “Prolegómenos a uma edição de Fernão Lopes”. In Crônica de Dom Joham I, Segunda parte, p. XXIII.

__________________

grandes qualidades que não deve a ninguém, cuja existência ele próprio ignorava e que o colocam ao níve1 dos mais ilustres entre os cronistas medievais. Por sobre estas virtudes humanas de vivacidade, afinidades com o povo comum e participação em todos os sentimentos generosos, estende-se o rico manto do seu estilo, caloroso, variável, adequado em todos os momentos, directo e ági1, lançando-se em abertas ironias ou erguendo-se a uma grandiosidade épica, raras vezes se apagando, e brilhando em passos de inesquecível gênio” (9).

“... o nosso cronista, que tão bem sabe sentir os anseios de todos os portugueses, não é apenas o porta-voz de uma classe, o historiador da arraiamiuda, do clero ou da nobreza, mas o intérprete do sentimento nacional que, sob a égide da realeza, se afirmara e resolutamente seguia o seu caminho” (...). “Afinal, Fernão Lopes é bem o homem do seu tempo, que sabe plasmar os seus sentimentos e as suas aspiracções mais altas. Para além do transitório, do acidental, do pitoresco, conseguiu, realmente visionar o quadro em toda a sua épica grandeza; compreendeu-o, e por isso soube interpretá-lo” (10).

“Fernão Lopes é na sua época um homem de superior cultura, pela riqueza da sua experiência humana, pelas suas leituras, que incluem filósofos, ao menos

_________________

(9) William J. ENTWISTLE. Op. cit., p. XXVII.

(10) Torquato de SOIJZA SOARES. Crônica de D. Pedro I. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1963, pp. 20-21.

_________________

Aristóteles, Cícero e Santo Agostinho, e sobretudo pela sua produção em história” (11).

“... em Lopes há alguma coisa mais do que o gênio com que uma escola se distinguiu. Se não foi o primeiro cronista português, foi, sem dúvida, o primeiro dos historiadores modernos. Pela maneira como se aproveita dos documentos, pelas especulações sobre o método histórico, e pela introdução do elemento colectivo na narrativa, ele inaugurou uma época nova na história da historiografia” (12).

“Desejava honestamente escrever a verdade; mas, como bom patriota, acreditava que era verdade aquilo que era mais favorável à sua Pátria” (13).

“Ao abordar, porém, os documentos e testemunhas de que se valeu para elaborar a sua obra, não se despiu o cronista dos conceitos, preconceitos, padrões e ideais próprios a um vilão-intelectual português, e do século XIV” (14).

“Dentro de seu esquema mental fortemente hierarquizado, que mais desejava o próspero vilão, por ‘progressista’ que fosse, além de um rei, um líder bom e justo, que pusesse ordem ao país e


__________________

(11) Antonio BORGES COELHO. Crônica de D. Pedro. Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 27.

(12) P. E. RUSSEL. Op. cit., p. 45.

(13) William J. ENTWISTLE. Op. cit. , p. XXVI.

(14) M. Lúcia Perrone de FARO PASSOS. Op. cit. , p. 18.

__________________

cuidasse para que fossem atendidas as reivindicações dos trabalhadores?” (15).

Diante de tantas opiniões favoráveis a Fernão Lopes bem poderíamos nos calar e prosseguir em nosso trabalho, todavia, para marcarmos definitivamente nossa opinião diremos mais algumas palavras, a título de conclusão. Não se observa em Fernão Lopes o herói hipertrófico. Se o Condestável e o Mestre de Avis ocuparam lugares de destaque em suas crônicas, também o povo comum, a “arraia-meúda”, a heróica Lisboa personalizada, mereceram significativo realce. Assim, se tivessemos que enquadrar a obra de Fernão Lopes dentro de esquemas teóricos, estaríamos muito mais propensos a situá-la no seio dos que prescrevem um

“juízo equilibrado entre a criação coletiva e das personalidades representativas”(16).

do que entre os que superestimam o indivíduo como herói (17). O esquema mental de Fernão Lopes é fruto da época em que viveu — dificilmente haveria de ser diferente — e esse fato, aliado ao seu firme propósito de somente escrever a verdade, nos deixa seguros de que a expectativa dos seus contemporâneos em torno da justiça real fielmente retratada por sua pena.

_________________

(15) M. Lúcia Perrone de FARO PASSOS. Op.cit., p. 20.

(16) Jayme CORTESÂO. Os fatores democráticos... Op.cit., pp. 7-8.

(17) Por ser um dos mais antigos desses cultuadores de heróis, tomamos por exemplo Tomás CARLYLE. Los heroes - Culto a los heroes. Lo heróico en la História. Madrid, s.c. p., 1932.

_________________

Em um autor que tem a justiça como suporte dos reinos (18), não se poderia deixar de encontrar vastas referências acerca do assunto. De fato, em todas as suas crônicas, Fernão Lopes atribui especial ênfase àquilo que considera virtude soberana, rainha e senhora de todas as outras virtudes. Mas, especialmente na crônica de D. Pedro que essa tendência aparece de maneira visivelmente acentuada. Basta um exame rápido do prólogo dessa crônica para se perceber que nele afloram alguns conceitos importantes sobre justiça; conceitos esses que serão uma constante em toda sua obra.

A justiça, para Fernão Lopes, engloba todas as demais virtudes; o que, de certa maneira não se pode considerar um conceito inédito. Já Aristóteles afirmava que:

“Freqüentemente também a justiça parece a mais importante das virtudes, e mais admirável mesmo que a estrela da tarde e que a da manhã. É o que faz que empreguemos correntemente o provérbio: a justiça contém todas as outras virtudes. Ela é uma virtude absolutamente completa porque a sua prática é a da virtude realizada: Ora este carácter de virtude realizada provém o seguinte facto: o que a possui pode manifestar igualmente a sua virtude a respeito de outrem e não somente em relação a si mesmo” (19).


_____________

(18) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro. Prólogo, p. 4.

(19) ARISTÓTELES. Éthique à Nicomaque. Paris, Garnier-Flammarion, 1965, p.125. Apud Antonio BORGES COELHO. “Ideologia e história na crônica de D.Pedro. In Crônica do Senhor Rei D. Pedro, p. 18.
_____________

De que Fernão Lopes tinha conhecimento de Aristóteles não há duvida, o filósofo grego é citado como sendo um

“claro lume de filosofia” (20);

difícil se torna provar se o conceito aristotélico de justiça foi empregado através do conhecimento direto ou indireto do cronista. Mas isso pouco importa, a verdade é que Lopes, de uma forma ou de outra, transladou tal conceito da velha Grécia; ou de Roma, se considerarmos o conhecimento que tinha de Cícero (21) revivendo-o em Portugal com originalidade.

Sua preocupação tão grande com a justiça, quer nos parecer, se devia à conjuntura da época em que viveu; em tempos de costumes violentos — como retratamos em outro capítulo (22) – onde a insegurança pairava como um fantasma a amedrontar os espíritos coevos, que preferiram trocar de bom grado a liberdade pela segurança que a correta administração da justica ensejava, é natural que a justiça ocupasse lugar tão destacado.

Não há dúvida de que para desempenhar suas funções na sociedade o homem precisa de segurança. Seguro, suas atividades são desempenhadas com muito mais perfeição

__________________

(20) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, cap. XXIX, p. 136.

(21) A justiça, para Cícero, constitui a “ordem ou sociabilidade”, virtude que, para ele, ocupa lugar de fundamental importância dentre as virtudes morais. Cf. Antonio BORGES COELHO. Op.cit., p. 18.

(22) Cf. o capítulo I da Parte I deste trabalho.

__________________

que se estivesse em permanente estado de alerta.

No transcurso da Idade Média, vigorando costumes violentos que fogem aos nossos atuais padrões de comportamento, é de se imaginar a impossibilidade da vida em comum, não houvesse um poder regulador das atividades humanas. Esse, pelo menos, devia ser o pensamentn de Fernão Lopes ao sublinhar na justica real a razão do estabelecimento do poderio dos reis (23). De fato, a fragilidade da máquina do Estado dava força ao arbítrio particular e talvez por isso, a doutrina de centralização do poder monárquico, que já ensaiava nesse tempo os seus primeiros passos, encontrou em Fernão Lopes, senão um teórico brilhante, ao menos um defensor sagaz. Centrada nas mãos do Rei a autoridade de distribuir justiça, proporcionar-se-ia, segundo Fernão Lopes, a harmonia social tão necessária para o progresso da sociedade.

Não houve espaço na obra de Fernão Lopes para discorrer sobre outros modos e definições da justiça, por isso foram postas de lado; interessava muito para o cronista sublinhar o valor

“somente daquela pera que o real poderio foi estabelecido, que he por seerem os maaos castigados e os boons viverem em paz...” (24).

__________________

(23) Cf. Fernão LOPES. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro. Prólogo, p. 3.

(24) Idem.

__________________

Esse caráter social atribuído à justiça não significa exatamente que fosse em detrimento da justiça divina, como preteridem, alguns (25), afinal, a justiça cousa

“que a Deos mais praz”

e, sendo o rei um vigário de Deus na terra, como apregoava a doutrina da época, a justiça real era como que a justiça divina aplicada indiretamente.

A verdade é que Fernão Lopes, apesar de destacar a importância da justiça real, em momento algum de sua obra, conferiu aos reis poderes judiciários exorbitantes para a época. Aos monarcas competia castigar os maus e propiciar vida pacífica aos bons, dentro de certos limites que as concepções daquele tempo impunham. O temor dos reis em serem punidos na hora do acerto final de contas com Deus, trazia por si, uma preocupação muito grande em serem justos. Também as leis, chamadas “principe nom animado”, delimitava o poder dos reis. Isso sem falar no poder dos grandes senhores e em outros fatores circunstanciais.

Esquematicamente o conceito de Fernão Lopes sobre justiça pode ser resumido da seguinte forma: o rei e o povo deviam possuir a virtude da justiça, aquele, para fazer leis justas, este, para segui-las. As leis


__________________

(25) Cf. Antonio BORflES COELFTO. “Ideologia e FTistria na Cr6nica de D. Pedro”. In Cr6nica de D. Pedro. Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 16.

__________________

“representam com vozes mortas, o que o Rei diz per sua voz viva...”;

obedecendo às leis haveria no reino segurança necessária para a prosperidade. Um reino sem justiça seria como um corpo sem alma, no sentido de que a alma suporta o corpo da mesma forma como a justiça sustenta os reinos.

Mas devemos observar um detalhe sobre a afirmação de que

“... o real poderio foi estabelecido, que he por seerem os maaos castigados e os boons viverem em paz...”.

Ele não significa que castigando os maus, os bons vivessem em paz. É lógico que se os maus eram punidos, a sociedade tranquilizava-se, mas isso não era tudo. Nesse caso o rei aparecia como

“vingador da sociedade ultrajada”,

e esta se constitui numa faceta da imagem real como fonte de justiça em Fernão Lopes. Todavia, para que os bons vivessem em paz era necessário mais que o puro e simples castigo aos maus, era preciso o desenvolvimento da prática de uma justiça voltada para o bem comum, de uma “justiça social” que se constitui na outra faceta de justiça enfatizada por Fernão Lopes.

Analisemos estas duas modalidades de justiça separadamente nos capítulos seguintes.