INTRODUÇÃO

Nossa preocupação, ao iniciarmos esta dissertação, foi a de estudar o comportamento dos reis, no que concerne à aplicação da justiça, baseados nas crônicas de Fernão Lopes. Seria a forma de explorarmos uma fonte tão rica, voltando nossa atenção para um assunto que somente foi abordado até então de forma genérica e esparsa. Reunir num só trabalho, toda a concepção de Lopes em torno da justiça real, constituiu-se, portanto, em nossa idéia básica.

Não foi necessário muito esforço para percebermos que a justiça real mereceu um grande espaço na obra de Fernão Lopes, diríamos mesmo que foi tratada com especial atenção pelo cronista. De fato, já no prólogo da “Crônica de D. Pedro” fica patente a acentuada importância que o cronista atribui justiça ao considerá-la mãe de todas as virtudes e, inclusive, a própria razão do estabelecimento do poderio real. E se nas outras duas crônicas — de D. Fernando e D. João I — diminui a quantidade de referências à justiça real não é pelo fato de ter sido relegada por Fernão Lopes. Na verdade, tanto na “Crônica de D. Fernando”, como na de “D. João I”, os feitos militares ocupam um maior número de páginas — talvez pela preferência dos leitores medievais em acontecimentos dessa natureza — mas isso não significa uma mudança de concepção do cronista, que continua ressaltando com certa freqüência a fundamental importância que, para ele, tem a justiça real.

O fato de Fernão Lopes atribuir tanta importância à justiça deve-se, em nossa maneira de ver, a três razões principais que se completam: a primeira, diz respeito aos costumes violentos que vigoravam na época; a segunda, tendência de centralização do poder monárquico que já se manifestava de forma embrionária e que encontrou em Lopes um sagaz defensor e, finalmente, a terceira deve-se à doutrina vigente na época, motivando nas diferentes camadas sociais uma expectativa favorável à ação do soberano no que concerne a detenção do “mais alto senhorio”.

Na primeira parte de nosso trabalho dedicamos um capítulo para a abordagem dos costumes violentos que imperavam no fim da Idade Média — por ser esta a época que nos diz respeito — e outro, para a expectativa dos contemporâneos em torno da justiça. Quanto ao primeiro tema, tendo plena consciência de que não nos aprofundamos muito — aliás, em nenhum aspecto abordado temos a pretensão de esgotar o assunto — preferimos considerá-lo em alguns de seus aspectos. Seguindo este raciocínio julgamos coerente denomina-lo “Aspectos da violência no final da Idade Média”. Afinal, o que pretendemos com essa abordagem caracterizar, no período, costumes que, fugindo aos padrões atuais de comportamento, sejam capazes de justificar a preocupação dos contemporâneos em torno da justiça.

Os homens mais clamam por justiça em épocas de violência, de insegurança, de instabilidade. Mas a que justiça? A dos grandes senhores, que muitas vezes abusavam de suas prerrogativas? A divina, tão distante do duro labor cotidiano? Os contemporâneos clamavam pela justiça real, porque enxergavam no soberano a força capaz de por cobro aos abusos dos senhores e também porque, sendo o rei representante de Deus na Terra, eram tidos e havidos por verdadeiros intermediários na distribuição da justiça divina.

Não havia camada social, por mais “meuda” ou poderosa que fosse, que não se curvasse diante da idéia predominante de que ao rei cabia o “mais alto senhorio”. Claro que os poderosos eram mais rijos, admitiam no rei a prerrogativa de “mais alto senhorio”, mas sua aceitação dependia da relação de força entre eles e o monarca. Quanto mais forte o rei, mais fraco o poder dos senhores e vice-versa. Por outro lado, às camadas populares, interessava que o poder real fosse fortalecido para que, dessa forma, pudessem sentir-se protegidas.

Se a expectativa dos contemporâneos em torno da justiça era em geral voltada para o rei, seria até ingênuo pensar que Fernão Lopes haveria de ter uma concepção muito diferente. Era um homem de sua época e como tal, procedia. No primeiro capítulo da Parte II de nosso trabalho procuramos fornecer uma idéia do conceito de Lopes sobre a justiça. “É o suporte dos reinos”, diz ele, no prólogo da “Crônica de D. Pedro I”, “razão do estabelecimento do real senhorio”. A fragilidade da máquina do Estado favorecia o arbítrio particular e esse fato, aliado aos costumes violentos que vigoravam na época, constitui-se em fator de significativo peso para o posicionamento pró-rei, adotado por Fernão Lopes em suas crônicas.

No segundo e terceiro capítulos da Parte II deste trabalho, encontra-se o estudo daquilo que poderíamos considerar constituirem-se nas duas modalidades de justiça mais enfatizadas por Fernão Lopes: a social e a punitiva.

O que diz respeito à justiça social procuramos reunir sob o título “O Rei como Harmonizador Social”, considerando para tal efeito as atitudes tomadas pelos monarcas em benefício do bem comum. Isto não quer dizer, é bom que se frize, que entendemos que os reis procurassem eliminar ou atenuar as desigualdades existentes na sociedade, mas que, coibindo os abusos ou procurando prover a população do indispensável para a sobrevivência estavam praticando justiça social.

O que concerne à justiça punitiva — Capítulo III, denominado: “Rei Justiceiro, Rei Cruel” – dividimos em duas partes: na primeira, procuramos abordar as atitudes típicas do “rei justiceiro”, tão apreciadas e louvadas nos tempos medievais, onde o soberano aparece como uma espécie de vingador dos injustiçados ou da própria sociedade. Na segunda, as atitudes condenadas por Fernão Lopes por exorbitarem às prerrogativas reais, fazendo um retrato do rei cruel, sanguinolento e arbitrário: temido, mas não amado.

É certo que tenham ficado lacunas e que não tenhamos atingido plenamente nosso objetivo. Atribuir as falhas à orientação que recebemos seria injusto, pois de nosso orientador sempre recebemos atenção e apoio. As imperfeições assumimo-las todas, não somente atribuindo-as ao estágio acadêmico em que nos encontramos, mas também, e principalmente, às dificuldades circunstancias que interferiram diretamente e de forma marcante em nossas atividades.