CONCLUSÃO


Se é certo que não atingimos plenamente o nosso objetivo, o de reunirmos em um só trabalho, a concepção de Lopes em torno da justiça real, ao menos chegamos a algumas conclusões que se nos afiguram consistentes, mesmo levando-se em conta o fato de não podermos considerar esse trabalho como algo acabado, pronto, definitivo.

A vigência de costumes violentos na época foi estudada com o escopo de se verificar a relação violência-justiça. A dificuldade de fontes ou mesmo bibliografia específica que abordasse o problema na Península Ibérica, levou-nos a certas generalizações que, mesmo avessas ao necessário rigor científico de que se deve revestir uma pesquisa histórica, não chegaram a ser abusivas. Acreditamos mesmo que nossas justificativas sejam razoavelmente convincentes: em primeiro lugar porque os costumes de um povo, especialmente na Idade Média, onde as transformações eram lentas, não mudavam repentinamente e, em segundo, porque as comparações efetuadas entre a descrição dos costumes violentos oferecida por Huizinga – em cuja obra nos baseamos – e os exemplos de violências extraídos das crônicas de Fernão Lopes e de outros autores portugueses, não apresentam distonâncias acentuadas.

Não procuramos as causas da violência do período, limitamo-nos a citar apenas aquilo que poderiam sê-las: “nível sócio-institucional de desenvolvimento das estruturas do Esta


do”, “estágio inferior da civilização da época medieval”, “condições gerais do nível histórico de desenvolvimento técnico-econômico”. Julgamos suficiente para nosso trabalho constatar a violência reinante e isso acreditamos ter realizado. Os padrões de comportamento do homem medievo fugiam aos atuais, era mais emotivo, mais arrebatado, susceptível às paixões; não hesitava, suas concepções eram tidas por certas, portanto inabaláveis. O direito era, para o homem medieval, absolutamente fixo e certo. As condenações, desde que dentro dos parâmetros da justiça, por mais cruéis que se revelassem, eram tidas como motivo de satisfação porque numa época de tanta insegurança justificava-se o rigor das penas para que servissem como exemplo.

O quadro de extrema instabilidade que essa época apresentava gerava uma expectativa em torno de um ideal de justiça que fosse, se realizado, capaz de garantir a segurança necessária para o convívio social.

As camadas populares buscavam a realização desse ideal de justiça, nos reis, porque dos poderosos não podiam esperar outra coisa senão a exploração que às vezes se constituía em verdadeiros abusos, com conotações de violência, como é o caso das “tomadias”. Embora as “tomadias” não atingissem todas as camadas populares, ficando restritas principalmente à mais numerosa delas, a dos camponeses, a verdade é que todas elas, de uma forma ou de outra ficavam sujeitas à prepotência dos senhores. Para libertarem-se dessa sujeição apelavam ao rei que, pela tradição patriarcal


e pelas suas pretensões centralizadoras, acatavam de bom grado as reivindicações já que isso redundava numa união de interesses benéficos à manutenção do equilíbrio de forças entre as diferentes camadas da população e a realeza.

Com relação às classes privilegiadas concluímos que apesar de apresentarem uma certa resistência, acabavam curvando-se ao soberano nos assuntos concernentes à justiça. É claro que uma subordinação mais ampla deu-se apenas com o estabelecimento do absolutismo; no caso deste estudo pudemos observar que a intensidade de subordinação dos privilegiados à realeza era proporcional à força desta. Mas, embora tenhamos verificado esse aspecto, particularmente a título de conclusão, podemos afirmar que mesmo os soberanos de ânimo mais fraco jamais abriram mão de suas prerrogativas de “mais alto senhorio”.

Ademais, havia na época um substrato ideológico que favorecia o posicionamento do rei à testa da nação no que concerne a justiça. O pensamento de Santo Agostinho e depois de São Tomás de Aquino contribuíram para a generalização da idéia de que os seres humanos eram diferentes e, portanto, a necessidade de constituição de ordens que os congregassem era inevitável. Se os seres humanos eram tidos por “diferentes” é óbvio que deveriam existir alguns mais favorecidos e outros menos. Dos mais favorecidos destacava-se o rei no patamar da hierarquia social. Verdadeiro representante de Deus na terra, cabia-lhe a função de distribuir a justiça, de acordo com o “status” jurídico de cada


um. A teoria do “Direito Divino” foi, nesse aspecto, de grande influência no comportamento soberano.

De fato a teoria do “Direito Divino”, se por um lado abria ao rei a possibilidade de atuar arbitrariamente, por outro, condicionava-o dentro de certos parâmetros morais, na medida em que, confiando plenamente na sua atribuição de Vigário de Deus na terra e temendo a justiça divina, procedia, normalmente, de modo a preservar a ordem social através da distribuição equânime da justiça.

Em suma, a teoria do “Direito Divino” era como que uma espécie de faca de dois gumes, mas que na época dos reinados por nós estudados funcionava muito mais como fator restritivo ao arbítrio, que como estimulador da prepotência.

Também as leis vigentes refreavam o arbítrio real, em que pese a desorganização das múltiplas fontes jurídicas existentes. Simultaneamente, embora para casos diversos, vigoravam as leis nacionais, o direito romano, o direito canônico e o direito consuetudinário cuja observância, se desobedecida pelos reis, era firme e resolutamente reclamada principalmente em Cortes, das quais as de Évora, realizadas em 1481-1482 refletem a espécie de pacto existente entre o rei e o povo porque nela se encontrava claramente expressa a idéia de que

“assi como toda comunidade dos subjeitos e singolarmente cada huum do pouo deve obedecer e servir com Amor e temor Reueremciall ao príncipe ... asi he necessário que eles a todos deva defenson graciosa bemfeitoria e amor paternall. E pois a fremosura e fortalleza do rey he ho seu pouoo muito e deve piedosamente trautar e verdadeiramente amar e defender com justiça pella qual causa se lhe seguira grande merecimento ante deus e louor amtre os homens” (1)

Aprioristicamente não poderíamos pensar que Fernão Lopes formasse uma idéia muito diferente da de seus contemporâneos sobre a justiça. Realmente nossos estudos nos levam a concluir que de fato seu modo de pensar não destoava do pensamento coevo. É evidente que a sua concepção sobre a justiça foi mais elaborada, o que o torna em muito superior à média dos homens de seu tempo. Não se pode mesmo esperar que pessoa tão atilada deixasse de refletir a expectativa mais ou menos generalizada de que ao rei cabia principalmente a função de “manter o reino em justiça”.

Para Fernão Lopes, o rei e o povo deviam possuir a virtude da justiça, aquele, para fazer leis justas, este, para seguí-las. Considerava a justiça uma virtude que englobava todas as demais, inclusive a temperança e a castidade, tão caras ao homem medieval. Era o “suporte dos reinos”, assim como a alma era para ele o suporte do corpo, e aos reis deveria caber a autoridade de distribuí-la.

“O real poderio foi estabelecido, que he por seerem os maaos castigados e os boons viverem em paz...”

Entendemos com isso que Fernão Lopes via no rei o poder competente para punir, mas além disso a autoridade responsável


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(1) SANTARÉM, Mem. para Côrtes, II, 2º, p.60. Apud Eduardo D’OLIVEIRA FRANÇA. Op.cit., p. 165.

pelo bem estar do povo. Assim é que procuramos dividir a concepção de Lopes sobre a justiça real em duas modalidades que analisamos separadamente. Uma delas, a que abordamos primeiro, diz respeito à responsabilidade do soberano pelo bem estar social do povo, por isso a reunimos em um capitulo que denominamos “O REI COMO HARMONIZADOR SOCIAL”; a outra modalidade, por ser concernente às punições, tratamos sob o título “REI JUSTICEIRO, REI CRUEL”.

A responsabilidade do rei como harmonizador social perante o povo consistia em prevê-lo praticamente de tudo quanto fosse revertido ao seu bem estar. Nesses termos é possível afirmar que

“como os problemas de justiça e administrativos estavam confundidos, organizar a justiça e organizar o país era a mesma coisa” (2).

Então, por isso, incluímos como medidas que pudesse representar algum alcance social tanto a organização do desembargo como a tentativa de unificação dos pesos e medidas, investidas no sentido de dar respeitabilidade à justiça, a proibição do concubinato, o entesouramento da moeda e providencias para sua valorização, reconstrução de vilas e castelos e as muralhas, isenção de impostos para incentivos ao comércio, medidas visando aumentar a produtividade cerealífera, cortes nas despesas da casa real, redução de impostos.

Não nos preocupamos exatamente com os efeitos das medidas consideradas de justiça social, importou-nos

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(2) Eduardo D’OLIVEIRA FRANÇA. O poder real em Portugal... Op.cit., p. 170.
mais a relação entre o conceito de Fernão Lopes sobre a justiça real e as medidas em si, tomadas pelos soberanos. Fomos relacionando conceitos e medidas, procurando sempre verificar a ênfase dada por Fernão Lopes à justiça Real. Organizar o desembargo era importante no entender de Fernão Lopes. D. Pedro I tomou providências nesse sentido, logo, esse rei, foi bom nesse aspecto. Juntar tesouro também era necessário para o bem comum, segundo a ótica do cronista, D. Fernando esbanjou o tesouro, portanto era mau nesse sentido. E assim por diante, pudemos concluir que apesar da época medieval ter sido marcada pela discriminação social, ou exatamente por esse fato, Fernão Lopes evidenciou em suas crônicas a importância da justiça social, atribuindo ao rei a responsabilidade do bem comum do reino.

O que concerne à justiça punitiva procuramos tratar no capitulo que denominamos “Rei justiceiro, rei cruel”. Com o título tentamos sugerir a idéia de que ao castigar seus súditos, o rei podia praticar justiça, sendo óbvio portanto, o atributo de justiceiro, ou injustiças que lhe qualificavam como cruel. De fato, é exatamente isso que as crônicas de Fernão Lopes sugerem.

O rigor na aplicação da pena parece não ter impressionado o cronista, se o castigado fosse merecedor. Importa, todavia, ressaltar que numa passagem referente ao rei D. Pedro I, ao dizer que a este rei não se aplicavam os dizeres de que a justiça era tal qual a teia de aranha – onde se prendem as moscas pequenas e as grandes rompendo-a vão-se Fernão Lopes denota claramente que mesmo sendo diferentes perante a lei, todos os transgressores deveriam ser punidos.

Se as punições foram sempre apreciadas e até louvadas por Fernão Lopes nos casos em que o Rei aparecia como que uma espécie de vingador da sociedade, não deixou o cronista de censurar severamente ao soberano que, exorbitando às suas prerrogativas e deixando-se levar pelas paixões ou sentimentos de vingança, praticava atos de violência, punindo injustamente.