CONCLUSÃO
CONCLUSÃO
Fernão Lopes foi um homem inteiramente dedicado ao seu ofício.
Ingressou na atividade em 1418 e após dezesseis anos como guarda
das escrituras da Torre do Tombo, foi contratado por D. Duarte, em
1434, para escrever as crônicas dos reis antigos, acumulando
a partir de então as duas funções. Como cronista
atuou pelo menos dezesseis anos, pois temos referência de que
estava em plena atividade dois anos antes de ser aposentado em 1454.
Ao todo, foram trinta e seis anos de trabalho sem que saibamos se
houve nesse período algum lapso de tempo reservado a alguma
peregrinação, algum período de descanso, de afastamento
por doença ou mesmo para que pudesse dedicar-se à família.
Na verdade pouco conhecemos sobre sua vida particular e quando tentados
a especular sobre algum ponto, como o de que fosse completamente devotado
ao seu serviço, somos logo chamados à realidade pela
consciência de que uma aborgagem científica não
nos permite esse tipo de divagação. Em face disso, limitamo-nos
a sintetizar em Lopes apenas as qualidades sobre as quais tínhamos
evidências concretas e que nos interessavam para a compreensão
de sua obra: obstinação, crítica e perspicácia.
Obstinado, buscava a verdade. Para tanto não se limitou a aceitar
uma única versão dos fatos; revirou os arquivos a sua
disposição, leu várias obras de outros cronistas,
estudou campos de batalhas, visitou túmulos; enfim, deu a sua
obra o caráter de pesquisa até então nunca usado
por outros cronistas. Crítico, não se limitou à
descrição dos acontecimentos; possuía parâmetros
bem definidos que lhe possibilitavam julgar as atitudes tomadas tanto
pelo povo como pelos próprios reis. Para ficarmos em apenas
dois exemplos, lembremo-nos de que condenou a ação da
turba que, durante a crise sucessória portuguesa aberta com
a morte de D. Fernando, assassinou a abadessa do mosteiro de São
Bento em Évora, por considerá-la favorável aos
castelhanos e desaprovou também a atitude de D. Pedro I em
promover a troca de homiziados com o rei de Castela. Perspicaz, extrapolou
a mera narrativa dos feitos cavaleirescos e percebeu que a sociedade
de sua época passava por transformações significativas.
Lopes nos ofereceu uma idéia da sociedade medieval portuguesa
e não somente de uma ordem social e nesse sentido, um ponto
relevante a singularizá-lo entre os cronistas da época
foi ter introduzido o povo em sua narrativa.
São características como essas que tornam a obra de
Fernão Lopes uma fonte preciosa e imprescindível para
o estudo da Idade Média portuguesa, o que não significa
que devamos encontrar nela respostas para todas as indagações
que nos ocorram a respeito do período, mas sim que a riqueza
da obra, enquanto fonte, consiste exatamente no fato de não
podermos esgotá-la com as hipóteses de um trabalho científico,
qualquer que seja a sua natureza e abrangência. Devemos também
ressaltar que a obra de nosso cronista é importante pelo grau
de confiabilidade que inspira, elaborada como o foi com base documental,
mesmo tendo em vista a escassez de fontes tanto maior quanto mais
recuado no tempo estivesse o reinado em causa. Sob esse aspecto, a
Crónica de D. Pedro, se comparada às de D. Fernando
e D. João I, perde em valor histórico mas não
deixa de fornecer subsídios inestimáveis, desde que
saibamos utilizá-la com as devidas cautelas, tendo em consideração
não só as lacunas nas várias fontes utilizadas
por Lopes quanto a aura de distanciamento que parece ter a seus olhos
envolvido o período. As crônicas de D. Fernando e D.
João I, por seu lado, mostram-se mais seguras, tanto em relação
à documentação utilizada quanto em beleza literária
em virtude do aprimoramente gradativo do estilo do cronista, a que
se soma o método criterioso na utilização das
informações que possuía — fontes escritas,
manuscritas, apreciação pessoal de moedas, campos de
batalha e túmulos —, induzindo-nos a concordar com os
autores que o consideram o primeiro historiador português.
É evidente que essa avaliação não implica
em que ele deva ser aferido com o rigor metodológico atual,
mas levando em consideração a época em que viveu
e os condicionamentos que pesavam sobre os intelectuais coevos. Levantou
farta documentação, usou-a criteriosamente, empenhou-se
em dela extrair a verdade, ordenou coerentemente os acontecimentos;
enfim, utilizou conscientemente uma metodologia de trabalho. E, como
se não bastasse, permeou sua obra com a participação
vibrante do povo, o que se constitui inovação extraordinária,
especialmente se tivermos em conta que não se observa esse
tipo de preocupação nos demais cronistas medievais,
não sendo, outrossim, justo censurá-lo se o conjunto
de sua obra não apresenta um equilíbrio perfeito entre
as ações das personalidades dirigentes e do coletivo,
sobretudo se considerarmos que seu vínculo empregatício
obrigava-o a realçar as qualidades dos reis e dos membros da
alta nobreza.
Sincero e fiel, devoto da verdade, o que Lopes desconhecia é
que, antes mesmo de ser ele próprio, era fruto do imaginário
de sua época; que sua forma de ver o mundo estava condicionada,
aliás não por apenas um, mas pelos vários imaginários
de seu tempo, dentre os quais , indubitavelmente, o de maior força
era o cristão, de cujo substrato em sua formação,
e até por via de conseqüência, resulta a sua concepção
da história. Para Lopes Deus é quem determina os rumos
da história da humanidade; nada se opera, nem sequer os mínimos
detalhes da vida cotidiana, sem que a mão divina esteja presente.
Em seu entender sua própria obra foi fruto da vontade de Deus.
Ao homem restava, portanto, resignar-se aos desígnios divinos
e conformar-se, se fosse o caso, com uma vida melhor além-túmulo.
Mas não apenas ao homem era negada qualquer participação
efetiva na história. Naquele mundo ditado pela vontade divina,
ao menos no que concerne à visão de Lopes, o Diabo também
tinha muito poucas oportunidades, aliás paradoxalmente, pois
na Idade Média a pedagogia cristã dava-lhe amplo destaque:
“em toda parte se vê o diabólico, o mundo inteiro
é por ele invadido”.
A crença da época na onipotência divina era tão
forte que as evocações a Deus eram constantes. Lopes
registrou tão insistentemente esses apelos em suas crônicas
a ponto de nos induzir a proceder a um levantamento, registrando mais
de setecentas e cinqüenta menções ao nome de Deus.
Tomando esses registros, classificando-os e submetendo-os à
análise, concluimos que o homem medieval português, e
nosso cronista em particular, acreditavam realmente na interferência
de Deus nos atos cotidianos, apesar de termos verificado também
que muitas das expressões utilizadas nas evocações
já estavam desgastadas pelo uso, sendo proferidas unicamente
por força do hábito e sem maior convicção.
De qualquer maneira, quer fosse por convicção ou não,
constatamos que se mantinha naquela época uma convivência
indissociável com o Sagrado e que resultava, em última
análise, em resignação à vontade de Deus.
Por via de conseqüência é compreensível que
nessa sociedade, fortemente impregnada pelo signo do sobrenatural,
fosse grande o poder da instituição encarregada de administrá-lo.
Aproveitando-se desse poder a Igreja não teve dificuldades
em imiscuir-se nos rituais laicos, acrescentando às cerimônias
instituídas para conferir ao rei e à nobreza o capital
simbólico para o exercício de suas respectivas funções
um cunho sagrado.
Sob essa ótica tratamos as coroações, a armação
dos cavaleiros, a prestação da homenagem e o juramento
de fidelidade, inferindo, a partir das indicações fornecidas
pelas respectivas cerimônias, que se as crônicas de Fernão
Lopes nos propiciam flagrantes sobre as relações sócio-políticas,
nem por isso fica confirmada a presença em Portugal, do quadro
coerente de instituições próprias às regiões
feudais. Ao invés de conceder terras, cujo parcelamento gerava
os laços de dependência de homem para homem, os reis
portugueses preferiram distribuir pensões monetárias
anuais, denominadas “contias”, que criavam uma clientela
muito ciente de seus compromissos de fidelidade, mas não geravam
a hierarquização das relações, não
organizavam a “pirâmide feudal”, característica
básica do feudalismo. E quando, por força das circunstâncias,
D. João I obrigou-se a agraciar alguns de seus seguidores foi
de tal forma pressionado que voltou atrás e readquiriu as terras
concedidas. Faltando a base material para a concretização
das relações feudo-vassálicas, a nossa conclusão
foi de que os compromissos de fidelidade em Portugal na época
estudada, em sua esmagadora maioria, diziam respeito à submissão
ao soberano enquanto símbolo da nação. Os poucos
potentados portugueses que possuíram vassalos, como João
Afonso, irmão da rainha Dona Leonor Teles e Nuno Álvares
Pereira, não chegaram a gerar o entrecruzamento de homenagens.
Se a intervenção da Igreja se fez sentir nas relações
sócio-políticas, muito mais intensamente se manifestou
em relações eminentemente sociais, como no caso do convívio
conjugal.
Reputamos como essencial a constatação de que, naquela
época, estava em curso um processo de institucionalização
do casamento, no qual a Igreja, com o apoio integral da Monarquia,
impunha, com sucesso, a toda sociedade o “casamento de benção”.
A conjunção dos interesses da Igreja, como guardiã
dos costumes, com os da Monarquia, que passava a ter nessa ligação
do casamento ao Sagrado uma garantia muito maior na manutenção
das uniões promovidas com interesses exclusivamente econômicos
e políticos, fez com que caíssem em desuso ou fossem
marginalizadas as outras formas de união conjungal então
praticadas. Gradativamente o “casamento de pública fama”
e o “casamento de juras ou furto” foram desaparecendo
e o concubinato e a prostituição , apesar de persistirem,
passaram a ser formas de união condenadas pela sociedade em
geral, que assimilara o “casamento de bênção”
como parâmetro para as suas atitudes.
O processo de mudança de normas não deixou de apresentar
entretanto contradições gritantes. Constatamos que todos
os reis portugueses protagonistas das crônicas de Fernão
Lopes tiveram algum caso extraconjugal e que mesmo a única
rainha que chegou ao exercício do poder na época, Dona
Leonor Teles, teve o seu amante. A Igreja, por sua vez, apesar de
ser a responsável pela elaboração do referencial
teórico que dava sustentação ao casamento monogâmico
por ela abençoado, não teve ânimo para coibir
os abusos de poder e a truculência de alguns soberanos. Contraditoriamente
assumiu posição subserviente, procurando sempre acomodar
situações irregulares, como por exemplo as que envolveram
D. Fernando e Dona Leonor Teles; D. Pedro I de Portugal e Dona Inês
de Castro; e D. Pedro I de Castela e Dona Maria Padilha.
Já quanto às “manifestações sentimentais
do homem medieval português”, o cronista oferece flagrantes
sugestivos quanto ao amor, à inveja, à cobiça,
à alegria, ao prazer, ao ódio, à sanha, ao medo,
à apreensão, à incerteza de como os homens daquela
época lidavam com seus sentimentos, e como esses se manifestavam
no riso e no choro.
Ao termo de nosso percurso pelo universo desvelado por nosso cronista,
no último capítulo, tratamos dos marginalizados na sociedade
medieval portuguesa, cuja condição, isso fica muito
claro nas crônicas de Lopes, poderia ocorrer por motivos religiosos,
econômico-financeiros, raciais, morais, sexuais, sociais, estéticos,
entre outros. Mouros, judeus, mulheres, mercenários, pobres
e aleijados aparecem como vítimas principais da segregação
numa sociedade onde as desigualdades eram gritantes, e na qual os
privilégios pareciam prevalecer sobre os direitos.