CAPÍTULO VI
OS MARGINALIZADOS NAS CRÔNICAS DE FERNÃO
LOPES
1. MOUROS E JUDEUS
2. AS MULHERES
3. OS MERCENÁRIOS
4. ALEIJADOS E POBRES
CAPÍTULO VI
OS MARGINALIZADOS NAS CRÔNICAS DE FERNÃO LOPES
Se eventualmente o título deste capítulo sugerir que
Lopes tratou algumas minorias com discriminação, não
estará de todo mal colocado, inclusive pelo fato de que não
foi muito prolixo em relatar episódios envolvendo-as, além
de, não raro, como veremos, manifestar seu apoio a discriminações.
Se, por outro lado, sugerir que os marginalizados o fossem pela sociedade
da época e que Lopes apenas retratasse essa realidade, também
estamos em acordo. Na verdade, ao adotar este título, pretendemos
demonstrar ambas as coisas, pois entendemos que, sendo Lopes um homem
medieval, apesar de superior em talento e discernimento em relação
à média dos seus contemporâneos e inclusive dos
seus colegas cronistas, não conseguiu romper com muitos dos
preconceitos existentes naquela época e acabou deixando-nos
pistas importantes sobre eles. Todavia, a respeito de algumas categorias
sociais, praticamente nada teremos a analisar porque eram constituídas
por indivíduos de tal forma marginalizados que, nas crônicas,
somente aparecem em algumas raras menções, como é
o caso das prostitutas, às quais Lopes refere-se como mulheres
mundanas, dos aleijados e deformados, dos pobres e dos homossexuais;
sobre outros, cujas informações são mais abundantes,
obviamente teremos oportunidade de nos deter, como é o caso
dos mouros, dos judeus, dos mercenários e das mulheres.
1. MOUROS E JUDEUS
Pelas informações que Lopes nos fornece, nas Cortes
de Touro, convocadas por D. Henrique de Castela para restabelecer
a ordem monetária, uma questão problemática no
reino castelhano em virtude especialmente da guerra civil travada
pela disputa do trono entre ele e o seu meio-irmão, D. João,
foi estabelecido também que os mouros e os judeus ficavam obrigados
a que “trouvessem sinaaes devisados per que fossem conhecidos”.
Em Portugal também haviam alguns sinais que identificavam os
judeus; um deles chegou ao nosso conhecimento graças a descrição
de um fato bizarro, qual seja o de que os sapatos dos judeus e dos
clérigos eram curtos, diferentes dos cristãos portugueses
que os usavam de pontas longas. Isso, se não reflete nenhuma
atitude ímpar, pois na Idade Média era comum esse tipo
de procedimento também entre outras minorias e até mesmo
entre as corporações de ofício, demonstra as
precauções tomadas em relação a alguns
segmentos que eram mantidos sob constante vigilância pela sociedade
em geral.
A distinção entre os grupos, ao menos em tempos de normalidade,
era inclusive algo que se fazia independentemente de qualquer imposição
da lei, mas espontaneamente e às vezes por tradição.
No que diz respeito especificamente aos judeus residentes em Portugal,
era costume que, quando da visita dos monarcas às localidades
onde possuíam comunidades, saíssem a esperá-los
tendo ao peito os seus livros de leis, numa alusão de que,
sobre a Tora, juravam fidelidade.
De qualquer forma a distinção mais ou menos generalizada
entre os diversos grupos étnicos ou profissionais não
implicava na obrigatoriedade do isolamento, o que ocorria com mouros
e judeus, forçados a viver confinados. E não podemos
nem sequer imaginar uma comparação entre o confinamento
aplicado a eles com o de agrupamentos de profissionais qualificados
num determinado ofício, em determinadas ruas. Estes tinham
objetivos comerciais evidentes, aqueles eram isolados por serem discriminados
pela sociedade da época. Lopes, inclusive, fez questão
de evidenciar as raras vezes em que algum interesse ou perigo comum
sobrepunha-se à discriminação e proporcionava,
conseqüentemente, a oportunidade ou necessidade de convivência.
A necessidade advinha da guerra, como quando D. Henrique de Castela
promoveu o cerco sobre Lisboa, em que, objetivando a proteção
proporcionada pelos muros, cristãos e judeus entravam juntos
na cidade, congestionando as portas. Nesses casos até mesmo
algumas atitudes similares eram tomadas: tanto uns como os outros,
na pressa de se refugiarem, jogavam os seus pertences nos poços
na vã esperança de resgatá-los oportunamente.
Quanto aos interesses comuns, quer nos parecer que o da causa nacional
tenha sido o mais convergente. Tomemos como prova o mais inusitado
exemplo, porque envolve o testemunho de um milagre:
“Foi maravilha (...) que Christaãos e Mouros que vellavom
o muro da parte de Sam Victe de Fora (...), que aa mea noite, vellamdo
alguus, virom viinte homes vestidos em vestiduras alvas assi como
sacerdotes (...) e desto derom testemunho sete Christaãos e
tres Mouros que vellavom huua torre.”
O fato de cristãos e mouros montarem guarda juntos somente
pode ser explicado se considerarmos que estava se processando, em
Portugal, naquela época — 1383-1385 — uma luta
pelo poder que obrigava a todos tomar um partido, independentemente
da religião que professavam. A causa nacional sobrepunha-se
aos preconceitos, embora não os superasse. Tomemos uma passagem
que acreditamos seja elucidativa para essa questão. Em 1385,
logo após a derrota de Aljubarrota, os castelhanos viram-se
forçados a abandonar a cidade de Santarém, sem dúvida,
o reduto mais importante de que dispunham em Portugal, porque era
evidente que os portugueses, entusiasmados com a vitória, voltariam
suas atenções bélicas para lá. Ao saírem
da cidade, às pressas e desordenadamente, os castelhanos deram
liberdade a alguns prisioneiros portugueses importantes, pois levá-los
poderia motivar seus compatriotas a uma perseguição,
sob todos os aspectos desinteressante naquele momento. Dos libertados,
o mais experiente em atividades militares era o prior D. Álvaro
Gonçalves, que imediatamente após a retirada tomou algumas
providências pertinentes, evitando que os castelhanos retardatários,
sobreviventes de Aljubarrota, ali se recolhessem: foram hasteadas
bandeiras às portas da cidade e alardeado que Santarém
era novamente portuguesa, pois os castelhanos a haviam abandonado.
Isso foi feito logo pela manhã, com participação
coletiva:
“foram-sse trigosos pella menhaã bem çedo aas
portas com pemdom leuamtado, e muytos portuguesses e judeos e mouros
que no logar morauom (...) e começarom braadar altas vozes
aas portas e pellos muros: Portugal, Portugall,, por el-Rey dom Joham!...”
Portugueses, judeus e mouros, todos juntos, unidos em torno da causa
nacional? Não devemos nos iludir. Apesar da causa nacional
ser realmente um motivo forte, um ponto de convergência para
que essas três raças superassem os seus problemas de
convívio, há motivos de sobra para supormos que tal
ação conjunta tivesse sido motivada ou pelo oportunismo
de estar ao lado do mais forte, ou pelas forças das circunstâncias.
Nesse caso é praticamente certo que o perigo iminente fazia
com que os cristãos se esquecessem de que mouros e judeus eram
“infiéis”, e permitiam que assumissem tarefas militares.
Quanto ao oportunismo mencionado, a explicação está
no fato de ser inevitável a ação conjunta desses
três grupos étnicos porque em caso contrário,
aquele que ficasse em posição antagônica seria,
inexoravelmente, perseguido pelos dois outros. De qualquer forma,
sendo ambas as explicações corretas, ou sendo válida
apenas uma delas, o que fica demonstrado é que existiam razões
inibidoras de perseguições constantes e sistemáticas
aos mouros e aos judeus.
Mas isso se constituía em exceção. A regra era
que mouros e judeus fossem confinados em bairros isolados e que sofressem
perseguições, como veremos adiante. Quando acontecia,
por uma das razões acima expostas, dos grupos étnicos
se misturarem, tomava-se logo as providências necessárias
para a volta à normalidade. Assim é que imediatamente
após terem se misturado aos portugueses para buscarem abrigo
dentro dos muros de Lisboa, quando da invasão promovida por
D. Henrique de Castela, “os mouros forros do arrevallde forom-sse
todos com seus gasalhados pera o Curral dos Coelhos, junto com a forteleza
dos paaços d'el-rrei, que he huu alto monte”. O confinamento,
como já tivemos a oportunidade de frisar mantinha judeus e
mouros sob estreita vigilância tanto das autoridades como da
sociedade em geral. Mas, afinal, que temiam os portugueses em relação
a esses povos e quais os motivos da discriminação?
Embora tenhamos identificado na religião um motivo comum, causador
do confinamento e das perseguições aos judeus e mouros,
vamos tomar o cuidado de apreciar separadamente as questões
pertinentes a cada um deles, porque estamos convencidos de que existiam,
ademais, peculiaridades nas respectivas situações.
Os mouros que habitavam Portugal, por serem islamitas, evidentemente
atraíam sobre si a indignação da maioria cristã
que não concebia naquela época a idéia de que
houvesse outra religião verdadeira. Isso é perfeitamente
compreensível se tivermos em mente que as concepções
do homem medieval eram radicais e apaixonadas: o certo estava naquilo
em que acreditava. Por outro lado é incontestável que
o caráter de Guerra Santa imprimido às guerras entre
os cristãos e muçulmanos na Península, contribuiu
para consolidar de forma expressiva a aversão entre esses grupos.
E é justamente por temor de que os mouros se colocassem ao
lado de seus irmãos de fé que os cristãos portugueses
tiveram-nos em constante vigilância. Temiam que um eventual
conflito armado contra os mouros da vizinhança ou mesmo uma
aliança moura com os reinos cristãos contra Portugal
pudesse levar os islamitas a tomar o partido de seus confrades, em
flagrante prejuízo aos interesses portugueses. Ao menos é
a preocupação mais constante que observamos ao longo
das crônicas e não sem razão.
Com efeito, os mouros, apesar de que no período objeto de nosso
estudo já haviam perdido quase toda a Península em virtude
da Reconquista, ainda ameaçavam os reinos cristãos.
D. Fernando, certa feita, foi favorecido por isso, pois D. Henrique,
de Castela, viu-se obrigado a deixar Portugal, onde promovia uma bem
sucedida invasão, para voltar a sua terra e socorrê-la
de uma incursão comandada pelo próprio rei de Granada.
Se nesse caso Portugal deu-se bem, não importa; o exemplo presta-se
para demonstrar a hipótese de que o temor em relação
aos mouros se dava em virtude da possibilidade de haver uma aliança
inversa. Aliança que nunca ocorreu, é verdade, mas que
não se descartava porque, nessa época, as preocupações
peninsulares eram comuns. E, pelas crônicas de Lopes, temos
informações seguras de que, ao menos até 1390,
a ameaça moura era seriamente considerada. Nesse ano D. João
I, de Castela, reuniu seu Conselho para articular sua abdicação
ao trono em favor de seu filho, que tinha o mesmo nome do avô,
D. Henrique, de forma que assim pudesse continuar reclamando o seu
direito sobre o reino português. Entretanto, na sua ânsia
de anexar Portugal, o rei castelhano não se dava conta de que,
na verdade, estaria dividindo e enfraquecendo o seu próprio
reino, especialmente porque pretendia ficar com o domínio de
algumas localidades importantes. Seus conselheiros, para dissuadi-lo
dessa idéia esdrúxula, sequer levaram em conta que a
“Revolução de Avis” há tempo estava
consolidada; preferiram demonstrar a inconveniência da proposta
com a argumentação de que os mouros, apercebendo-se
da cisão, não relutariam em invadir Castela.
Por outro lado, temos que levar em conta também que, além
da ameaça representada pelos mouros em termos de invasão,
outro fator que mantinha o estado de aversão era o fato dos
cristãos peninsulares manifestarem um crescente desejo de livrarem-se
de tão incômoda vizinhança. Tanto é verdade
que a Reconquista, praticamente paralisada desde 1212, experimentava
um novo alento que pode ser percebido durante o longo período
de negociação das pazes entre Portugal e Castela. Nas
discussões, os embaixadores castelhanos sempre insistiam em
incluir uma cláusula que viabilizasse uma aliança com
Portugal contra os mouros. É bem verdade que tal aliança
contra os islamitas jamais se concretizou, apesar do envio de algumas
naus por Portugal para ajudar Castela, mas, de qualquer forma, isso
não contribui para inviabilizar o nosso raciocínio,
que tem por objetivo demonstrar que a marginalização
dos muçulmanos em Portugal deveu-se ao medo das atitudes que
poderiam ser por eles tomadas em caso de algum atrito com os seus
confrades vizinhos. Na verdade o que nos importa são as intenções
das partes, ou melhor dizendo, as discussões que geravam, porque
elas sempre traziam à tona a lembrança de que havia
um inimigo comum, um inimigo de fé, um inimigo que negava aquilo
que, sob a ótica dos cristãos, era inadmissível
ser sequer questionado. As discussões das pazes envolviam reis,
fidalgos e prelados, mas não ficavam restritas a eles; irradiava-se
até o povo comum que, incapaz de compreender a possibilidade
de convivência harmônica, apesar da fé, radicalizava
o seu preconceito em relação aos mouros.
No que concerne aos judeus não havia nenhum temor relativo
à eventualidade de uma guerra, muito menos existiam seqüelas
como aquelas provocadas pela invasão moura, que resultara na
ocupação secular dos territórios Ibéricos.
Mas existiam outros motivos, fortes do ponto de vista cristão,
para que fossem marginalizados e sofressem, inclusive, perseguições
da parte dos portugueses. Um desses motivos era comum também
aos mouros, as diferenças religiosas; o outro estava ligado
à questão econômico-financeira.
Sobre a questão religiosa, o raciocínio é análogo
ao que adotamos com referência aos mouros, mesmo porque, ao
menos no que diz respeito à monarquia portuguesa, o tratamento
dispensado a essas duas raças era o mesmo, tanto que as leis
que “regulam a situação de uns também mencionam
os outros, sujeitando-os a todas às mesmas regras”. Era
inaceitável para os cristãos o fato dos judeus não
terem aceitado Jesus Cristo como filho de Deus, como o Messias e,
como agravante, não pode deixar de ser mencionado o deicídio,
que gerou um desentendimento profundo, até há pouco
não solucionado entre cristãos e judeus, que está
na origem de todas as futuras perseguições que os judeus
sofreram. Para termos uma idéia de como as divergências
religiosas marcavam profundamente as mentalidades da época,
tomemos um trecho do discurso que o Dr. João das Regras proferiu
nas Cortes de 1385, defendendo que os portugueses não deviam
prestar obediência a D. João I, de Castela, que se julgava
com direito à Coroa:
“Pois se o Papa Urbano nosso pastor e Deos sobre a terra, nos
mamda e amoesta que perssigamos todollos çismaticos imfiees
assi como hereges e membros talhados da egreja, avemdoos por escomungados
da mayor escomunhom; outorgamdonos por esto, aquelles privillegios
e perdoamças, que outorga aos que vaão comtra os emmiigos
da ffe, em ajuda da Casa Samta; como tomaríamos nos por nosso
rei e senhor, quem foy e he tam claramente cõtra elle e cabeça
de tamta malldade e çisma?”
Tomamos tal discurso de propósito, pois nele fica muito clara
a intolerância religiosa. Cismáticos, hereges, judeus
e muçulmanos deveriam ser todos tratados como verdadeiros inimigos.
Portanto, era sob o manto da fé e com autorização
expressa do papa que os cristãos sentiam-se muito à
vontade para discriminar e perseguir todos aqueles que não
liam no mesmo breviário. Mas esse pretexto religioso disfarçava
mal as razões econômico-financeiras que levavam os cristãos
a um ódio incontido contra os judeus. No tumulto inicial que
se seguiu ao assassinato do Andeiro, enquanto o povo de Lisboa, ainda
meio desnorteado, não sabia exatamente o que fazer, uma das
propostas foi a de
“rroubar alguus Judeus rricos da Judaria, assi como dom Yuda
que fora Tesoureiro moor delRei dom Fernamdo, e dom Davi Negro que
era gramde seu privado e outros; e que destes poderia aver o Meestre
mui gram rriqueza pera soportamento de sua homrra.”
Roubar judeus ricos! A população lisboeta sabia, com
certeza, a quem recorrer quando se tratava de dinheiro. E não
eram dois ou três os judeus abastados de Portugal. Sabemos que
durante a guerra entre D. Fernando e D. Henrique, quando os castelhanos
tomaram Cascais, a localidade foi incendiada por ambos os contendores.
Os portugueses ateavam fogo às casas para que os castelhanos
não as ocupassem e estes por se sentirem agravados. De forma
que a cidade foi praticamente destruída, inclusive a Judaria,
sobre a qual Lopes não deixa de fazer um comentário
revelador:
“...e ardeo toda a rrua Nova e a freeguesia da Madanella e de
Sam Giaão e toda a judaria, a melhor parte da cidade...”
Quer dizer, a marginalização dos judeus não implicava
que os seus guetos fossem pobres. Suas casas eram as melhores, em
virtude obviamente da riqueza que possuíam. Riqueza, aliás,
motivo do ciúme dos cristãos que, como vimos, não
queriam perder a oportunidade de roubá-los. Mas os judeus,
além de ricos, eram também espertos [ou por serem espertos
eram ricos?]. Tomando conhecimento das intenções do
povo de Lisboa quase concomitantemente às suas decisões,
procuraram socorro. Não com a rainha, mas com o Mestre, que
de fato acudiu-os, convencendo o povo a deixá-los em paz. Pela
narrativa Lopes tenta passar a impressão de que os condes João
Afonso e Álvaro Peres foram largamente responsáveis
pelas decisões do Mestre, primeiro porque estando juntos, quando
os judeus vieram em busca de auxílio, intercederam por eles;
depois, já em meio à confusão, percebendo a dificuldade
de demover o povo daquela idéia, aconselharam-no a abandonar
o local porque entendiam que todos o seguiriam, como de fato ocorreu.
Mas para nós as coisas não são tão simples
e, embora faltem-nos provas, ficamos com algumas incertezas: qual
o conteúdo da conversa entre o Mestre e os judeus? Não
haveria porventura algum acordo de ajuda mútua entre ambas
as partes?
É difícil acreditar que não, pois embora não
tenha sido documentado nada a respeito desse fato, não consta,
ao longo das crônicas de Lopes, que os judeus tivessem negado
alguma contribuição à causa de Avis. Logo no
início da “Revolução”, em 1383, quando
o Mestre foi feito defensor do reino, precisando de dinheiro para
a guerra, recebeu grande contribuição de todos os moradores
de Lisboa e os judeus, além do pagamento normal, emprestaram
ao Mestre sessenta marcos de prata. Significa dizer que os judeus
tomaram o partido do Mestre, não há dúvidas,
mas não podemos afirmar que tal atitude fosse desinteressada.
A ascensão do Avis ao poder abria-lhes novas perspectivas,
grandes possibilidades, como aliás a toda a sociedade portuguesa.
E, ao que tudo indica, a vocação dos judeus para com
o dinheiro fazia com que negociassem sempre com quem estivesse no
poder, numa espécie de troca pela segurança de que necessitavam.
Dissemos anteriormente, que os judeus preteriram a rainha e foram
pedir auxílio ao Mestre. Uma rápida digressão
sobre isso será útil. No reinado de D. Fernando a comunidade
judaica esteve sempre muito bem protegida porque alguns judeus participavam
diretamente do poder, ocupando cargos estratégicos, dentre
os quais o de tesoureiro. Com a morte deste rei uma comissão
de “homens bons” de Lisboa dirigiu-se à rainha
para sugerir-lhe algumas providências, dentre as quais o afastamento
dos judeus de cargos públicos. Em nome da fé, evidentemente,
ao menos segundo o que diziam:
“Outrossi, senhora, saberá a vossa mercee que os dereitos
canonicos e civees e isso meesmo as leis do rregno defendem muito
que judeus nem mouros nom ajam officios sobre os christaãos;
e nom sem rrazom, porque forom e som criados, especiallmente os judeus,
em odio e descreença de Jesu Christo, cuja lei e creença
manteemos...”
E a rainha, empenhada em agradar a todos, sem aquilatar corretamente
o poder político judaico na capital, foi muito solícita
em atender às reivindicações, dizendo que de
fato sempre fora sua intenção tirar os judeus dos cargos
públicos, mas como não conseguira o seu intento em vida
de D. Fernando, o faria então. Inclusive já dera provas
suficientes de que suas palavras não eram promessas vãs.
Logo após a morte do rei destituiu o tesoureiro e o almoxarife
da alfândega bem como todos os sacadores e oficiais judeus.
É difícil avaliar com precisão até que
ponto a política anti-semita da rainha acabou sendo-lhe prejudicial,
entretanto não temos dúvidas de que os “homens
bons” de Lisboa não lhe foram pedir o afastamento dos
judeus de cargos públicos unicamente por questões ligadas
à fé. Evidentemente tinham por objetivo livrarem-se
de competentes exatores que os incomodavam com cobranças de
impostos.
Pelo exposto fica evidente o porquê da opção judaica
à causa do Mestre. Diríamos que não foi sequer
uma opção, mas uma necessidade pois, desamparados pela
rainha, era a única opção que lhes restava visto
que uma debandada geral para Castela não lhes era conveniente,
afinal, apesar de todas as proibições a que estavam
sujeitos Portugal, ainda lhes era o lugar mais propício. De
qualquer forma, o que deve ficar bem claro é que os judeus,
muito mais que em regulamentações de tolerância,
tinham no dinheiro o ponto de equilíbrio para a sua segurança
e, inclusive, chegavam a usá-lo para gozar de certas regalias
e para exercer influência sobre os governantes. D. João,
já eleito rei de Portugal, apesar do apoio recebido, não
pôde impedir que as Cortes de Coimbra de 1385 tomassem algumas
decisões discriminatórios aos judeus, e a rainha Dona
Leonor, que havia dito aos homens bons de Lisboa que não aceitaria
judeus em cargos públicos, tinha alguns deles como aliados
privilegiados. Sabemos disso porque estando ela em Santarém,
a receber o seu genro, o rei de Castela, com seus exércitos,
foram ocupados todos os bairros da cidade, “salvo a judaria
em que nom pousarom, por aazo de dom Davi Negro, e dous Judeus de
gramde estado alliados aa Rainha”
Davi Negro, no mesmo ano em que foi favorecido pela rainha, 1384,
depôs contra ela, denunciando ao rei castelhano um plano da
sogra que incluía o seu assassinato. Resumidamente o que se
passou foi o seguinte: quando a rainha Dona Leonor percebeu que o
genro não lhe daria nenhuma oportunidade de continuar na regência,
caso vencesse o Avis, e que, portanto, havia cometido um erro em incentivar
a sua vinda a Portugal, pois acabara por tornar-se sua prisioneira,
pretendeu livrar-se dele. Seguindo o conselho de uma dama chamada
Beatriz de Castro, arquitetou um plano que incluía o Conde
D. Pedro, que mataria o rei em seu acampamento, levaria a rainha para
Coimbra onde se casaria com ela e se tornaria rei de Portugal, e o
Conde D. Gonçalo, irmão de Dona Leonor, abriria as portas
da cidade, permitindo-lhes a entrada, evitando assim que fossem perseguidos
pelas tropas do rei. Porém um frade soube do plano e contou-o
a D. Davi que por sua vez levou-o ao conhecimento do rei. Em conseqüência
o rei preveniu-se de tal forma que acabou revertendo o processo e
o Conde D. Pedro teve que fugir. Em seguida mandou prender D. Yuda,
privado da rainha e Maria Peres, uma sua camareira, porque desconfiava
que ambos sabiam do plano; depois mandou que trouxessem Dona Leonor
à sua Câmara onde fez a acareação dos fatos.
O resultado final foi que Maria Peres foi presa, a rainha presa e
mandada para um convento em Tordesilhas e D. Yuda perdoado, a pedido
de D. Davi Negro.
Talvez essa capacidade de acomodar-se a situações novas
e agradar a senhores tão diferentes tenha contribuído
ainda mais para infamar os judeus, cuja imagem, como vimos, já
não era boa aos olhos do povo. D. Yuda, por exemplo, foi tesoureiro
de D. Fernando, serviu à rainha Dona Leonor e depois a D. João
I de Castela, depondo contra a rainha. E ninguém menos que
seu cunhado, D. David Alguaduxe, foi o encarregado de tentar subornar
Nuno Álvares Pereira. D. David, a mando de Gonçalo Vasques
e com o consentimento do rei castelhano, abordou o Condestável
português em Tomar, em 1384, justamente neste ano em que as
dificuldades financeiras foram mais acentuadas para os seguidores
do Avis e ofereceu-lhe de imediato mil dobras. Evidentemente que o
Condestável recusou a oferta, mas a iniciativa de D. David,
além de demonstrar a obviedade de que os guerreiros medievais
eram passíveis de suborno, presta-se também para mostrar
que os judeus não estavam muito interessados em questões
que diziam respeito à nacionalidade. Pouco lhes importava estarem
ao lado de Castela ou de Portugal, mesmo porque em qualquer um desses
reinos estavam sujeitos ao mesmo tipo de tratamento. Discriminados,
usavam o dinheiro que possuíam para obter posições
que lhes dessem o direito de viver sem serem molestados. E, é
importante ressaltar, embora já tenha ficado implícito
no desenvolvimento de nosso raciocínio, bastava que dois ou
três judeus ocupassem cargos proeminentes para que toda a comunidade
judaica ficasse mais ou menos tranqüila no que diz respeito a
sua segurança.
Resta-nos ainda lembrar que a riqueza dos judeus provinha da atividade
comercial e, se deixamos essa questão tão relevante
para ser tratada por último, não foi por acaso; ela
encerra o maior paradoxo vivenciado pelos portugueses daquela época.
Vejamo-lo, portanto, tomando como de costume, um exemplo encontrado
nas crônicas de Lopes.
Referimo-nos a uma das atitudes justiceiras tomadas por D. Pedro I,
que nos vem a propósito, por envolver um mascate judeu que
andava pelo reino a mercadejar. Dois escudeiros, aos quais o rei queria
bem por estarem há longa data consigo, roubaram e, ato contínuo,
mataram esse comerciante ambulante. Sendo presos, foram levados à
presença de D. Pedro que os interrogou até que confessassem
o crime. Deixemos falar Lopes, para analisarmos melhor os seus dizeres;
“... (os dois escudeiros) houveram conselhos que fossem roubar
um judeu que pelos montes andava vendendo especiaria e outras cousas.
E foi assim feito, que foram buscar aquela suja presa e roubaram-no
de tudo e, pior disto, foi morto por eles.”
Depois de terem confessado o crime,
“El-rei sorrindo-se disse que fizeram bem. Que tomar queriam
mester de ladrões e matar homens pelos caminhos. De se ensinarem
primeiro nos judeus e depos viriam aos cristãos.”
O rei, segundo Lopes, andava de um lado para outro, como que a lembrar-se
da longa convivência que tivera com aqueles dois escudeiros,
da criação que lhes havia dado e, com isso, seus olhos
enchiam-se de lágrimas. De repente repreendia-os severamente
e continuava a caminhar. Os presentes antevendo um final pouco feliz
para os assassinos intercediam por eles, dizendo que
“...por um judeu astroso não era bem morrerem tais homens,
e que bem era de os castigar por degredo ou outra alguma pena, mas
não mostrar contra aqueles que criara, pelo primeiro erro,
tão grande crueza.”
De nada adiantaram os rogos; os dois escudeiros foram degolados. Do
ponto de vista judicial e no que tange à aplicação
da justiça, não há nada que fugisse aos padrões
da época. Se levarmos em conta o aspecto sentimental, somente
reforçaremos a imagem de justiceiro do rei, pois havemos de
concluir que nem as suas próprias lágrimas desviaram-no
do dever real. Mas deixemos esses aspectos e vejamos onde se encontra
a grande contradição anunciada.
Especialistas na arte de comprar e vender, os judeus tornaram-se abastados
burgueses e, como não poderia deixar de suceder, numa época
em que renascia o comércio e a circulação monetária,
eram também poderosos usurários. Ora, se somente por
terem se tornado ricos já atraiam a ira dos cristãos
que se deixavam levar pela inveja, o que dizer então de contrariarem
a proibição da prática da usura pela Igreja?
Para termos uma idéia basta lembrarmo-nos de uma frase, reveladora
de que o próprio Lopes se deixou envolver pelo clima de discriminação
aos judeus: “os escudeiros foram buscar aquela suja presa”
e, da qualificação de astroso, que lhe dá logo
a seguir. Suja presa e astroso! Quer dizer, os judeus, mesmo para
pessoas de boa formação intelectual, não passavam
de seres inferiores. Se, portanto, o rei perdoasse aos seus escudeiros,
não haveria, com certeza, nenhum tipo de problema. Afinal,
na Idade Média, não se conhecia o princípio do
direito que estabelece igualdade de justiça para todos, a própria
Igreja reconhecia e disseminava a idéia de seus maiores pensadores
de que os homens eram desiguais por natureza. Predominavam a força
e o privilégio, como nos ensina Gama Barros. Justamente por
isso não podemos deixar de ter em conta a prática do
perdão, aplicada pelos reis sem que para tanto houvesse algum
critério; não se levava em conta sequer o merecimento;
era gratuito, como o perdão divino.
A condenação dos escudeiros, além de demonstrar
que o rei D. Pedro I, para bem aplicar a justiça, superava
os seus sentimentos, refletem a contradição de sua época.
Embora chefe de uma nobreza, senhorial e eclesiástica, que
tinha os seus interesses econômico-financeiros voltados à
exploração da terra, e ele próprio, senhor de
uma extensa casa agrícola, como rei, precisava sob pena do
fracasso, exercer a função de árbitro e julgar,
com isenção, de maneira a não prejudicar nem
os interesses das forças conservadores nem os da nascente força
antagônica. No caso específico dos judeus, podemos concluir
que por serem infiéis eram isolados e discriminados, mas por
serem comerciantes poderiam até serem submetidos ao confinamento
e ao desprezo, mas eram tolerados porque eram necessários,
afinal, a atividade comercial tornara-se imprescindível.
2. AS MULHERES
A marginalização da mulher nas crônicas de Lopes
salta à vista. Basta tomarmos a proporcionalidade de menções
a elas feitas, em comparação com os homens, para nos
convencermos disso. Não que Lopes fosse
misógino; pois, ao contrário, em várias oportunidades
mostra-se até mesmo muito simpático às mulheres.
, Limitou-se, no entanto, a retratar uma realidade de sua época,
em que a sociedade atribuía à esmagadora maioria das
mulheres um papel secundário diante da história. De
qualquer forma, apesar das escassas referências, cremos ser
possível traçar um perfil da mulher idealizada para,
a partir dele, deduzirmos o nível de discriminação
em relação aos homens e o grau de distinção
de acordo com as diferenças sociais entre elas próprias.
Já vimos anteriormente que os portugueses da época estudada,
independentemente de sexo ou posição social, cultuavam
à Mãe de Deus. Maria, além de outros atributos,
era tida como companheira fiel, advogada dos aflitos e mãe
extremada de todos filhos de Deus. Se atentarmos bem, ao longo das
crônicas de Lopes, verificaremos que essa era a projeção
que se fazia sobre as mulheres medievais portuguesas, esses eram os
anseios dos contemporâneos. Na imagem de Maria, tinham os coevos
um verdadeiro templo de moralidade sobre o qual calcavam os princípios
básicos para que a mulher vivesse constantemente em estado
de passividade. E se as mulheres comuns não podiam atingir
a perfeição encontrada na Mãe de Deus, ao menos
deveriam imitá-la. Podemos, inclusive, ir além em nosso
raciocínio, estabelecendo uma hierarquia que, começando
pela divindade, atingia as camadas mais populares da sociedade. A
Mãe de Deus seria uma espécie de espelho para as rainhas,
tidas como mães de todos os súditos; as damas da nobreza
espelhavam-se na rainha e, assim, sucessivamente, formando uma corrente
cuja irradiação ia se propagando até atingir
as mulheres mais simples. Por não ser uma irradiação
direta, torna-se evidente que as qualidades e as virtudes iam perdendo
a intensidade na medida em que se distanciavam do centro irradiador,
mas de qualquer forma será sempre possível a formação
de uma idéia ao menos aproximada do que estamos afirmando.
Referindo-se à rainha Dona Leonor, Lopes diz que “des
que ella rreinou apremderom as molheres teer novos geitos com seus
maridos, e as mostramças dhuuma cousa por outra mais perfeitamente
do que sse acha nos amciãos tempos, que outra Rainha de Portugal
fizesse”. Quer dizer, se não passou desapercebida essa
qualidade numa pessoa tão malquista, à qual o nosso
cronista não poupou críticas, muito mais teve a salientar
de uma que se fazia merecedora de sua admiração: a rainha
Dona Filipa. De fato, pelo retrato que Lopes esboça da rainha
Dona Filipa, esposa de D. João I, as mulheres deviam ser fervorosas
devotas, não se abstendo de orações diárias
e de leituras da Bíblia, de acordo com as celebrações
da ocasião, sendo que os salmos eram lidos às sextas-feiras.
Deviam ser caridosas, oferecendo esmolas aos pobres e às igrejas
e mosteiros, ser fiéis aos maridos, sem nunca aborrecê-los
e cuidar da educação dos filhos. Não era de bom
tom ter ódio nem rancor, ao contrário, era recomendável
que cultivassem a humildade e a mansidão e as suas obras deviam
sempre ser feitas com amor a Deus e ao próximo.
Esse era o parâmetro para Lopes, a própria mãe
de Deus. E como na hierarquia celestial Maria era considerada inferior
ao Pai e ao Filho, a mulher, em geral, era tida também como
inferior ao homem. E é interessante notar que em escala terrena
quanto mais forte a personalidade do marido menos voz tinha a mulher.
Assim é que abundam nas crônicas de Lopes, exemplos de
mulheres que estiveram ao lado do marido como uma simples sombra,
levando uma existência opaca, sem jamais manifestar qualquer
opinião. Também com base no mesmo paradigma de Maria,
a mulher era distinguida e discriminada com maior ou menor intensidade.
Quer dizer, quanto mais a mulher se afastasse do arquétipo
de moralidade que Maria representava, mais era condenada. A partir
dessa constatação compreendemos melhor porque as adúlteras
e as alcoviteiras eram perseguidas e as prostitutas confinadas em
ruas marginais das grandes cidades ou expulsas por pessoas tidas como
exemplares, como é o caso, já visto, de Nuno Álvares
Pereira.
Sendo a marginalização da mulher estabelecida por padrões
morais, Lopes não conseguiu perdoar nem àquelas que
mesmo sendo inteligentes, belas e dinâmicas, não se enquadravam
nos valores da época. Ao que tudo indica, embora já
se conhecesse a diferenciação da mulher em Eva, Helena,
Sofia e Maria [relação impulsiva, afetiva, intelectual
e moral], reprovavam-se naquela época todas as manifestações
arquetípicas que não se enquadrassem no último
caso. E Lopes não se deixou trair em nenhum momento. Mesmo
tentado diante da beleza e de algumas atitudes corajosas de Dona Leonor
Teles, permaneceu firme na defesa da moralidade. Tomemos por um tempo
algumas referências que Lopes faz sobre a rainha para nos convencermos
de que as contradições que elas encerram são
apenas aparentes:
“Esta rrainha dona Lionor, ao tempo que a el-rrei tomou por
molher, era bem manceba em fresca hidade e iguall em grandeza de corpo;
avia louçaão e gracioso geesto e todallas feiçoões
do rrostro quaaes o dereito da fremosura outorga, tall que nenhuua
por estonce era a ella semelhavell em bem parecer e dulcidom de falla,
sofrendo-nos porém de a prasmar d'alguuas cousas em que nom
onesto e muy solltamente fallarom. Ouve grande e vivo entendimento
por afortellezar seu estado, tragendo a seu amor e bem-querença
assi as grandes pessoas como as pequenas, mostrando a todos leda convesaçom,
com graada prestança e muitas bem-feiturias. E porquanto ella
era certa que nom prazia aas gentes meudas de ella sser rrainha, segundo
se mostrara em Lixboa e em outros logares, e ainda d'alguus grandes
duvidava muito, trabalhou-sse de aver da sua parte todollos moores
do rreino per casamentos e grandes officios e fortellezas de logares
que lhes fez dar, como adeante ouvirees. E fez ainda grande acrecentamento
espiciallmente n'os de seu linhagem (...) E fez muitos outros casamentos
e acrecentamentos em muitos fidallgos e grandes do rreino, por lhe
averem todos boom desejo e nom cahir em sua mall-querença,
de guisa que nom era nenhuum que de sua bem-feituria e acrecentamento
nom ouvesse parte. Era muito graada e liberall a quaaesquer que lhe
pediam, entanto que nunca a ella chegou pessoa por lhe demandar mercee
que d'ant'ella partisse com vãa esperança. Era ainda
de muita esmola e caridosa a todos, mas quanto fazia todo danava,
depois que conhecerom n'ella que era lavrador de Venus e criada em
sua corte: e fallando os malldizentes prasmavom-na dizendo que todallas
criadas d'aquella senhora se fingem sempre muito amaviosas, portanto
que o manto da caridade que mostram seja cobertura de seus desonestos
feitos.”
Não desconhecemos que era de praxe os cronistas medievais elogiarem
aos reis recém-empossados e que Lopes não se constituiu
em exceção. Mesmo levando em conta os seus vastos recursos
literários e a sua capacidade de traçar perfis quase
fotográficos das pessoas que descreveu, não deixou de
ser repetitivo ao realçar as qualidades dos reis. Para termos
uma idéia basta lembrarmo-nos de algumas características
gerais dos soberanos sobre os quais mais escreveu. D. Pedro I era
gago, bom monteiro, criador de fidalgos, liberal na concessão
de mercês, de bom desembargo e justiceiro. D. Fernando, ao menos
antes de iniciar a guerra com Castela, era bom monteiro, mancebo valente,
belo, amador das mulheres, criador de fidalgos, conhecedor e bom praticante
dos exercícios bélicos, tinha bom corpo e razoável
altura, amava a justiça e seu povo e era também muito
liberal na concessão de mercês. D. João I era
católico fervoroso, cortês no trato com as pessoas, piedoso
e amante da justiça, bom companheiro dos senhores e fidalgos,
benigno com o povo comum, fiel à sua mulher e liberal na distribuição
de mercês.
Como se pode observar, muitas das virtudes que Lopes atribuiu aos
reis eram comuns a todos, não nos causando portanto nenhuma
estranheza encontrarmos em D. Leonor alguns dos mesmos predicados.
Se tomássemos o texto em que Lopes esboçou o retrato
falado da rainha e o colocássemos no masculino, por certo o
confundiríamos com o de qualquer outro soberano. Por outro
lado, o fato de constatarmos algumas características particulares
em cada um desses monarcas não modifica em absolutamente nada
o nosso raciocínio porque, afinal, tanto a gagueira de D. Pedro
como a beleza de D. Fernando, a fidelidade de D. João ou a
fala doce de Dona Leonor constituíam-se em traços particulares
que lhes eram exclusivos e que nada tinham a ver com qualidades de
bem reger um reino. Então, como já dissemos acima, Lopes
não era misógino, isto é, não apresentava
nenhuma aversão às mulheres, mas tinha uma baliza muito
clara para os seus julgamentos de valor. D. Leonor, como qualquer
outra rainha de sua época, era aceita normalmente pela sociedade
como a mais elevada mandatária do reino, agia e comportava-se
de modo análogo a qualquer soberano do sexo masculino. Sua
condenação não se devia, portanto, ao fato de
haver alguma discriminação às governantes, mas
por sua conduta moral estar muito mais para Eva do que para Maria.
Convém esclarecermos melhor nossa última frase. De fato,
não se discriminavam as governantes; uma vez no poder as mulheres
eram respeitadas pelo cargo que desempenhavam, contudo a dificuldade
estava em atingi-lo. Somente em casos excepcionais é que uma
mulher era conduzida ao trono. É o caso da própria Dona
Leonor que somente assumiu a condição de regente enquanto
esperava um neto que lhe poderia vir da parte da filha única,
Dona Beatriz, com D. João I, de Castela. Não vindo o
herdeiro, assumiria o trono Dona Beatriz, mas quem de fato governaria
seria D. João I, rei de Castela. O fato não se consumou
em virtude da vitória da “Revolução de
Avis”; todavia não foi Dona Beatriz quem se colocou à
frente de um exército e invadiu Portugal para reclamar o trono,
mas seu marido, o rei D. João. Aliás, como já
tivemos oportunidade de frisar, essa Dona Beatriz não tinha
voz ativa diante do marido, que lhe embotava qualquer ação.
Da mesma forma não foi Dona Constança a dona das ações
na tentativa de reconquistar ao tio D. Henrique I o trono castelhano,
por ele conquistado de seu pai, o rei D. Pedro, mas o seu marido,
o duque de Lancaster que, aliando-se ao Mestre de Avis, foi defender
os interesses da mulher e inevitavelmente seria o rei de Castela caso
se concretizasse sua vitória. Tanto Dona Beatriz como Dona
Constança, apesar de serem as sucessoras legítimas,
pouco poder teriam numa sociedade em que ao homem eram destinados
os cargos de mando, especialmente aqueles que pressupunham o comando
de um exército.
Na realidade algumas funções estavam reservadas exclusivamente
aos homens, significando dizer que se não houvessem outras
razões, já apontadas, essa seria suficientemente forte
para afirmarmos que a mulher era marginalizada. As exceções
merecem menção, embora devamos ter em conta que o destaque
dado por Lopes aos casos que mostraremos a seguir, devem-se à
eventualidade de mulheres terem realizado funções próprias
de homens. Uma delas é a rainha Dona Joana, mulher de D. Henrique
I de Castela, que durante a Guerra Civil, para ajudar o marido contra
o seu meio-irmão D. Pedro, participava com desenvoltura das
atividades bélicas. Outra que agiu no comando de tropas, sem
entretanto se dar tão bem, foi a mulher de Airas Gonçalves.
Nesse caso, porque Lopes expressa um juízo de valor que vem
a propósito para a comprovação de nosso raciocínio,
vamos resumir a história. Airas Gonçalves era o alcaide
do Castelo de Gaya, no Porto, e certa feita, quando estava ausente,
sua mulher mandou pedir a uma aldeia que lhe entregassem certas coisas
de que necessitava. Os moradores, ao que parece já cansados
de sofrer o peso das tomadias, recusaram-se a obedecer, pelo que
“[a] molher dAiras Gõçallvez quamdo lhe com este
rrecado chegarom, com pouco siso e gram queixume foi aaquella alldea,
e levou quãtos tiinha comssigo por tomar vimgãça
delles, e trazer todo o que ouvesse voomtade.”
Os habitantes do Porto igualmente fartos das tomadias, constatando
a saída das pessoas responsáveis pela guarda, aproveitaram-se
da oportunidade para invadir o Castelo de Gaya, roubá-lo e
derrubar os seus muros e torres. Não é o caso de nos
determos aqui sobre a destruição do castelo, nem sobre
os efeitos nefastos das tomadias, mas lembrar que apesar delas serem
muito comuns nessa época, Lopes atribuiu mais importância
ao fato de ser uma mulher “desajuizada” a comandante responsável
por suscitar tal reação. Devemos ressalvar, nesse caso,
que a adjetivação deve-se mais ao resultado negativo
da ação do que propriamente à condição
de mulher. Ademais, não devemos deixar de considerar o fato
de que a causa dessa mulher não era a mesma do cronista; ela
não estava ao lado dos portugueses, o que provavelmente significaria
uma mudança de juízo
Além dessas duas passagens, onde são mulheres as comandantes
de ações militares, Lopes ainda menciona outras participações
femininas em combates. Quando morreu D. Fernando, os moradores de
Elvas foram todos combater o castelo da cidade que estava pela rainha,
“em guisa que atá as molheres e moços todos ajudavom
com o que podiam”. Em Estremoz e Portalegre houve também
participação das mulheres em favor do Mestre de Avis,
de forma que “nom soomente os homees como dito he, mas as molheres
amtre ssi tiinham bamdo polo Meestre, comtra quallquer que da sua
parte nom era”. Depois da batalha de Aljubarrota muitos retardatários
castelhanos sofreram as conseqüências de terem sido vencidos,
pois eram mortos e roubados pelos portugueses, “e nom soomente
os homeens, mas as molheres os ajudauom a roubar e premder”.
Mas sempre nesses casos as mulheres aparecem como coadjuvantes, nunca
no papel principal. A principal atividade das mulheres, quando participavam
de alguma ação conjunta com os homens, era a de catar
ou atirar pedras nos adversários, tarefa pouco nobre numa luta
medieval. Portanto, se a mulher já era discriminada da atividade
bélica, tida como essencialmente masculina, nas raríssimas
vezes em que participava, ficava ainda mais marginalizada por serem
reservados a elas papéis pouco dignificantes.
Enfim, assim foi como pudemos ver a mulher medieval portuguesa através
das Crônicas de Lopes. Um retrato ao mesmo tempo incompleto
e algo esteriotipado certamente, mas que nos permite afirmar que era
tratada com todo o respeito, desde que se comportasse dentro das delimitações
que a sociedade lhe impunha, especialmente como cumpridoras dos papéis
de mãe e de esposa. O respeito a uma mulher grávida
podia fazer com que cessasse até mesmo um combate, como ordenou
D. João I, ao saber que Teresa Gomes, mulher de Vasco Martins
de Melo, estava grávida e encontrava-se em perigo no castelo
de Ponte de Lima que então estava prestes a ser invadido. Da
mesma forma, quer dizer respeitosamente, os conselhos das mulheres
eram ouvidos e os de uma mãe poderiam ser prontamente atendidos,
a exemplo do que fizeram Gonçalo Vasques Coutinho e Nuno Álvares
Pereira. E os conselhos das esposas também eram freqüentes,
se bem que deles poderiam advir conseqüências tanto dignificantes
para a mulher, como poderiam redundar em depreciações
cruéis. Tomemos um exemplo de cada caso enunciado.
O destaque dado por Lopes à participação da rainha
Dona Catarina, de Castela, para a concretização das
pazes com Portugal após a guerra entre os dois vizinhos, iniciada
com a crise dinástica aberta com a morte de D. Fernando, é
muito importante. Nesse sentido diz Lopes que
“[esta] Raynna dona Caterina, semdo seu marido vyuo, trabalhaua
muyto com ele que ouuesse boa paz e amyzade com dom Johaão,
Rey de Portugal e cassado com sua jrmaã, fazendo-lhe palauras
dos gramdes dyuydos que todos de consum (sic) aviam, e todallas boas
razoees que a su preposyto acarretar podya, porque a esto o podesse
demover.”
Entretanto, como o rei entendesse que apenas o parentesco entre Dona
Catarina e sua irmã Dona Filipa, mulher de D. João I,
de Portugal, não era suficientemente forte para o convencer,
a rainha voltou a insistir, argumentando que a assinatura das pazes
não era nenhum demérito,
“...ca elle nem seu padre nam fazia tal guerra saluo por parte
da Raynha dona Breatiz; e que ella ouuyra dyzer a lleterados que seu
padre se ouuera tão mal açerca dos trautos que sobre
tal sobçesam foram feytos, que seu dereyto era muy dovidosso;
e que por tanto era bem aver paz.”
Mas, apesar da importância que podemos atribuir aos conselhos
de Dona Catarina, sua participação para a assinatura
das pazes somente foi mais efetiva após ter se tornado regente,
com a morte prematura do marido, quando conseqüentemente assumiu
maior poder.
Voltando aos conselhos, tomemos outro exemplo. Entre os rios Tejo
e Odiana havia uma vila chamada Portel, da qual era alcaide Fernão
Gonçalves de Souza, que tinha por mulher Teresa Meira. Na crise
sucessória iniciada em 1383, essa Dona, como fora aia da Rainha
Dona Beatriz, aconselhou o marido a se colocar ao lado do rei castelhano
contra Portugal. Seguindo tal conselho, deu-se mal o alcaide, pois
a localidade de Portel foi tomada por Nuno Álvares Pereira,
que permitiu a seus habitantes saírem a salvo para Castela,
onde Fernão Gonçalves recebeu outras vilas em troca
de sua posição política. Ao sair do local, diz
Lopes, o derrotado alcaide ia dizendo a sua mulher:
“Andaae per aqui, boa dona, e hiremos balhando, vos e eu, a
ssoom destas trompas; vos por maa puta velha, e eu por vilaão
fodudo no cuu ca assi quisestes vos. Ou camtemos desta guisa, que
será melhor:
Pois Marina baillo,
tome o que ganou
melhor era Portell e Villa Ruiva,
que nom Çafra e Segura, tome o que ganou,
dona puta velha.”
O desrespeito do alcaide em relação à mulher
é grande, embora seja inusitado nas crônicas de Lopes,
como aliás também o é a estranha forma como o
cronista se expressa a respeito. Portanto, não podemos considerar
esse tipo de comportamento como sendo um ato corriqueiro, justamente
porque foi singular. Mas, de qualquer forma, o que podemos concluir
é que a mulher era ouvida, sendo que às vezes, como
nesse caso, arcava de forma deplorável com as conseqüências
advindas de seus conselhos. Mas, apesar dos palavrões, é
difícil dizer o que eles realmente representavam de prático.
Não desconhecemos que a mulher medieval podia tanto receber
o tratamento mais inconveniente, como também podia ser endeusada.
Basta tomarmos dois provérbios correntes àquela época
para testemunharmos isso: “A la muger y a la candela, tuerce-le
el cuello si la quieres buena”, representando o que há
de mais grotesco no machismo medieval; e “lo que la muger quiere:
Dios lo quiere”, reproduzindo justamente o oposto, o lado em
que a mulher era vista sem que fosse esquecida a complementaridade
dos sexos.
Fora disso, e em resumo, podemos dizer que restava à mulher
o direito de pedir, pois nas Crônicas de Lopes são raríssimas
as oportunidades em que elas aparecem trocando idéias com um
interlocutor masculino. Num raro diálogo que localizamos, envolvendo
algumas viúvas de portugueses que haviam defendido as pretensões
do rei castelhano durante a “Revolução de Avis”,
e D. João I, observamos que uma delas, Dona Inês Afonso,
foi visivelmente agredida verbalmente pelo rei por ter influenciado
a posição do marido. Eis o diálogo:
“Dize-me, Ines Afomsso, de quall Burgos ou de quall Cordoua
era Gomçallo Vaasquez naturall, pera teer amte com os castellaãos
que com os portuguesses? — Era naturall, dissella, de muyta
maa vemtura que tinha guardada, que o trouue a morer maa morte. —
Maa morte moyraaes, disse El-Rey, ca uos matastes vosso marido e vosso
filho; e esto dizia elle porque bem sabia elle que per aazo della
teuerom elles com el-Rey de Castela. Senhor, dissella, nunca eu vy
nem ouuy dizer que molher que matasse o marido e o filho per sua vontade.
— Abasta! disse el-Rey. Nom curemos mais dessas razoões.”
3. OS MERCENÁRIOS
Em todo o espaço de tempo abrangido pelas crônicas de
Lopes, que vai de 1357 a 1411, a Península Ibérica esteve
envolvida em algum tipo de conflito armado, seja entre reinos cristãos,
entre cristãos e mouros, ou mesmo em guerras civis. É
bem verdade que houve uma longa paz no reinado de D. Pedro I [1357-1367],
mas limitou-se ao reino português. Castela, nessa época
em plena Guerra Civil, patrocinava o enredo favorito dos cronistas.
E, como não poderia deixar de ser, muita gente era envolvida
nos conflitos: gente comum, tomada de sentimento nacionalista ou desespero
de vir a ser vitimada pelos horrores da guerra; gente especializada,
que incluía as hostes feudais e as tropas mercenárias
recrutadas na França e na Inglaterra. Nossa intenção
é a de sabermos como Lopes e seus contemporâneos viam
esses mercenários e qual o conceito que deles faziam, mas convém,
preliminarmente, delinear a conjuntura que lhes favoreceu a vinda.
A guerra civil castelhana, envolvendo de um lado o rei D. Pedro I
e de outro o seu irmão bastardo, D. Henrique, Conde de Trastâmara,
iniciou-se quando se desenvolvia na Europa a Guerra dos Cem Anos,
que tinha como principais contendores a França e a Inglaterra.
Dadas as características específicas dessa guerra, especialmente
no que diz respeito a sua longa duração, os dois reinos
passaram a sentir, na medida em que o conflito se desenrolava, necessidade
de manter tropas mais regulares que aquelas propiciadas pelo recrutamento
feudal. Os integrantes desses contingentes foram, com o passar do
tempo, evidentemente se especializando no ofício da guerra,
de forma que durante os períodos de tréguas ficavam
disponíveis para a prestação de serviços
em outras localidades. O Trastâmara, que já estivera
na França, inclusive a serviço de João, o Bom,
trouxe consigo os mercenários franceses, enquanto que o rei
D. Pedro I conseguiu a ajuda dos ingleses, que estavam instalados
na Aquitânia, comandados pelo próprio Príncipe
Negro. A luta apenas mudava de local, sendo portanto lícito
considerar essa guerra civil, guardados os seus traços próprios,
um capítulo da Guerra dos Cem Anos.
A reunião dessas forças culminou com a Batalha de Nájera,
na qual D. Henrique foi derrotado e, enquanto esteve fora do reino,
D. Pedro I moveu guerra contra Aragão e fez várias incursões
no reino de Granada. D. Henrique, apesar do fracasso inicial, graças
à manutenção da aliança francesa e também
em virtude do desinteresse inglês em continuar ajudando D. Pedro
I, pelo fato deste não ter podido arcar com os compromissos
financeiros assumidos, recuperou-se e, dois anos mais tarde, acabou
vencendo a guerra, tendo inclusive, ele próprio, assassinado
o seu meio-irmão D. Pedro I e assumido a coroa castelhana.
Com a morte de D. Pedro, D. Henrique teve que enfrentar nova guerra,
desta feita com Portugal, porque D. Fernando, sendo sobrinho do rei
morto, reivindicava o trono castelhano para si. Nessa guerra D. Henrique
contava inicialmente com uma força mercenária inglesa
que acabou abandonando-o, como veremos oportunamente, e novamente
com os franceses, que continuaram alinhados ao lado dos castelhanos.
Já D. Fernando contou com o apoio inglês, não
por qualquer tipo de coerência em decorrência de terem
outrora apoiado o rei castelhano morto, que era parente de D. Fernando,
mas pela lógica das alianças que se consolidavam na
Península. Finalmente, com a morte do rei português abriu-se
uma crise sucessória que colocou em guerra o Mestre de Avis
de Portugal, D. João e seu homônimo de Castela, este
marido de D. Beatriz, a única filha de D. Fernando. Nessa nova
guerra peninsular os ingleses acudiram novamente Portugal, tendo na
oportunidade a justificativa especial de que o Duque de Cambridge
reivindicava o trono castelhano por ser casado com Dona Constança,
uma das filhas do rei Pedro, o Cruel, aquele que foi assassinado pelo
Trastâmara. Em resumo era essa a conjuntura militar da Península
Ibérica no período abrangido pelas crônicas de
Lopes. Voltemos, portanto, a nossa proposta original, qual seja, a
de estudarmos como Lopes e seus contemporâneos viam os mercenários.
Na guerra entre D. Pedro I, o Cruel, e o seu meio-irmão Henrique
de Trastâmara, a participação de forças
mercenárias foi intensa, cabendo destacar o fato de que até
então não estava caracterizada uma aliança entre
a França e Castela. A primeira intervenção maciça
de mercenários na Península deveu-se ao recrutamento
feito por D. Henrique e com os quais conquistou o reino. Lopes, quando
relata essa entrada de D. Henrique ao reino castelhano, diz que com
ele vinham
“...capitães de Aragão, scilicet, o conde de Denia
e Dom Filipe de Castro e outras companhias; e de França Mosse
Beltram de Claquim e o conde das Marchas e o senhor de Baim e o marechal
Dandemar, marechal de França, e outros cavaleiros; e de Inglaterra,
mossé Boitro de Carvabai, mosse Estacio, mosse Martim de Gorimai,
mosse Guilhem Alinante, mosse João de Obrens e muitos outros
cavaleiros e homens de armas de Inglaterra e Guiana e de Gasconha
e de outras nações.”
Quer dizer, um exército cosmopolita que demonstra muito claramente
que era grande a disponibilidade de homens especializados em guerras
nos períodos de trégua entre a França e a Inglaterra.
Homens indesejáveis no território francês na medida
em que, desocupados, procuravam meios de subsistência saqueando
os castelos das vizinhanças. Mercenários por excelência,
pois se não o fossem, seria inexplicável a presença
de tropas francesas e inglesas juntas, se pouco antes estavam se digladiando.
Enfim, eram tropas cujos componentes eram reunidos de acordo com uma
nova forma de recrutamento que se constituiu no germe dos exércitos
da modernidade. Mas, não obstante, temos que reconhecer que
esses profissionais da guerra, quando tinham que escolher entre lutar
pelos interesses de seus contratantes e combater ao lado de seus compatriotas,
preferiam a segunda hipótese.
Um exemplo sobre isso e que nos vem a calhar ocorreu nessa mesma guerra
civil castelhana de que estamos tratando. D. Pedro I, após
ter sido derrotado pelo Trastâmara, não se deu por vencido.
Dirigiu-se à Inglaterra, onde obteve apoio, sendo-lhe dado
um exército que, sob o comando do próprio Príncipe
Negro, entrou na Península via Navarra, para recuperar o seu
reino. Um exército bem poderoso, com certeza, pois inclusive
D. Carlos de Navarra ao reconhecer tal poderio não teve ânimo
para sustentar um acordo que fizera com D. Henrique de Trastâmara
no sentido de impedir essa prevista ação militar. Nessa
conjuntura é que D. Henrique foi abandonado pelos mercenários
ingleses, pois o comandante Calverley não teve dúvidas
em voltar-se contra o seu contratante e passar-se para o lado apoiado
por seus conterrâneos:
“E de Burgos se veo el-rrei a Alfaro, e alli se partio d'el
monssé Hugo de Carnaboi, ingres, com quatrocentos de cavallo
e foi-sse pera o principe seu senhor que da outra parte vinha; e el-rrei
dom Henrique, pero lhe muito pesou e lhe podera fazer nojo, nom o
quis fazer, teendo que fazia dereito em hir servir o principe, filho
d'el-rrei seu senhor.”
Uma situação curiosa. D. Henrique contrata mercenários
de várias nacionalidades, dentre os quais franceses e ingleses,
até há pouco em beligerância. Essas forças
combatem conjuntamente, usurpando o trono castelhano. O legítimo
rei, batido, vai para a Inglaterra, consegue o apoio britânico
e volta para reconquistar seu reino. Sir Calverley, até então
a serviço do usurpador, volta-se contra ele em virtude de ter
em maior apreço os laços de vassalidade que o ligavam
ao soberano inglês que ao dinheiro oriundo de suas atividades
mercenárias. D. Henrique compreende a atitude do comandante
inglês, julga-a correta do ponto de vista ético e não
o ataca apesar de poder fazê-lo. Na verdade, antes do descortinamento
de novos tempos para a Europa Medieval, é compreensível
um período de transição com a manifestação
de contradições dessa natureza, que, aliás, continuaram
a manifestar-se com freqüência até a Revolução
Francesa, quando surgiu o serviço militar obrigatório
e o mercenariato perdeu o sentido, exceto nas guerras coloniais em
que temos como exemplo extremo a Legião Estrangeira.
Os mercenários eram homens errantes que passavam boa parte
de suas existências em lutas em diversas localidades, onde quer
que fossem chamados. Os que intervieram na Península, por habitarem
ao norte dos Pirineus onde o estágio da arte da guerra era
mais adiantado, detinham experiência que os tornava capacitados
até mesmo para oferecer conselhos a reis. Tomemos dois exemplos
elucidativos: um envolvendo um cavaleiro francês e o rei castelhano;
outro, um cavaleiro inglês e o rei português. No primeiro
caso temos a história de um cavaleiro francês, camareiro
do rei, que foi a Castela com mensagem de seu senhor ao rei castelhano
e acabou ficando para participar de uma batalha contra os portugueses,
na qual, inclusive, faleceu. Do alto de seus sessenta anos este cavaleiro
ofereceu uma opinião ao rei castelhano que se não nos
desperta interesse pelo seu conteúdo de ordem estratégica,
por não fazer parte dos objetivos deste trabalho, proporciona-nos
a imagem do mercenário:
“Senhor, eu som caualeiro del-Rey da Framça, vosso jirmaão
e vosso amigo, e som ja na jdade que veedes, e ey vistas muytas batalhas,
assy de mouros come de christaãos, em quamto estive allem mar.
E pellas cousas que vy acomteçer, tanto ey apremdido em ellas
que huuma das cousas per que homeem moor avantagem pode teer de seu
emmigo assy he poer-sse em booa hordenança, assy em guerra
guerreada como em batalha. E em duas batalhas que eu fuy com el-Rey
Filipe e Rey Joham meus senhores comtra el-Rey dIngraterra e comtra
o prinçepe de Gallez seu filho, ambas se perderom por se nom
teer nellas booa hordenança...”
De sua parte, o cavaleiro inglês, por certo comandante dos mercenários
ingleses, embora Lopes não o qualifique assim, dizia a D. João
I antes da batalha de Aljubarrota:
“Senhor, sede muyto çerto sem nenhuuma duuida que uos
aues de uemçer esta batalha; e uedes, Senhor, em que o emtendo.
Eu fuy ja em sete batalhas campaes, e com esta som oito, e digo-uos
que nunca vy tam ledos vultos dhomeens, semdo tam poucos como estes
e auerem desperar tantos pera pellejar com elles.”
Embora conscientes de estarmos sendo repetitivos, dada a clareza do
texto reproduzido, queremos enfatizar os aspectos que mais nos interessam.
O cavaleiro francês tinha por volta de sessenta anos, viu e
participou de muitas batalhas, inclusive além-mar, serviu a
dois reis franceses e agora estava a serviço de um rei estrangeiro,
o que provavelmente não se constituía em novidade para
ele. Quanto ao cavaleiro inglês, Lopes nos legou menos informações,
mas uma delas, a de que participou de sete batalhas campais e que
estava pronto para entrar na oitava, é significativa. Com certeza
elas não se restringiram a um único reino, pois as batalhas
campais na Idade Média não eram assim tão freqüentes.
Estes, portanto, ao menos nas crônicas de Lopes, constituem-se
nos protótipos dos mercenários medievais. Homens afeitos
às guerras, que lutam ao lado de seus respectivos Senhores,
é verdade, mas não hesitam em combater ao lado de outros,
sem se importarem quanto a justiça da causa. Dedicam às
guerras toda as suas existências e, inclusive, chegam a morrer
nelas, conforme ocorreu, ao menos, com o mercenário francês.
Pelo exposto, podemos dizer que os mercenários foram agentes
influentes na composição dos contornos da política
ibérica do final do século XIV e início do XV.
Em Castela, a participação de mercenários faz
com que se torne bem mais fácil a compreensão da vitória
de D. Henrique sobre seu meio irmão, graças a aliança
que fez com os franceses e o concomitante abandono inglês a
D. Pedro, que não lhes conseguiu pagar os soldos. Muito menos
se entenderia a coragem de D. Fernando e de D. João I em enfrentar
os castelhanos não fosse o apoio inglês para contrabalançar
os apoios franceses a Castela. Aparentemente, portanto, os mercenários
eram muito bem vistos pela utilidade que tinham, e sendo necessários,
eram incluídos nos exércitos feudais de forma natural,
mesmo porque tal participação não implicava em
mudanças substanciais no caráter da guerra medieval
peninsular. Todavia, o comportamento dessas tropas em território
contratante, especialmente nos períodos em que se encontravam
desocupadas, é que causava mal-estar e às vezes a indignação
dos naturais da terra que, a partir de então, viam com reservas
esses colaboradores. Lopes em particular, não poupou os aliados
ingleses de D. Fernando de severas críticas:
“Estas gentes dos ingreses que dissemos, como forom apousentados
em Lixboa, nom como homees que viinham pera ajudar a defender a terra,
mas come se fossem chamados pera a destruir e buscar todo mall e desonrra
aos moradores d'ella, começarom, de sse estender pella cidade
e termo matando e rroubando e forçando molheres, mostrando
ttal senhorio e desprezamento contra todos come se fossem seus mortaaes
emmiigos de que sse novamente ouvessem d'asenhorar. E nenhuu no começo
ousava de tornar a ello, por grande rreceo que aviam d'el-rrei, que
tiinha mandado que nenhuu lhes fezesse nojo, polla gram necessidade
em que era posto de os aver mester...”
Na seqüência, após perguntar-se “que cumpre
mais dizer?”, Lopes apresenta uma série de atitudes dos
ingleses que comprovam o enunciado. E nós, da mesma forma,
poderíamos fazer a mesma pergunta, pois o texto apresenta-se
tão evidente na comprovação de nosso raciocínio
que se basta por si. De qualquer forma desejamos apenas sublinhar
que os portugueses, por sofrerem tantos desaforos, desonras, roubos
e crimes somente poderiam alimentar em relação aos mercenários
ingleses um sentimento de aversão muito grande, que levava
a sociedade a marginalizá-los, apesar da importância
militar que representavam.
Os ingleses permaneceram em Lisboa e cercanias enquanto durou o inverno.
Lopes diz-nos que nesse tempo o rei D. Fernando preocupou-se “em
dar cavallgaduras aos ingreses e hordenar as cousas que compriam pera
a guerra”. Sabemos, outrossim, que durante o inverno os exércitos
ficavam imobilizados, sem encontrar condições favoráveis
a deslocamentos em virtude das fortes chuvas que se verificavam nessa
época do ano. A chegada dos ingleses nessa época do
ano e a manutenção das tropas próximas a Lisboa
mostram claramente um erro organizacional de D. Fernando que, ademais,
recebeu uma força descavalgada. E ao passar o inverno providenciando
cavalgaduras para os seus aliados, o rei passou por muitos dissabores.
Em primeiro lugar deve-se observar que os ingleses não ficaram
esperando passivamente; muitos animais eram tomados aos seus donos
em compensação ao soldo que D. Fernando lhes devia,
segundo alegavam. Depois, temos a considerar que os bons animais para
a prática da guerra não eram abundantes; portanto, para
servir aos mercenários, o rei precisava desagradar aos seus
próprios patrícios requisitando-lhes as cavalgaduras,
o que, conseqüentemente, fazia dos ingleses pessoas malvistas.
No que concerne ao relacionamento entre portugueses e ingleses na
época de D. João I, devemos considerar que duas razões
principais, ao menos teoricamente, deveriam fazer com que fossem mais
amenas. Em primeiro lugar temos que ressaltar o fato do Duque de Lancaster
ter vindo à Península com o propósito de reclamar
o trono castelhano em virtude de ser casado com Dona Constança,
filha de D. Pedro, o Cruel, como já tivemos oportunidade de
afirmar. A segunda razão é que D. João I esposou
uma filha do Duque, Dona Filipa, e este último, como aspirante
ao cargo de rei, não poderia deixar passar a impressão
de indisciplina em suas tropas, pois além da preocupação
em evitar desgastes para a própria família se não
conseguia administrar sequer um pequeno exército, como poderia
governar Castela? Finalmente, não podemos deixar de considerar
que D. João I estava longe da insuperável inépcia
militar de D. Fernando. Mas, apesar desse clima, na prática
as coisas eram bem diferentes.
“As gemtes do Duque, pero fossem poucas como dissemos, porque
som homeens fora de sa terra de maa gouernança e pouca prouissam
açerca dos mantimentos, amdauom muy desbaratados e com gram
myngua; e elles (chamando) a toda a terra sua, deziam aas vezes aos
portugueses, quando cobrauom alguuma villa, que par Deus! elles faziam
mall de lhes roubarem suas fortallezas e villageens, e outras taaes
razoões de que os portugueses escarneçiam; e tanto que
el-Rey era posto em afam e cuidado por sua guarda e booa hordenamça.”
A passagem acima, Lopes escreveu-a como introdução a
uma desavença ainda maior que envolveu portugueses e ingleses
logo após a tomada da cidade castelhana denominada Valdeiras,
em 1387. O episódio já foi relatado quando abordamos
“O Ódio e a Sanha”; portanto, para o nosso propósito
atual, basta-nos lembrar que quando Valdeiras foi evacuada ficou à
mercê dos vitoriosos guerreiros, agora transformados em saqueadores
vorazes. E D. João I, em virtude das reclamações
do sogro de que “suas gemtes nom auiam boa companhia dos portugueses”,
decidiu para evitar dissabores ainda maiores, que o saque seria feito
até ao meio-dia pelos ingleses e após esse horário
entrariam os portugueses para aproveitarem-se do restante.
“E foy assy que o Duque e suas gemtes emtrarom pella menhaã
e começarom de roubar; e os portugueses, vemdo-lhe trazer os
mantimentos, auiam-no por gramde agrauo, dizemdo muytas razoões
amtre ssy sobresto, em tanto que se forom aa avilla muyto primeiro
amte de meyo dia, e começarom de roubar de mestura com elles.
Os jmgreses, queixamdo-se desto muyto, avyam aroydo huuns com os outros.”
A conclusão do episódio, como também já
vimos anteriormente, foi surpreendente. Ouvindo as reclamações
do Duque, seu sogro, D. João I, tido sempre como um rei equilibrado,
cavalgou até o local e “açesso com gram sanha”
matou dois portugueses e feriu muitos deles ao fazer com que saíssem
do local e cumprissem suas determinações. Depois desse
ato violento, foi restabelecida a ordem e os portugueses somente voltaram
a saquear depois do meio-dia. O que se poderia esperar desses exércitos
que nem sequer podiam estar juntos na hora do saque? Que pensar sobre
os sentimentos desses homens, uns em relação aos outros?
Depreendemos da leitura das crônicas de Lopes sobre essas questões
que da mesma forma como a aliança portuguesa com os britânicos
foi duradoura, também a aversão pelos mercenários
ingleses foi grande, pois os portugueses não perdiam oportunidade
de tomar vingança. Talvez não seja por outra razão
que os nossos já conhecidos cinco cavaleiros ingleses, após
uma refrega em Torres Novas, em 1385, chegaram-se ao Condestável
“queixando-sse muyto que morryam de fame e que queryam beuer
com elle”. Não encontravam, por certo, dentre os cavaleiros
menos graduados quem lhes desse guarida. Nuno Álvares, entretanto,
tendo cinco pães, contemplou os aliados e ficou sem nenhum,
tendo, inclusive, nesse dia, que se alimentar apenas de carne, o que
fez “com grande rjso e sabor”. Ao procurar mostrar o espírito
magnânimo de Nuno Álvares Pereira, Lopes nos ofereceu
também a oportunidade de demonstrarmos a marginalização
dos ingleses em território português.
4. ALEIJADOS E POBRES
Os aleijados e os pobres por certo não eram poucos na sociedade
portuguesa medieval, mas nas crônicas de Lopes, entretanto,
as referências a essa gente são mínimas ou demasiadamente
genéricas, dificultando qualquer tipo de análise mais
abrangente. Temos que recorrer a histórias particulares de
alguns indivíduos se quisermos obter algum resultado positivo.
A existência de um pobre manco nos chegou através de
Lopes porque envolveu-o na salvação de um fidalgo português,
Diogo Lopes Pacheco, que o rei castelhano D. Pedro pretendia repatriar
a Portugal para que o seu homônimo se vingasse dele em virtude
da suspeita de que participara da morte de Inês de Castro. Apesar
de já termos mencionado o episódio, ele serve, para
neste capítulo, frisarmos uma passagem que demonstra a marginalização
desses indivíduos. O pobre manco,
“[Andou] (...) quanto pode por onde entendeu que Diogo Lopes
viria e achou-o já vir com seus escudeiros, mui dessegurado
das novas que lhe ele levava. E dizendo o pobre a Diogo Lopes que
lhe queria falar, quisera-se ele escusar de o ouvir, como quem pouco
suspeitava que lhe trazia tal recado.
Afincando-se o pobre todavia que o ouvisse, contou-lhe à parte
como uma guarda del-rei de Castela com muitas gentes chegaram a seu
paço para o prender...”
O manco havia feito, com certeza, muito esforço para salvar
Diogo Lopes, pois se fosse fácil para ele locomover-se, a guarda
dos portões da cidade, que havia recebido ordens para não
deixar sair ninguém, evidentemente barraria a sua passagem.
Era, enfim, um homem grato ao fidalgo que o ajudava na subsistência
com as esmolas que costumeiramente lhe dava. Mesmo assim Diogo Lopes
somente o ouviu após convencer-se, pela insistência do
mendigo, que lhe tinha algo importante a dizer. Fica, portanto, muito
clara a existência de discriminação em relação
ao pobre manco, mas é difícil, entretanto, qualquer
avaliação a respeito do objeto que levava à discriminação:
era em virtude de sua pobreza, de sua deficiência física
ou da conjunção de ambos os infortúnios?
Quer nos parecer que a última hipótese levantada seja
a mais correta.
A tradição popular que atribuía ao Diabo a característica
de ser coxo devido a ferimento sofrido quando fora precipitado do
céu, resultava na crença de que os portadores de deformidades
físicas fossem seus agentes, resultando daí a rejeição.
Por outro lado a pobreza era atribuída a algum castigo. José
Mattoso entende que a marginalização dos pobres, assim
como dos leprosos e loucos, dava-se por motivos diferentes das aplicadas
aos histriões, prostitutas, judeus e mouros. Estes eram afastados
da sociedade por razões religiosas e morais; aqueles segundo
os conceitos da época, não tinham culpa do seu estado:
a pobreza era resultante do pecado original. Por não serem
responsáveis pela sua situação, era de se esperar
que fossem alvo permanente da caridade cristã; entretanto,
somente o foram a partir do século XI e, assim mesmo, graças
à insistência dos clérigos, que disseminaram a
idéia de que a caridade cristã era fonte de salvação:
“os pregadores insistem nos méritos morais da caridade,
e apresentam os pobres, não apenas como os portadores da maldição
do gênero humano, mas também como os que Deus mantém
nesse estado para que os ricos possam praticar a virtude da generosidade,
que os assemelha ao Senhor omnipotente.”
Não havia, conseqüentemente, em razão dessa representação
mental, qualquer preocupação em acabar com a mendicância
através de mudanças na ordem social estabelecida. Em
compensação multiplicavam-se as doações
para “ajudar os peregrinos, remir os cativos, construir albergarias
e hospitais, edificar e repassar pontes e caminhos, aliviar os pobres
e leprosos...”. As esmolas muitas vezes chegavam aos pobres
em virtude de legados de pessoas ricas que esperavam dessa forma expiar
os seus pecados e alcançar a recompensa eterna. “A pobreza
ajudava a riqueza a conquistar o Céu”. Pobres e clérigos
“são os cambistas que convertem a moeda humana, os bens
terrenos, em moeda celeste, os bens eternos”.
Quanto as feridas de guerra eram até mesmo usadas para vangloriar
aos seus detentores, conforme podemos constatar na ocasião
em que D. João I passou em revista suas forças em 1386.
Depois de uma revista geral, o rei pediu a Gonçalo Peres que
verificasse bem se todos os capitães faziam jus ao soldo que
recebiam. Os critérios, ao que se nota, eram o número
de lanças de cada um e as condições do armamento,
pois era evidente que um cavaleiro armado convenientemente tinha maior
valor bélico que um desarmado. Mas interessa-nos demonstrar
a questão das deformações e para tanto retomemos
a revista. Quando Gonçalo Peres aproximou-se de um dos comandantes,
que tinha mais de setenta lanças, com alguns cavaleiros bem
armados e outros nem tanto, este foi logo lhe dizendo:
“Digo, Gonçallo, que te pareçe a ty deste? —
porque estaua bem armado. — Sam Jorge he jsto, ca nom homeem
darmas. Faze-lhe trager huuma serpe e veras como a matara! —
e assy outras taaes razoões de gabo que por cada huum bem armado
dezia. E dos que nom eram bem armados tornaua dizer: Ves tu este,
Gomçallo? Sobejas som as armas que tem, ca de guerras e batalhas
hu foy he o corpo tam calejado que todo he cheo de sinaaes de feridas.
Emtom lhe fazia mostrar huum braço ou perna comtra sa vomtade,
e dhuuma rascadura pequena contaua tal golpe e como o soffrera que
pareçia façanha douuvir. E dizia logo: Ves tu? tal como
este nom quero eu que mate menos de seis, ca ja el tem prouado como
sabe o ferro frio. Dhij tu ao castellaão que venha pellejar
com este, ca aqui achara elle recado que o farte. E desta guissa a
huuns e a outros poinha taaes louuores quaees Gomçalo Perez
muyto bem notaua.”
Não eram defeitos congênitos, sobre os quais, aliás,
Lopes não nos oferece nenhuma informação, mas
feridas de guerra, o que torna qualquer conclusão de nossa
parte parcial. E, ainda assim, há divergências. Se por
um lado o comandante Antão Vasques esforçava-se por
demonstrar que as feridas eram sinônimo de bravura, experiência
e coragem, por outro, não podemos deixar de levar em conta
o fato de que as pessoas mostravam as suas feridas a contragosto,
o que pode muito bem ser uma demonstração de que se
envergonhavam delas. Em outras narrativas a impressão que Lopes
nos passa é a de que os ferimentos de guerra de certa forma
enobreciam o vitimado, e nem poderia ser diferente, pois se assim
não fosse as pessoas não teriam motivação
psicológica para participar de combates. Não queremos
dizer, evidentemente, que havia interesse dos combatentes em se deixarem
ferir, mas na eventualidade desse tipo de ocorrência, normalmente
ressaltava-se a coragem, o destemor e demais virtudes do gênero,
não se dando nenhuma ênfase às possibilidades
de imprudência, imperícia e outros fatores análogos
que prejudicassem a reputação do guerreiro. Exemplos
dessa natureza são abundantes nas crônicas de Lopes;
limitar-nos-emos, no entanto, ao estritamente necessário para
a ilustração do que estamos expondo. Numa das muitas
refregas que se deram entre portugueses e castelhanos durante o cerco
de Lisboa de 1384, João Rodrigues de Sá sofreu “quimze
feridas e duas no rrostro” e o Mestre andava entre os feridos,
esforçando-os e fazendo-lhes mercês e “todos davom
graças a Deos que os assi ajudara a deffemder de seus emmiigos”.
A história do pobre e manco levou-nos a contemplar as questões
relativas às deformações físicas. Voltemo-nos
agora para aquilo que podemos resgatar em Lopes sobre a pobreza. Iniciemos
por dizer que o estado de pobreza podia abater-se eventualmente sobre
elementos da nobreza, afetando, conseqüentemente toda a sua casa.
É o caso do infante D. João, filho de D. Pedro I e de
Dona Inês de Castro. Este moço após ter assassinado
a sua amante, D. Maria, irmã da rainha Dona Leonor, foi formalmente
perdoado por D. Fernando; no entanto
“ele vivia nojosa vida, e os seus isso meesmo passavom mui mall,
ca d'el-rrei lhe viinham poucos e maaos desembargos de suas teenças
e moradias, de guisa que apenhavom as armas e os vestidos, e ja nom
tiinham que apenhar se nom alaãos e sabujos, e com esta pobreza
se passou o iffante a rriba de Coa, e alli faziam sua gastada vida.”
Penhorar os próprios cães! Eis como se delineou a desgraçada
trajetória de vida deste moço que sendo filho de rei
— D. Pedro I com Inês de Castro — com possibilidades
de ascender ao trono, acabou tendo que se refugiar em território
castelhano. Claro que a fuga para o reino vizinho teve muito a ver
com o temor de vingança por parte dos parentes de Dona Maria;
todavia Lopes não deixou de frisar que ele “conheceo
bem que era escarnido”. Resta saber se era escarnido em virtude
de seu estado de pobreza ou por ter se tornado um assassino? Aí
reside outra dicotomia que não podemos resolver com provas
cabais, restando-nos, portanto, o raciocínio hipotético
de que o crime o levou à desgraça junto à Corte,
a qual induziu-o à pobreza. Não obstante, temos a considerar
que D. João não quis, não soube ou não
pode fazer política, pois não eram raros os exemplos
de assassinos inocentados pela opinião pública em virtude
de terem se dado bem politicamente.
Se um nobre descaído era menosprezado, que dizer de um pobre
qualquer? Sabemos que de forma geral o pobre era tratado como ser
inferior, não se levando em conta naquela época que
o seu estado fosse o resultado de um sistema econômico e social
extremamente injusto, pois os contemporâneos concebiam-no como
fruto da vontade divina que o colocara no mundo com uma missão
subalterna a cumprir. Quanto menor a possibilidade de conseguir a
subsistência com a força de seu trabalho maior era a
discriminação. Os mais miseráveis viviam das
esmolas que, por um ato de piedade cristã, lhes davam os mais
abastados. Mas até mesmo a piedade cristã desaparecia
quando ocorriam situações de desabastecimento e, nesses
casos, o poder dos mais fortes fazia-se sentir sobre os menos favorecidos
de maneira desumana.
Em 1384, quando a cidade de Lisboa estava cercada pelas forças
castelhanas, a situação alimentar da população
em geral era tão difícil que Lopes chegou a dizer que
o trigo era tão pouco que seria necessário multiplicá-lo
como fizera Cristo com os pães, a fim de alimentar os cinco
mil homens. E enquanto durava o cerco
“...gastousse a çidade assi, apertadamente, que as pubricas
esmollas começarom desfalleçer, e nenhuua geeraçom
de pobres achava quem lhe dar pam. de quisa que a perda comuu vemçemdo
de todo a piedade, e veemdo a gram mimgua dos mamtiimentos, estabelleçerom
deitar fora as gemtes mimguadas e nom perteeçemtes pera deffemssom;
e esto foi feito duas ou tres vezes, ataa lamçarem fora as
mançebas mundairas (sic) e Judeus e outras semelhantes...”
Despejados, esses pobres iam ao acampamento castelhano onde de início
lhes forneciam comida, mas logo, ao perceberem que os tratar seria
aliviar a cidade de seus infortúnios e, conseqüentemente,
desobrigá-la de uma rendição, passaram a enxotá-los,
restando-lhes como saída, para aliviarem o tormento da fome,
tomarem muita água e comerem ervas e raízes. Mas essas
atitudes desesperadas não se constituíam em solução
do problema e os pobres morriam pelas ruas ao lado de cachorros. A
piedade cristã cedia lugar à luta pela subsistência.
Finalmente, queremos registrar que o pobre, de forma geral, era facilmente
manipulado, não sendo raras as vezes em que aparecem nas crônicas
de Lopes, em multidão, seguindo inconscientemente esse ou aquele
senhor. Vamos, entretanto, nos ocupar do significativo caso de um
pobre que, ao ocupar um cargo estratégico, se constituiu em
presa fácil de um espertalhão, corrompendo-se para facilitar
a subsistência da família. Na narrativa da tomada de
Badalhouce pelos portugueses, em 1396, Lopes nos ofereceu esse exemplo,
embora a sua intenção fosse de ressaltar a astúcia
e a malícia de um seu patrício. Mesmo já tendo
reproduzido essa história, vale a pena retomá-la em
alguns de seus aspectos que, além de nos serem úteis
na demonstração de nosso argumento, servirá também
para mostrar algumas artimanhas utilizadas na guerra medieval, que,
na verdade, não era tão franca como equivocadamente
às vezes se imagina.
D. João I, ouvido o seu Conselho, planejou tomar as cidade
de Badalhouce e Albuquerque aos castelhanos porque estes não
lhe pagaram as “duzentas e çinqoenta myl dobras”
que haviam combinado no tratado de tréguas assinado em maio
de 1393. Para a execução da tarefa foi designado Martim
Afonso, que tratou logo de obter o maior número de informações
sobre tais localidades a fim de traçar o plano estratégico
para tomá-las concomitantemente. Nessa sua missão descobriu
que em Badalhouce vivia um português homiziado, chamado Gonçalves
Eanes, seu conhecido. Aproveitando-se de que a situação
jurídica de seu compatriota facilitava a sua participação
em troca do perdão, mandou chamá-lo e procurou obter
a sua contribuição para tomar a cidade de surpresa.
Obtido o apoio, foram-lhe sugeridas algumas alternativas, por certo
já experimentadas em outras oportunidades, que facilitariam
a tomada da cidade, como as medidas da altura dos muros para que fossem
construídas escadas apropriadas ou o modelo, em cera, das chaves
da porta principal da cidade para que se fabricassem cópias.
Entretanto Gonçalves Eanes encontrou uma maneira inédita
de obter o seu intento. Conhecendo o porteiro, disse-lhe saber da
existência de uma cova onde estava guardado certo trigo, nas
cercanias de Elvas, e que se lhe abrisse as portas da cidade em horas
previamente estabelecidas, repartiria com ele o produto. O porteiro,
por ser “muyto pobre e myngoado”, deixou-se levar pela
artimanha e caiu numa armadilha: depois de algumas ações
em que Gonçalves Eanes lhe forneceu trigo da cova secreta que
jamais existiu, descuidadamente saiu da cidade para trazer mais, deixando
abertas as portas e facilitando a ação portuguesa, que
resultou na tomada da cidade.
O que ocorreu com esse pobre porteiro não sabemos. Sua mulher,
entretanto, quase foi degolada porque ameaçara gritar quando
presenciou o início da invasão. Valeu-lhe a promessa
de que se calaria como de fato o fez. Pudera! Gonçalves Eanes
já ordenara a um ajudante: “degola esta puta; não
braade”.
Puta? Não, ao menos na verdadeira acepção da
palavra essa mulher nada tinha de puta. Mas era pobre e, conseqüentemente,
ao menos na ótica de quem a destratou, pouca diferença
fazia a imputação dessa desqualificação
moral. Afinal, assim ou de maneira semelhante, eram tratados os marginalizados
na Idade Média: com muito pouco respeito. É verdade
que variava a extremos o grau de marginalização, ao
menos sob nosso ponto de vista, que classificamos como marginalizados
tanto aqueles que eram simplesmente malvistos e malquistos, como os
que ocupavam lugares subalternos ou os que chegavam a ser discriminados
e confinados. Uns por conta do pecado original, como os pobres; outros,
em virtude de infrações morais, as prostitutas, os proxenetas;
outros, em virtude da religião e da raça, os mouros
e judeus; outros, em virtude de defeitos físicos, congênitos
ou não, os aleijados; outros devido à função
e ao sexo, a exemplo especialmente dos mercenários e das mulheres.
Na verdade uma multidão de despossuídos, condenados
por um sistema social injusto, mas conformada porque havia uma explicação
já devidamente interiorizada para tudo isso: cada qual havia
feito por merecer sua sina; quando não, era a vontade divina
que estava se manifestando e, com certeza, agindo com sabedoria, pois
alguma recompensa haveria de advir.