CAPÍTULO VI

OS MARGINALIZADOS NAS CRÔNICAS DE FERNÃO LOPES

1. MOUROS E JUDEUS
2. AS MULHERES
3. OS MERCENÁRIOS
4. ALEIJADOS E POBRES


CAPÍTULO VI

OS MARGINALIZADOS NAS CRÔNICAS DE FERNÃO LOPES

Se eventualmente o título deste capítulo sugerir que Lopes tratou algumas minorias com discriminação, não estará de todo mal colocado, inclusive pelo fato de que não foi muito prolixo em relatar episódios envolvendo-as, além de, não raro, como veremos, manifestar seu apoio a discriminações. Se, por outro lado, sugerir que os marginalizados o fossem pela sociedade da época e que Lopes apenas retratasse essa realidade, também estamos em acordo. Na verdade, ao adotar este título, pretendemos demonstrar ambas as coisas, pois entendemos que, sendo Lopes um homem medieval, apesar de superior em talento e discernimento em relação à média dos seus contemporâneos e inclusive dos seus colegas cronistas, não conseguiu romper com muitos dos preconceitos existentes naquela época e acabou deixando-nos pistas importantes sobre eles. Todavia, a respeito de algumas categorias sociais, praticamente nada teremos a analisar porque eram constituídas por indivíduos de tal forma marginalizados que, nas crônicas, somente aparecem em algumas raras menções, como é o caso das prostitutas, às quais Lopes refere-se como mulheres mundanas, dos aleijados e deformados, dos pobres e dos homossexuais; sobre outros, cujas informações são mais abundantes, obviamente teremos oportunidade de nos deter, como é o caso dos mouros, dos judeus, dos mercenários e das mulheres.

1. MOUROS E JUDEUS

Pelas informações que Lopes nos fornece, nas Cortes de Touro, convocadas por D. Henrique de Castela para restabelecer a ordem monetária, uma questão problemática no reino castelhano em virtude especialmente da guerra civil travada pela disputa do trono entre ele e o seu meio-irmão, D. João, foi estabelecido também que os mouros e os judeus ficavam obrigados a que “trouvessem sinaaes devisados per que fossem conhecidos”. Em Portugal também haviam alguns sinais que identificavam os judeus; um deles chegou ao nosso conhecimento graças a descrição de um fato bizarro, qual seja o de que os sapatos dos judeus e dos clérigos eram curtos, diferentes dos cristãos portugueses que os usavam de pontas longas. Isso, se não reflete nenhuma atitude ímpar, pois na Idade Média era comum esse tipo de procedimento também entre outras minorias e até mesmo entre as corporações de ofício, demonstra as precauções tomadas em relação a alguns segmentos que eram mantidos sob constante vigilância pela sociedade em geral.
A distinção entre os grupos, ao menos em tempos de normalidade, era inclusive algo que se fazia independentemente de qualquer imposição da lei, mas espontaneamente e às vezes por tradição. No que diz respeito especificamente aos judeus residentes em Portugal, era costume que, quando da visita dos monarcas às localidades onde possuíam comunidades, saíssem a esperá-los tendo ao peito os seus livros de leis, numa alusão de que, sobre a Tora, juravam fidelidade.
De qualquer forma a distinção mais ou menos generalizada entre os diversos grupos étnicos ou profissionais não implicava na obrigatoriedade do isolamento, o que ocorria com mouros e judeus, forçados a viver confinados. E não podemos nem sequer imaginar uma comparação entre o confinamento aplicado a eles com o de agrupamentos de profissionais qualificados num determinado ofício, em determinadas ruas. Estes tinham objetivos comerciais evidentes, aqueles eram isolados por serem discriminados pela sociedade da época. Lopes, inclusive, fez questão de evidenciar as raras vezes em que algum interesse ou perigo comum sobrepunha-se à discriminação e proporcionava, conseqüentemente, a oportunidade ou necessidade de convivência.
A necessidade advinha da guerra, como quando D. Henrique de Castela promoveu o cerco sobre Lisboa, em que, objetivando a proteção proporcionada pelos muros, cristãos e judeus entravam juntos na cidade, congestionando as portas. Nesses casos até mesmo algumas atitudes similares eram tomadas: tanto uns como os outros, na pressa de se refugiarem, jogavam os seus pertences nos poços na vã esperança de resgatá-los oportunamente. Quanto aos interesses comuns, quer nos parecer que o da causa nacional tenha sido o mais convergente. Tomemos como prova o mais inusitado exemplo, porque envolve o testemunho de um milagre:
“Foi maravilha (...) que Christaãos e Mouros que vellavom o muro da parte de Sam Victe de Fora (...), que aa mea noite, vellamdo alguus, virom viinte homes vestidos em vestiduras alvas assi como sacerdotes (...) e desto derom testemunho sete Christaãos e tres Mouros que vellavom huua torre.”
O fato de cristãos e mouros montarem guarda juntos somente pode ser explicado se considerarmos que estava se processando, em Portugal, naquela época — 1383-1385 — uma luta pelo poder que obrigava a todos tomar um partido, independentemente da religião que professavam. A causa nacional sobrepunha-se aos preconceitos, embora não os superasse. Tomemos uma passagem que acreditamos seja elucidativa para essa questão. Em 1385, logo após a derrota de Aljubarrota, os castelhanos viram-se forçados a abandonar a cidade de Santarém, sem dúvida, o reduto mais importante de que dispunham em Portugal, porque era evidente que os portugueses, entusiasmados com a vitória, voltariam suas atenções bélicas para lá. Ao saírem da cidade, às pressas e desordenadamente, os castelhanos deram liberdade a alguns prisioneiros portugueses importantes, pois levá-los poderia motivar seus compatriotas a uma perseguição, sob todos os aspectos desinteressante naquele momento. Dos libertados, o mais experiente em atividades militares era o prior D. Álvaro Gonçalves, que imediatamente após a retirada tomou algumas providências pertinentes, evitando que os castelhanos retardatários, sobreviventes de Aljubarrota, ali se recolhessem: foram hasteadas bandeiras às portas da cidade e alardeado que Santarém era novamente portuguesa, pois os castelhanos a haviam abandonado. Isso foi feito logo pela manhã, com participação coletiva:
“foram-sse trigosos pella menhaã bem çedo aas portas com pemdom leuamtado, e muytos portuguesses e judeos e mouros que no logar morauom (...) e começarom braadar altas vozes aas portas e pellos muros: Portugal, Portugall,, por el-Rey dom Joham!...”
Portugueses, judeus e mouros, todos juntos, unidos em torno da causa nacional? Não devemos nos iludir. Apesar da causa nacional ser realmente um motivo forte, um ponto de convergência para que essas três raças superassem os seus problemas de convívio, há motivos de sobra para supormos que tal ação conjunta tivesse sido motivada ou pelo oportunismo de estar ao lado do mais forte, ou pelas forças das circunstâncias. Nesse caso é praticamente certo que o perigo iminente fazia com que os cristãos se esquecessem de que mouros e judeus eram “infiéis”, e permitiam que assumissem tarefas militares. Quanto ao oportunismo mencionado, a explicação está no fato de ser inevitável a ação conjunta desses três grupos étnicos porque em caso contrário, aquele que ficasse em posição antagônica seria, inexoravelmente, perseguido pelos dois outros. De qualquer forma, sendo ambas as explicações corretas, ou sendo válida apenas uma delas, o que fica demonstrado é que existiam razões inibidoras de perseguições constantes e sistemáticas aos mouros e aos judeus.
Mas isso se constituía em exceção. A regra era que mouros e judeus fossem confinados em bairros isolados e que sofressem perseguições, como veremos adiante. Quando acontecia, por uma das razões acima expostas, dos grupos étnicos se misturarem, tomava-se logo as providências necessárias para a volta à normalidade. Assim é que imediatamente após terem se misturado aos portugueses para buscarem abrigo dentro dos muros de Lisboa, quando da invasão promovida por D. Henrique de Castela, “os mouros forros do arrevallde forom-sse todos com seus gasalhados pera o Curral dos Coelhos, junto com a forteleza dos paaços d'el-rrei, que he huu alto monte”. O confinamento, como já tivemos a oportunidade de frisar mantinha judeus e mouros sob estreita vigilância tanto das autoridades como da sociedade em geral. Mas, afinal, que temiam os portugueses em relação a esses povos e quais os motivos da discriminação?
Embora tenhamos identificado na religião um motivo comum, causador do confinamento e das perseguições aos judeus e mouros, vamos tomar o cuidado de apreciar separadamente as questões pertinentes a cada um deles, porque estamos convencidos de que existiam, ademais, peculiaridades nas respectivas situações.
Os mouros que habitavam Portugal, por serem islamitas, evidentemente atraíam sobre si a indignação da maioria cristã que não concebia naquela época a idéia de que houvesse outra religião verdadeira. Isso é perfeitamente compreensível se tivermos em mente que as concepções do homem medieval eram radicais e apaixonadas: o certo estava naquilo em que acreditava. Por outro lado é incontestável que o caráter de Guerra Santa imprimido às guerras entre os cristãos e muçulmanos na Península, contribuiu para consolidar de forma expressiva a aversão entre esses grupos. E é justamente por temor de que os mouros se colocassem ao lado de seus irmãos de fé que os cristãos portugueses tiveram-nos em constante vigilância. Temiam que um eventual conflito armado contra os mouros da vizinhança ou mesmo uma aliança moura com os reinos cristãos contra Portugal pudesse levar os islamitas a tomar o partido de seus confrades, em flagrante prejuízo aos interesses portugueses. Ao menos é a preocupação mais constante que observamos ao longo das crônicas e não sem razão.
Com efeito, os mouros, apesar de que no período objeto de nosso estudo já haviam perdido quase toda a Península em virtude da Reconquista, ainda ameaçavam os reinos cristãos. D. Fernando, certa feita, foi favorecido por isso, pois D. Henrique, de Castela, viu-se obrigado a deixar Portugal, onde promovia uma bem sucedida invasão, para voltar a sua terra e socorrê-la de uma incursão comandada pelo próprio rei de Granada. Se nesse caso Portugal deu-se bem, não importa; o exemplo presta-se para demonstrar a hipótese de que o temor em relação aos mouros se dava em virtude da possibilidade de haver uma aliança inversa. Aliança que nunca ocorreu, é verdade, mas que não se descartava porque, nessa época, as preocupações peninsulares eram comuns. E, pelas crônicas de Lopes, temos informações seguras de que, ao menos até 1390, a ameaça moura era seriamente considerada. Nesse ano D. João I, de Castela, reuniu seu Conselho para articular sua abdicação ao trono em favor de seu filho, que tinha o mesmo nome do avô, D. Henrique, de forma que assim pudesse continuar reclamando o seu direito sobre o reino português. Entretanto, na sua ânsia de anexar Portugal, o rei castelhano não se dava conta de que, na verdade, estaria dividindo e enfraquecendo o seu próprio reino, especialmente porque pretendia ficar com o domínio de algumas localidades importantes. Seus conselheiros, para dissuadi-lo dessa idéia esdrúxula, sequer levaram em conta que a “Revolução de Avis” há tempo estava consolidada; preferiram demonstrar a inconveniência da proposta com a argumentação de que os mouros, apercebendo-se da cisão, não relutariam em invadir Castela.
Por outro lado, temos que levar em conta também que, além da ameaça representada pelos mouros em termos de invasão, outro fator que mantinha o estado de aversão era o fato dos cristãos peninsulares manifestarem um crescente desejo de livrarem-se de tão incômoda vizinhança. Tanto é verdade que a Reconquista, praticamente paralisada desde 1212, experimentava um novo alento que pode ser percebido durante o longo período de negociação das pazes entre Portugal e Castela. Nas discussões, os embaixadores castelhanos sempre insistiam em incluir uma cláusula que viabilizasse uma aliança com Portugal contra os mouros. É bem verdade que tal aliança contra os islamitas jamais se concretizou, apesar do envio de algumas naus por Portugal para ajudar Castela, mas, de qualquer forma, isso não contribui para inviabilizar o nosso raciocínio, que tem por objetivo demonstrar que a marginalização dos muçulmanos em Portugal deveu-se ao medo das atitudes que poderiam ser por eles tomadas em caso de algum atrito com os seus confrades vizinhos. Na verdade o que nos importa são as intenções das partes, ou melhor dizendo, as discussões que geravam, porque elas sempre traziam à tona a lembrança de que havia um inimigo comum, um inimigo de fé, um inimigo que negava aquilo que, sob a ótica dos cristãos, era inadmissível ser sequer questionado. As discussões das pazes envolviam reis, fidalgos e prelados, mas não ficavam restritas a eles; irradiava-se até o povo comum que, incapaz de compreender a possibilidade de convivência harmônica, apesar da fé, radicalizava o seu preconceito em relação aos mouros.
No que concerne aos judeus não havia nenhum temor relativo à eventualidade de uma guerra, muito menos existiam seqüelas como aquelas provocadas pela invasão moura, que resultara na ocupação secular dos territórios Ibéricos. Mas existiam outros motivos, fortes do ponto de vista cristão, para que fossem marginalizados e sofressem, inclusive, perseguições da parte dos portugueses. Um desses motivos era comum também aos mouros, as diferenças religiosas; o outro estava ligado à questão econômico-financeira.
Sobre a questão religiosa, o raciocínio é análogo ao que adotamos com referência aos mouros, mesmo porque, ao menos no que diz respeito à monarquia portuguesa, o tratamento dispensado a essas duas raças era o mesmo, tanto que as leis que “regulam a situação de uns também mencionam os outros, sujeitando-os a todas às mesmas regras”. Era inaceitável para os cristãos o fato dos judeus não terem aceitado Jesus Cristo como filho de Deus, como o Messias e, como agravante, não pode deixar de ser mencionado o deicídio, que gerou um desentendimento profundo, até há pouco não solucionado entre cristãos e judeus, que está na origem de todas as futuras perseguições que os judeus sofreram. Para termos uma idéia de como as divergências religiosas marcavam profundamente as mentalidades da época, tomemos um trecho do discurso que o Dr. João das Regras proferiu nas Cortes de 1385, defendendo que os portugueses não deviam prestar obediência a D. João I, de Castela, que se julgava com direito à Coroa:
“Pois se o Papa Urbano nosso pastor e Deos sobre a terra, nos mamda e amoesta que perssigamos todollos çismaticos imfiees assi como hereges e membros talhados da egreja, avemdoos por escomungados da mayor escomunhom; outorgamdonos por esto, aquelles privillegios e perdoamças, que outorga aos que vaão comtra os emmiigos da ffe, em ajuda da Casa Samta; como tomaríamos nos por nosso rei e senhor, quem foy e he tam claramente cõtra elle e cabeça de tamta malldade e çisma?”
Tomamos tal discurso de propósito, pois nele fica muito clara a intolerância religiosa. Cismáticos, hereges, judeus e muçulmanos deveriam ser todos tratados como verdadeiros inimigos. Portanto, era sob o manto da fé e com autorização expressa do papa que os cristãos sentiam-se muito à vontade para discriminar e perseguir todos aqueles que não liam no mesmo breviário. Mas esse pretexto religioso disfarçava mal as razões econômico-financeiras que levavam os cristãos a um ódio incontido contra os judeus. No tumulto inicial que se seguiu ao assassinato do Andeiro, enquanto o povo de Lisboa, ainda meio desnorteado, não sabia exatamente o que fazer, uma das propostas foi a de
“rroubar alguus Judeus rricos da Judaria, assi como dom Yuda que fora Tesoureiro moor delRei dom Fernamdo, e dom Davi Negro que era gramde seu privado e outros; e que destes poderia aver o Meestre mui gram rriqueza pera soportamento de sua homrra.”
Roubar judeus ricos! A população lisboeta sabia, com certeza, a quem recorrer quando se tratava de dinheiro. E não eram dois ou três os judeus abastados de Portugal. Sabemos que durante a guerra entre D. Fernando e D. Henrique, quando os castelhanos tomaram Cascais, a localidade foi incendiada por ambos os contendores. Os portugueses ateavam fogo às casas para que os castelhanos não as ocupassem e estes por se sentirem agravados. De forma que a cidade foi praticamente destruída, inclusive a Judaria, sobre a qual Lopes não deixa de fazer um comentário revelador:
“...e ardeo toda a rrua Nova e a freeguesia da Madanella e de Sam Giaão e toda a judaria, a melhor parte da cidade...”
Quer dizer, a marginalização dos judeus não implicava que os seus guetos fossem pobres. Suas casas eram as melhores, em virtude obviamente da riqueza que possuíam. Riqueza, aliás, motivo do ciúme dos cristãos que, como vimos, não queriam perder a oportunidade de roubá-los. Mas os judeus, além de ricos, eram também espertos [ou por serem espertos eram ricos?]. Tomando conhecimento das intenções do povo de Lisboa quase concomitantemente às suas decisões, procuraram socorro. Não com a rainha, mas com o Mestre, que de fato acudiu-os, convencendo o povo a deixá-los em paz. Pela narrativa Lopes tenta passar a impressão de que os condes João Afonso e Álvaro Peres foram largamente responsáveis pelas decisões do Mestre, primeiro porque estando juntos, quando os judeus vieram em busca de auxílio, intercederam por eles; depois, já em meio à confusão, percebendo a dificuldade de demover o povo daquela idéia, aconselharam-no a abandonar o local porque entendiam que todos o seguiriam, como de fato ocorreu. Mas para nós as coisas não são tão simples e, embora faltem-nos provas, ficamos com algumas incertezas: qual o conteúdo da conversa entre o Mestre e os judeus? Não haveria porventura algum acordo de ajuda mútua entre ambas as partes?
É difícil acreditar que não, pois embora não tenha sido documentado nada a respeito desse fato, não consta, ao longo das crônicas de Lopes, que os judeus tivessem negado alguma contribuição à causa de Avis. Logo no início da “Revolução”, em 1383, quando o Mestre foi feito defensor do reino, precisando de dinheiro para a guerra, recebeu grande contribuição de todos os moradores de Lisboa e os judeus, além do pagamento normal, emprestaram ao Mestre sessenta marcos de prata. Significa dizer que os judeus tomaram o partido do Mestre, não há dúvidas, mas não podemos afirmar que tal atitude fosse desinteressada. A ascensão do Avis ao poder abria-lhes novas perspectivas, grandes possibilidades, como aliás a toda a sociedade portuguesa. E, ao que tudo indica, a vocação dos judeus para com o dinheiro fazia com que negociassem sempre com quem estivesse no poder, numa espécie de troca pela segurança de que necessitavam.
Dissemos anteriormente, que os judeus preteriram a rainha e foram pedir auxílio ao Mestre. Uma rápida digressão sobre isso será útil. No reinado de D. Fernando a comunidade judaica esteve sempre muito bem protegida porque alguns judeus participavam diretamente do poder, ocupando cargos estratégicos, dentre os quais o de tesoureiro. Com a morte deste rei uma comissão de “homens bons” de Lisboa dirigiu-se à rainha para sugerir-lhe algumas providências, dentre as quais o afastamento dos judeus de cargos públicos. Em nome da fé, evidentemente, ao menos segundo o que diziam:
“Outrossi, senhora, saberá a vossa mercee que os dereitos canonicos e civees e isso meesmo as leis do rregno defendem muito que judeus nem mouros nom ajam officios sobre os christaãos; e nom sem rrazom, porque forom e som criados, especiallmente os judeus, em odio e descreença de Jesu Christo, cuja lei e creença manteemos...”
E a rainha, empenhada em agradar a todos, sem aquilatar corretamente o poder político judaico na capital, foi muito solícita em atender às reivindicações, dizendo que de fato sempre fora sua intenção tirar os judeus dos cargos públicos, mas como não conseguira o seu intento em vida de D. Fernando, o faria então. Inclusive já dera provas suficientes de que suas palavras não eram promessas vãs. Logo após a morte do rei destituiu o tesoureiro e o almoxarife da alfândega bem como todos os sacadores e oficiais judeus. É difícil avaliar com precisão até que ponto a política anti-semita da rainha acabou sendo-lhe prejudicial, entretanto não temos dúvidas de que os “homens bons” de Lisboa não lhe foram pedir o afastamento dos judeus de cargos públicos unicamente por questões ligadas à fé. Evidentemente tinham por objetivo livrarem-se de competentes exatores que os incomodavam com cobranças de impostos.
Pelo exposto fica evidente o porquê da opção judaica à causa do Mestre. Diríamos que não foi sequer uma opção, mas uma necessidade pois, desamparados pela rainha, era a única opção que lhes restava visto que uma debandada geral para Castela não lhes era conveniente, afinal, apesar de todas as proibições a que estavam sujeitos Portugal, ainda lhes era o lugar mais propício. De qualquer forma, o que deve ficar bem claro é que os judeus, muito mais que em regulamentações de tolerância, tinham no dinheiro o ponto de equilíbrio para a sua segurança e, inclusive, chegavam a usá-lo para gozar de certas regalias e para exercer influência sobre os governantes. D. João, já eleito rei de Portugal, apesar do apoio recebido, não pôde impedir que as Cortes de Coimbra de 1385 tomassem algumas decisões discriminatórios aos judeus, e a rainha Dona Leonor, que havia dito aos homens bons de Lisboa que não aceitaria judeus em cargos públicos, tinha alguns deles como aliados privilegiados. Sabemos disso porque estando ela em Santarém, a receber o seu genro, o rei de Castela, com seus exércitos, foram ocupados todos os bairros da cidade, “salvo a judaria em que nom pousarom, por aazo de dom Davi Negro, e dous Judeus de gramde estado alliados aa Rainha”
Davi Negro, no mesmo ano em que foi favorecido pela rainha, 1384, depôs contra ela, denunciando ao rei castelhano um plano da sogra que incluía o seu assassinato. Resumidamente o que se passou foi o seguinte: quando a rainha Dona Leonor percebeu que o genro não lhe daria nenhuma oportunidade de continuar na regência, caso vencesse o Avis, e que, portanto, havia cometido um erro em incentivar a sua vinda a Portugal, pois acabara por tornar-se sua prisioneira, pretendeu livrar-se dele. Seguindo o conselho de uma dama chamada Beatriz de Castro, arquitetou um plano que incluía o Conde D. Pedro, que mataria o rei em seu acampamento, levaria a rainha para Coimbra onde se casaria com ela e se tornaria rei de Portugal, e o Conde D. Gonçalo, irmão de Dona Leonor, abriria as portas da cidade, permitindo-lhes a entrada, evitando assim que fossem perseguidos pelas tropas do rei. Porém um frade soube do plano e contou-o a D. Davi que por sua vez levou-o ao conhecimento do rei. Em conseqüência o rei preveniu-se de tal forma que acabou revertendo o processo e o Conde D. Pedro teve que fugir. Em seguida mandou prender D. Yuda, privado da rainha e Maria Peres, uma sua camareira, porque desconfiava que ambos sabiam do plano; depois mandou que trouxessem Dona Leonor à sua Câmara onde fez a acareação dos fatos. O resultado final foi que Maria Peres foi presa, a rainha presa e mandada para um convento em Tordesilhas e D. Yuda perdoado, a pedido de D. Davi Negro.
Talvez essa capacidade de acomodar-se a situações novas e agradar a senhores tão diferentes tenha contribuído ainda mais para infamar os judeus, cuja imagem, como vimos, já não era boa aos olhos do povo. D. Yuda, por exemplo, foi tesoureiro de D. Fernando, serviu à rainha Dona Leonor e depois a D. João I de Castela, depondo contra a rainha. E ninguém menos que seu cunhado, D. David Alguaduxe, foi o encarregado de tentar subornar Nuno Álvares Pereira. D. David, a mando de Gonçalo Vasques e com o consentimento do rei castelhano, abordou o Condestável português em Tomar, em 1384, justamente neste ano em que as dificuldades financeiras foram mais acentuadas para os seguidores do Avis e ofereceu-lhe de imediato mil dobras. Evidentemente que o Condestável recusou a oferta, mas a iniciativa de D. David, além de demonstrar a obviedade de que os guerreiros medievais eram passíveis de suborno, presta-se também para mostrar que os judeus não estavam muito interessados em questões que diziam respeito à nacionalidade. Pouco lhes importava estarem ao lado de Castela ou de Portugal, mesmo porque em qualquer um desses reinos estavam sujeitos ao mesmo tipo de tratamento. Discriminados, usavam o dinheiro que possuíam para obter posições que lhes dessem o direito de viver sem serem molestados. E, é importante ressaltar, embora já tenha ficado implícito no desenvolvimento de nosso raciocínio, bastava que dois ou três judeus ocupassem cargos proeminentes para que toda a comunidade judaica ficasse mais ou menos tranqüila no que diz respeito a sua segurança.
Resta-nos ainda lembrar que a riqueza dos judeus provinha da atividade comercial e, se deixamos essa questão tão relevante para ser tratada por último, não foi por acaso; ela encerra o maior paradoxo vivenciado pelos portugueses daquela época. Vejamo-lo, portanto, tomando como de costume, um exemplo encontrado nas crônicas de Lopes.
Referimo-nos a uma das atitudes justiceiras tomadas por D. Pedro I, que nos vem a propósito, por envolver um mascate judeu que andava pelo reino a mercadejar. Dois escudeiros, aos quais o rei queria bem por estarem há longa data consigo, roubaram e, ato contínuo, mataram esse comerciante ambulante. Sendo presos, foram levados à presença de D. Pedro que os interrogou até que confessassem o crime. Deixemos falar Lopes, para analisarmos melhor os seus dizeres;
“... (os dois escudeiros) houveram conselhos que fossem roubar um judeu que pelos montes andava vendendo especiaria e outras cousas. E foi assim feito, que foram buscar aquela suja presa e roubaram-no de tudo e, pior disto, foi morto por eles.”
Depois de terem confessado o crime,
“El-rei sorrindo-se disse que fizeram bem. Que tomar queriam mester de ladrões e matar homens pelos caminhos. De se ensinarem primeiro nos judeus e depos viriam aos cristãos.”
O rei, segundo Lopes, andava de um lado para outro, como que a lembrar-se da longa convivência que tivera com aqueles dois escudeiros, da criação que lhes havia dado e, com isso, seus olhos enchiam-se de lágrimas. De repente repreendia-os severamente e continuava a caminhar. Os presentes antevendo um final pouco feliz para os assassinos intercediam por eles, dizendo que
“...por um judeu astroso não era bem morrerem tais homens, e que bem era de os castigar por degredo ou outra alguma pena, mas não mostrar contra aqueles que criara, pelo primeiro erro, tão grande crueza.”
De nada adiantaram os rogos; os dois escudeiros foram degolados. Do ponto de vista judicial e no que tange à aplicação da justiça, não há nada que fugisse aos padrões da época. Se levarmos em conta o aspecto sentimental, somente reforçaremos a imagem de justiceiro do rei, pois havemos de concluir que nem as suas próprias lágrimas desviaram-no do dever real. Mas deixemos esses aspectos e vejamos onde se encontra a grande contradição anunciada.
Especialistas na arte de comprar e vender, os judeus tornaram-se abastados burgueses e, como não poderia deixar de suceder, numa época em que renascia o comércio e a circulação monetária, eram também poderosos usurários. Ora, se somente por terem se tornado ricos já atraiam a ira dos cristãos que se deixavam levar pela inveja, o que dizer então de contrariarem a proibição da prática da usura pela Igreja? Para termos uma idéia basta lembrarmo-nos de uma frase, reveladora de que o próprio Lopes se deixou envolver pelo clima de discriminação aos judeus: “os escudeiros foram buscar aquela suja presa” e, da qualificação de astroso, que lhe dá logo a seguir. Suja presa e astroso! Quer dizer, os judeus, mesmo para pessoas de boa formação intelectual, não passavam de seres inferiores. Se, portanto, o rei perdoasse aos seus escudeiros, não haveria, com certeza, nenhum tipo de problema. Afinal, na Idade Média, não se conhecia o princípio do direito que estabelece igualdade de justiça para todos, a própria Igreja reconhecia e disseminava a idéia de seus maiores pensadores de que os homens eram desiguais por natureza. Predominavam a força e o privilégio, como nos ensina Gama Barros. Justamente por isso não podemos deixar de ter em conta a prática do perdão, aplicada pelos reis sem que para tanto houvesse algum critério; não se levava em conta sequer o merecimento; era gratuito, como o perdão divino.
A condenação dos escudeiros, além de demonstrar que o rei D. Pedro I, para bem aplicar a justiça, superava os seus sentimentos, refletem a contradição de sua época. Embora chefe de uma nobreza, senhorial e eclesiástica, que tinha os seus interesses econômico-financeiros voltados à exploração da terra, e ele próprio, senhor de uma extensa casa agrícola, como rei, precisava sob pena do fracasso, exercer a função de árbitro e julgar, com isenção, de maneira a não prejudicar nem os interesses das forças conservadores nem os da nascente força antagônica. No caso específico dos judeus, podemos concluir que por serem infiéis eram isolados e discriminados, mas por serem comerciantes poderiam até serem submetidos ao confinamento e ao desprezo, mas eram tolerados porque eram necessários, afinal, a atividade comercial tornara-se imprescindível.

2. AS MULHERES

A marginalização da mulher nas crônicas de Lopes salta à vista. Basta tomarmos a proporcionalidade de menções a elas feitas, em comparação com os homens, para nos convencermos disso. Não que Lopes fosse
misógino; pois, ao contrário, em várias oportunidades mostra-se até mesmo muito simpático às mulheres. , Limitou-se, no entanto, a retratar uma realidade de sua época, em que a sociedade atribuía à esmagadora maioria das mulheres um papel secundário diante da história. De qualquer forma, apesar das escassas referências, cremos ser possível traçar um perfil da mulher idealizada para, a partir dele, deduzirmos o nível de discriminação em relação aos homens e o grau de distinção de acordo com as diferenças sociais entre elas próprias.
Já vimos anteriormente que os portugueses da época estudada, independentemente de sexo ou posição social, cultuavam à Mãe de Deus. Maria, além de outros atributos, era tida como companheira fiel, advogada dos aflitos e mãe extremada de todos filhos de Deus. Se atentarmos bem, ao longo das crônicas de Lopes, verificaremos que essa era a projeção que se fazia sobre as mulheres medievais portuguesas, esses eram os anseios dos contemporâneos. Na imagem de Maria, tinham os coevos um verdadeiro templo de moralidade sobre o qual calcavam os princípios básicos para que a mulher vivesse constantemente em estado de passividade. E se as mulheres comuns não podiam atingir a perfeição encontrada na Mãe de Deus, ao menos deveriam imitá-la. Podemos, inclusive, ir além em nosso raciocínio, estabelecendo uma hierarquia que, começando pela divindade, atingia as camadas mais populares da sociedade. A Mãe de Deus seria uma espécie de espelho para as rainhas, tidas como mães de todos os súditos; as damas da nobreza espelhavam-se na rainha e, assim, sucessivamente, formando uma corrente cuja irradiação ia se propagando até atingir as mulheres mais simples. Por não ser uma irradiação direta, torna-se evidente que as qualidades e as virtudes iam perdendo a intensidade na medida em que se distanciavam do centro irradiador, mas de qualquer forma será sempre possível a formação de uma idéia ao menos aproximada do que estamos afirmando. Referindo-se à rainha Dona Leonor, Lopes diz que “des que ella rreinou apremderom as molheres teer novos geitos com seus maridos, e as mostramças dhuuma cousa por outra mais perfeitamente do que sse acha nos amciãos tempos, que outra Rainha de Portugal fizesse”. Quer dizer, se não passou desapercebida essa qualidade numa pessoa tão malquista, à qual o nosso cronista não poupou críticas, muito mais teve a salientar de uma que se fazia merecedora de sua admiração: a rainha Dona Filipa. De fato, pelo retrato que Lopes esboça da rainha Dona Filipa, esposa de D. João I, as mulheres deviam ser fervorosas devotas, não se abstendo de orações diárias e de leituras da Bíblia, de acordo com as celebrações da ocasião, sendo que os salmos eram lidos às sextas-feiras. Deviam ser caridosas, oferecendo esmolas aos pobres e às igrejas e mosteiros, ser fiéis aos maridos, sem nunca aborrecê-los e cuidar da educação dos filhos. Não era de bom tom ter ódio nem rancor, ao contrário, era recomendável que cultivassem a humildade e a mansidão e as suas obras deviam sempre ser feitas com amor a Deus e ao próximo.

Esse era o parâmetro para Lopes, a própria mãe de Deus. E como na hierarquia celestial Maria era considerada inferior ao Pai e ao Filho, a mulher, em geral, era tida também como inferior ao homem. E é interessante notar que em escala terrena quanto mais forte a personalidade do marido menos voz tinha a mulher. Assim é que abundam nas crônicas de Lopes, exemplos de mulheres que estiveram ao lado do marido como uma simples sombra, levando uma existência opaca, sem jamais manifestar qualquer opinião. Também com base no mesmo paradigma de Maria, a mulher era distinguida e discriminada com maior ou menor intensidade. Quer dizer, quanto mais a mulher se afastasse do arquétipo de moralidade que Maria representava, mais era condenada. A partir dessa constatação compreendemos melhor porque as adúlteras e as alcoviteiras eram perseguidas e as prostitutas confinadas em ruas marginais das grandes cidades ou expulsas por pessoas tidas como exemplares, como é o caso, já visto, de Nuno Álvares Pereira.
Sendo a marginalização da mulher estabelecida por padrões morais, Lopes não conseguiu perdoar nem àquelas que mesmo sendo inteligentes, belas e dinâmicas, não se enquadravam nos valores da época. Ao que tudo indica, embora já se conhecesse a diferenciação da mulher em Eva, Helena, Sofia e Maria [relação impulsiva, afetiva, intelectual e moral], reprovavam-se naquela época todas as manifestações arquetípicas que não se enquadrassem no último caso. E Lopes não se deixou trair em nenhum momento. Mesmo tentado diante da beleza e de algumas atitudes corajosas de Dona Leonor Teles, permaneceu firme na defesa da moralidade. Tomemos por um tempo algumas referências que Lopes faz sobre a rainha para nos convencermos de que as contradições que elas encerram são apenas aparentes:
“Esta rrainha dona Lionor, ao tempo que a el-rrei tomou por molher, era bem manceba em fresca hidade e iguall em grandeza de corpo; avia louçaão e gracioso geesto e todallas feiçoões do rrostro quaaes o dereito da fremosura outorga, tall que nenhuua por estonce era a ella semelhavell em bem parecer e dulcidom de falla, sofrendo-nos porém de a prasmar d'alguuas cousas em que nom onesto e muy solltamente fallarom. Ouve grande e vivo entendimento por afortellezar seu estado, tragendo a seu amor e bem-querença assi as grandes pessoas como as pequenas, mostrando a todos leda convesaçom, com graada prestança e muitas bem-feiturias. E porquanto ella era certa que nom prazia aas gentes meudas de ella sser rrainha, segundo se mostrara em Lixboa e em outros logares, e ainda d'alguus grandes duvidava muito, trabalhou-sse de aver da sua parte todollos moores do rreino per casamentos e grandes officios e fortellezas de logares que lhes fez dar, como adeante ouvirees. E fez ainda grande acrecentamento espiciallmente n'os de seu linhagem (...) E fez muitos outros casamentos e acrecentamentos em muitos fidallgos e grandes do rreino, por lhe averem todos boom desejo e nom cahir em sua mall-querença, de guisa que nom era nenhuum que de sua bem-feituria e acrecentamento nom ouvesse parte. Era muito graada e liberall a quaaesquer que lhe pediam, entanto que nunca a ella chegou pessoa por lhe demandar mercee que d'ant'ella partisse com vãa esperança. Era ainda de muita esmola e caridosa a todos, mas quanto fazia todo danava, depois que conhecerom n'ella que era lavrador de Venus e criada em sua corte: e fallando os malldizentes prasmavom-na dizendo que todallas criadas d'aquella senhora se fingem sempre muito amaviosas, portanto que o manto da caridade que mostram seja cobertura de seus desonestos feitos.”
Não desconhecemos que era de praxe os cronistas medievais elogiarem aos reis recém-empossados e que Lopes não se constituiu em exceção. Mesmo levando em conta os seus vastos recursos literários e a sua capacidade de traçar perfis quase fotográficos das pessoas que descreveu, não deixou de ser repetitivo ao realçar as qualidades dos reis. Para termos uma idéia basta lembrarmo-nos de algumas características gerais dos soberanos sobre os quais mais escreveu. D. Pedro I era gago, bom monteiro, criador de fidalgos, liberal na concessão de mercês, de bom desembargo e justiceiro. D. Fernando, ao menos antes de iniciar a guerra com Castela, era bom monteiro, mancebo valente, belo, amador das mulheres, criador de fidalgos, conhecedor e bom praticante dos exercícios bélicos, tinha bom corpo e razoável altura, amava a justiça e seu povo e era também muito liberal na concessão de mercês. D. João I era católico fervoroso, cortês no trato com as pessoas, piedoso e amante da justiça, bom companheiro dos senhores e fidalgos, benigno com o povo comum, fiel à sua mulher e liberal na distribuição de mercês.
Como se pode observar, muitas das virtudes que Lopes atribuiu aos reis eram comuns a todos, não nos causando portanto nenhuma estranheza encontrarmos em D. Leonor alguns dos mesmos predicados. Se tomássemos o texto em que Lopes esboçou o retrato falado da rainha e o colocássemos no masculino, por certo o confundiríamos com o de qualquer outro soberano. Por outro lado, o fato de constatarmos algumas características particulares em cada um desses monarcas não modifica em absolutamente nada o nosso raciocínio porque, afinal, tanto a gagueira de D. Pedro como a beleza de D. Fernando, a fidelidade de D. João ou a fala doce de Dona Leonor constituíam-se em traços particulares que lhes eram exclusivos e que nada tinham a ver com qualidades de bem reger um reino. Então, como já dissemos acima, Lopes não era misógino, isto é, não apresentava nenhuma aversão às mulheres, mas tinha uma baliza muito clara para os seus julgamentos de valor. D. Leonor, como qualquer outra rainha de sua época, era aceita normalmente pela sociedade como a mais elevada mandatária do reino, agia e comportava-se de modo análogo a qualquer soberano do sexo masculino. Sua condenação não se devia, portanto, ao fato de haver alguma discriminação às governantes, mas por sua conduta moral estar muito mais para Eva do que para Maria.
Convém esclarecermos melhor nossa última frase. De fato, não se discriminavam as governantes; uma vez no poder as mulheres eram respeitadas pelo cargo que desempenhavam, contudo a dificuldade estava em atingi-lo. Somente em casos excepcionais é que uma mulher era conduzida ao trono. É o caso da própria Dona Leonor que somente assumiu a condição de regente enquanto esperava um neto que lhe poderia vir da parte da filha única, Dona Beatriz, com D. João I, de Castela. Não vindo o herdeiro, assumiria o trono Dona Beatriz, mas quem de fato governaria seria D. João I, rei de Castela. O fato não se consumou em virtude da vitória da “Revolução de Avis”; todavia não foi Dona Beatriz quem se colocou à frente de um exército e invadiu Portugal para reclamar o trono, mas seu marido, o rei D. João. Aliás, como já tivemos oportunidade de frisar, essa Dona Beatriz não tinha voz ativa diante do marido, que lhe embotava qualquer ação. Da mesma forma não foi Dona Constança a dona das ações na tentativa de reconquistar ao tio D. Henrique I o trono castelhano, por ele conquistado de seu pai, o rei D. Pedro, mas o seu marido, o duque de Lancaster que, aliando-se ao Mestre de Avis, foi defender os interesses da mulher e inevitavelmente seria o rei de Castela caso se concretizasse sua vitória. Tanto Dona Beatriz como Dona Constança, apesar de serem as sucessoras legítimas, pouco poder teriam numa sociedade em que ao homem eram destinados os cargos de mando, especialmente aqueles que pressupunham o comando de um exército.
Na realidade algumas funções estavam reservadas exclusivamente aos homens, significando dizer que se não houvessem outras razões, já apontadas, essa seria suficientemente forte para afirmarmos que a mulher era marginalizada. As exceções merecem menção, embora devamos ter em conta que o destaque dado por Lopes aos casos que mostraremos a seguir, devem-se à eventualidade de mulheres terem realizado funções próprias de homens. Uma delas é a rainha Dona Joana, mulher de D. Henrique I de Castela, que durante a Guerra Civil, para ajudar o marido contra o seu meio-irmão D. Pedro, participava com desenvoltura das atividades bélicas. Outra que agiu no comando de tropas, sem entretanto se dar tão bem, foi a mulher de Airas Gonçalves. Nesse caso, porque Lopes expressa um juízo de valor que vem a propósito para a comprovação de nosso raciocínio, vamos resumir a história. Airas Gonçalves era o alcaide do Castelo de Gaya, no Porto, e certa feita, quando estava ausente, sua mulher mandou pedir a uma aldeia que lhe entregassem certas coisas de que necessitava. Os moradores, ao que parece já cansados de sofrer o peso das tomadias, recusaram-se a obedecer, pelo que
“[a] molher dAiras Gõçallvez quamdo lhe com este rrecado chegarom, com pouco siso e gram queixume foi aaquella alldea, e levou quãtos tiinha comssigo por tomar vimgãça delles, e trazer todo o que ouvesse voomtade.”
Os habitantes do Porto igualmente fartos das tomadias, constatando a saída das pessoas responsáveis pela guarda, aproveitaram-se da oportunidade para invadir o Castelo de Gaya, roubá-lo e derrubar os seus muros e torres. Não é o caso de nos determos aqui sobre a destruição do castelo, nem sobre os efeitos nefastos das tomadias, mas lembrar que apesar delas serem muito comuns nessa época, Lopes atribuiu mais importância ao fato de ser uma mulher “desajuizada” a comandante responsável por suscitar tal reação. Devemos ressalvar, nesse caso, que a adjetivação deve-se mais ao resultado negativo da ação do que propriamente à condição de mulher. Ademais, não devemos deixar de considerar o fato de que a causa dessa mulher não era a mesma do cronista; ela não estava ao lado dos portugueses, o que provavelmente significaria uma mudança de juízo
Além dessas duas passagens, onde são mulheres as comandantes de ações militares, Lopes ainda menciona outras participações femininas em combates. Quando morreu D. Fernando, os moradores de Elvas foram todos combater o castelo da cidade que estava pela rainha, “em guisa que atá as molheres e moços todos ajudavom com o que podiam”. Em Estremoz e Portalegre houve também participação das mulheres em favor do Mestre de Avis, de forma que “nom soomente os homees como dito he, mas as molheres amtre ssi tiinham bamdo polo Meestre, comtra quallquer que da sua parte nom era”. Depois da batalha de Aljubarrota muitos retardatários castelhanos sofreram as conseqüências de terem sido vencidos, pois eram mortos e roubados pelos portugueses, “e nom soomente os homeens, mas as molheres os ajudauom a roubar e premder”. Mas sempre nesses casos as mulheres aparecem como coadjuvantes, nunca no papel principal. A principal atividade das mulheres, quando participavam de alguma ação conjunta com os homens, era a de catar ou atirar pedras nos adversários, tarefa pouco nobre numa luta medieval. Portanto, se a mulher já era discriminada da atividade bélica, tida como essencialmente masculina, nas raríssimas vezes em que participava, ficava ainda mais marginalizada por serem reservados a elas papéis pouco dignificantes.
Enfim, assim foi como pudemos ver a mulher medieval portuguesa através das Crônicas de Lopes. Um retrato ao mesmo tempo incompleto e algo esteriotipado certamente, mas que nos permite afirmar que era tratada com todo o respeito, desde que se comportasse dentro das delimitações que a sociedade lhe impunha, especialmente como cumpridoras dos papéis de mãe e de esposa. O respeito a uma mulher grávida podia fazer com que cessasse até mesmo um combate, como ordenou D. João I, ao saber que Teresa Gomes, mulher de Vasco Martins de Melo, estava grávida e encontrava-se em perigo no castelo de Ponte de Lima que então estava prestes a ser invadido. Da mesma forma, quer dizer respeitosamente, os conselhos das mulheres eram ouvidos e os de uma mãe poderiam ser prontamente atendidos, a exemplo do que fizeram Gonçalo Vasques Coutinho e Nuno Álvares Pereira. E os conselhos das esposas também eram freqüentes, se bem que deles poderiam advir conseqüências tanto dignificantes para a mulher, como poderiam redundar em depreciações cruéis. Tomemos um exemplo de cada caso enunciado.
O destaque dado por Lopes à participação da rainha Dona Catarina, de Castela, para a concretização das pazes com Portugal após a guerra entre os dois vizinhos, iniciada com a crise dinástica aberta com a morte de D. Fernando, é muito importante. Nesse sentido diz Lopes que
“[esta] Raynna dona Caterina, semdo seu marido vyuo, trabalhaua muyto com ele que ouuesse boa paz e amyzade com dom Johaão, Rey de Portugal e cassado com sua jrmaã, fazendo-lhe palauras dos gramdes dyuydos que todos de consum (sic) aviam, e todallas boas razoees que a su preposyto acarretar podya, porque a esto o podesse demover.”
Entretanto, como o rei entendesse que apenas o parentesco entre Dona Catarina e sua irmã Dona Filipa, mulher de D. João I, de Portugal, não era suficientemente forte para o convencer, a rainha voltou a insistir, argumentando que a assinatura das pazes não era nenhum demérito,
“...ca elle nem seu padre nam fazia tal guerra saluo por parte da Raynha dona Breatiz; e que ella ouuyra dyzer a lleterados que seu padre se ouuera tão mal açerca dos trautos que sobre tal sobçesam foram feytos, que seu dereyto era muy dovidosso; e que por tanto era bem aver paz.”
Mas, apesar da importância que podemos atribuir aos conselhos de Dona Catarina, sua participação para a assinatura das pazes somente foi mais efetiva após ter se tornado regente, com a morte prematura do marido, quando conseqüentemente assumiu maior poder.
Voltando aos conselhos, tomemos outro exemplo. Entre os rios Tejo e Odiana havia uma vila chamada Portel, da qual era alcaide Fernão Gonçalves de Souza, que tinha por mulher Teresa Meira. Na crise sucessória iniciada em 1383, essa Dona, como fora aia da Rainha Dona Beatriz, aconselhou o marido a se colocar ao lado do rei castelhano contra Portugal. Seguindo tal conselho, deu-se mal o alcaide, pois a localidade de Portel foi tomada por Nuno Álvares Pereira, que permitiu a seus habitantes saírem a salvo para Castela, onde Fernão Gonçalves recebeu outras vilas em troca de sua posição política. Ao sair do local, diz Lopes, o derrotado alcaide ia dizendo a sua mulher:
“Andaae per aqui, boa dona, e hiremos balhando, vos e eu, a ssoom destas trompas; vos por maa puta velha, e eu por vilaão fodudo no cuu ca assi quisestes vos. Ou camtemos desta guisa, que será melhor:
Pois Marina baillo,
tome o que ganou
melhor era Portell e Villa Ruiva,
que nom Çafra e Segura, tome o que ganou,
dona puta velha.”
O desrespeito do alcaide em relação à mulher é grande, embora seja inusitado nas crônicas de Lopes, como aliás também o é a estranha forma como o cronista se expressa a respeito. Portanto, não podemos considerar esse tipo de comportamento como sendo um ato corriqueiro, justamente porque foi singular. Mas, de qualquer forma, o que podemos concluir é que a mulher era ouvida, sendo que às vezes, como nesse caso, arcava de forma deplorável com as conseqüências advindas de seus conselhos. Mas, apesar dos palavrões, é difícil dizer o que eles realmente representavam de prático. Não desconhecemos que a mulher medieval podia tanto receber o tratamento mais inconveniente, como também podia ser endeusada. Basta tomarmos dois provérbios correntes àquela época para testemunharmos isso: “A la muger y a la candela, tuerce-le el cuello si la quieres buena”, representando o que há de mais grotesco no machismo medieval; e “lo que la muger quiere: Dios lo quiere”, reproduzindo justamente o oposto, o lado em que a mulher era vista sem que fosse esquecida a complementaridade dos sexos.
Fora disso, e em resumo, podemos dizer que restava à mulher o direito de pedir, pois nas Crônicas de Lopes são raríssimas as oportunidades em que elas aparecem trocando idéias com um interlocutor masculino. Num raro diálogo que localizamos, envolvendo algumas viúvas de portugueses que haviam defendido as pretensões do rei castelhano durante a “Revolução de Avis”, e D. João I, observamos que uma delas, Dona Inês Afonso, foi visivelmente agredida verbalmente pelo rei por ter influenciado a posição do marido. Eis o diálogo:
“Dize-me, Ines Afomsso, de quall Burgos ou de quall Cordoua era Gomçallo Vaasquez naturall, pera teer amte com os castellaãos que com os portuguesses? — Era naturall, dissella, de muyta maa vemtura que tinha guardada, que o trouue a morer maa morte. — Maa morte moyraaes, disse El-Rey, ca uos matastes vosso marido e vosso filho; e esto dizia elle porque bem sabia elle que per aazo della teuerom elles com el-Rey de Castela. Senhor, dissella, nunca eu vy nem ouuy dizer que molher que matasse o marido e o filho per sua vontade. — Abasta! disse el-Rey. Nom curemos mais dessas razoões.”

3. OS MERCENÁRIOS

Em todo o espaço de tempo abrangido pelas crônicas de Lopes, que vai de 1357 a 1411, a Península Ibérica esteve envolvida em algum tipo de conflito armado, seja entre reinos cristãos, entre cristãos e mouros, ou mesmo em guerras civis. É bem verdade que houve uma longa paz no reinado de D. Pedro I [1357-1367], mas limitou-se ao reino português. Castela, nessa época em plena Guerra Civil, patrocinava o enredo favorito dos cronistas. E, como não poderia deixar de ser, muita gente era envolvida nos conflitos: gente comum, tomada de sentimento nacionalista ou desespero de vir a ser vitimada pelos horrores da guerra; gente especializada, que incluía as hostes feudais e as tropas mercenárias recrutadas na França e na Inglaterra. Nossa intenção é a de sabermos como Lopes e seus contemporâneos viam esses mercenários e qual o conceito que deles faziam, mas convém, preliminarmente, delinear a conjuntura que lhes favoreceu a vinda.
A guerra civil castelhana, envolvendo de um lado o rei D. Pedro I e de outro o seu irmão bastardo, D. Henrique, Conde de Trastâmara, iniciou-se quando se desenvolvia na Europa a Guerra dos Cem Anos, que tinha como principais contendores a França e a Inglaterra. Dadas as características específicas dessa guerra, especialmente no que diz respeito a sua longa duração, os dois reinos passaram a sentir, na medida em que o conflito se desenrolava, necessidade de manter tropas mais regulares que aquelas propiciadas pelo recrutamento feudal. Os integrantes desses contingentes foram, com o passar do tempo, evidentemente se especializando no ofício da guerra, de forma que durante os períodos de tréguas ficavam disponíveis para a prestação de serviços em outras localidades. O Trastâmara, que já estivera na França, inclusive a serviço de João, o Bom, trouxe consigo os mercenários franceses, enquanto que o rei D. Pedro I conseguiu a ajuda dos ingleses, que estavam instalados na Aquitânia, comandados pelo próprio Príncipe Negro. A luta apenas mudava de local, sendo portanto lícito considerar essa guerra civil, guardados os seus traços próprios, um capítulo da Guerra dos Cem Anos.
A reunião dessas forças culminou com a Batalha de Nájera, na qual D. Henrique foi derrotado e, enquanto esteve fora do reino, D. Pedro I moveu guerra contra Aragão e fez várias incursões no reino de Granada. D. Henrique, apesar do fracasso inicial, graças à manutenção da aliança francesa e também em virtude do desinteresse inglês em continuar ajudando D. Pedro I, pelo fato deste não ter podido arcar com os compromissos financeiros assumidos, recuperou-se e, dois anos mais tarde, acabou vencendo a guerra, tendo inclusive, ele próprio, assassinado o seu meio-irmão D. Pedro I e assumido a coroa castelhana. Com a morte de D. Pedro, D. Henrique teve que enfrentar nova guerra, desta feita com Portugal, porque D. Fernando, sendo sobrinho do rei morto, reivindicava o trono castelhano para si. Nessa guerra D. Henrique contava inicialmente com uma força mercenária inglesa que acabou abandonando-o, como veremos oportunamente, e novamente com os franceses, que continuaram alinhados ao lado dos castelhanos. Já D. Fernando contou com o apoio inglês, não por qualquer tipo de coerência em decorrência de terem outrora apoiado o rei castelhano morto, que era parente de D. Fernando, mas pela lógica das alianças que se consolidavam na Península. Finalmente, com a morte do rei português abriu-se uma crise sucessória que colocou em guerra o Mestre de Avis de Portugal, D. João e seu homônimo de Castela, este marido de D. Beatriz, a única filha de D. Fernando. Nessa nova guerra peninsular os ingleses acudiram novamente Portugal, tendo na oportunidade a justificativa especial de que o Duque de Cambridge reivindicava o trono castelhano por ser casado com Dona Constança, uma das filhas do rei Pedro, o Cruel, aquele que foi assassinado pelo Trastâmara. Em resumo era essa a conjuntura militar da Península Ibérica no período abrangido pelas crônicas de Lopes. Voltemos, portanto, a nossa proposta original, qual seja, a de estudarmos como Lopes e seus contemporâneos viam os mercenários.
Na guerra entre D. Pedro I, o Cruel, e o seu meio-irmão Henrique de Trastâmara, a participação de forças mercenárias foi intensa, cabendo destacar o fato de que até então não estava caracterizada uma aliança entre a França e Castela. A primeira intervenção maciça de mercenários na Península deveu-se ao recrutamento feito por D. Henrique e com os quais conquistou o reino. Lopes, quando relata essa entrada de D. Henrique ao reino castelhano, diz que com ele vinham
“...capitães de Aragão, scilicet, o conde de Denia e Dom Filipe de Castro e outras companhias; e de França Mosse Beltram de Claquim e o conde das Marchas e o senhor de Baim e o marechal Dandemar, marechal de França, e outros cavaleiros; e de Inglaterra, mossé Boitro de Carvabai, mosse Estacio, mosse Martim de Gorimai, mosse Guilhem Alinante, mosse João de Obrens e muitos outros cavaleiros e homens de armas de Inglaterra e Guiana e de Gasconha e de outras nações.”
Quer dizer, um exército cosmopolita que demonstra muito claramente que era grande a disponibilidade de homens especializados em guerras nos períodos de trégua entre a França e a Inglaterra. Homens indesejáveis no território francês na medida em que, desocupados, procuravam meios de subsistência saqueando os castelos das vizinhanças. Mercenários por excelência, pois se não o fossem, seria inexplicável a presença de tropas francesas e inglesas juntas, se pouco antes estavam se digladiando. Enfim, eram tropas cujos componentes eram reunidos de acordo com uma nova forma de recrutamento que se constituiu no germe dos exércitos da modernidade. Mas, não obstante, temos que reconhecer que esses profissionais da guerra, quando tinham que escolher entre lutar pelos interesses de seus contratantes e combater ao lado de seus compatriotas, preferiam a segunda hipótese.
Um exemplo sobre isso e que nos vem a calhar ocorreu nessa mesma guerra civil castelhana de que estamos tratando. D. Pedro I, após ter sido derrotado pelo Trastâmara, não se deu por vencido. Dirigiu-se à Inglaterra, onde obteve apoio, sendo-lhe dado um exército que, sob o comando do próprio Príncipe Negro, entrou na Península via Navarra, para recuperar o seu reino. Um exército bem poderoso, com certeza, pois inclusive D. Carlos de Navarra ao reconhecer tal poderio não teve ânimo para sustentar um acordo que fizera com D. Henrique de Trastâmara no sentido de impedir essa prevista ação militar. Nessa conjuntura é que D. Henrique foi abandonado pelos mercenários ingleses, pois o comandante Calverley não teve dúvidas em voltar-se contra o seu contratante e passar-se para o lado apoiado por seus conterrâneos:
“E de Burgos se veo el-rrei a Alfaro, e alli se partio d'el monssé Hugo de Carnaboi, ingres, com quatrocentos de cavallo e foi-sse pera o principe seu senhor que da outra parte vinha; e el-rrei dom Henrique, pero lhe muito pesou e lhe podera fazer nojo, nom o quis fazer, teendo que fazia dereito em hir servir o principe, filho d'el-rrei seu senhor.”
Uma situação curiosa. D. Henrique contrata mercenários de várias nacionalidades, dentre os quais franceses e ingleses, até há pouco em beligerância. Essas forças combatem conjuntamente, usurpando o trono castelhano. O legítimo rei, batido, vai para a Inglaterra, consegue o apoio britânico e volta para reconquistar seu reino. Sir Calverley, até então a serviço do usurpador, volta-se contra ele em virtude de ter em maior apreço os laços de vassalidade que o ligavam ao soberano inglês que ao dinheiro oriundo de suas atividades mercenárias. D. Henrique compreende a atitude do comandante inglês, julga-a correta do ponto de vista ético e não o ataca apesar de poder fazê-lo. Na verdade, antes do descortinamento de novos tempos para a Europa Medieval, é compreensível um período de transição com a manifestação de contradições dessa natureza, que, aliás, continuaram a manifestar-se com freqüência até a Revolução Francesa, quando surgiu o serviço militar obrigatório e o mercenariato perdeu o sentido, exceto nas guerras coloniais em que temos como exemplo extremo a Legião Estrangeira.
Os mercenários eram homens errantes que passavam boa parte de suas existências em lutas em diversas localidades, onde quer que fossem chamados. Os que intervieram na Península, por habitarem ao norte dos Pirineus onde o estágio da arte da guerra era mais adiantado, detinham experiência que os tornava capacitados até mesmo para oferecer conselhos a reis. Tomemos dois exemplos elucidativos: um envolvendo um cavaleiro francês e o rei castelhano; outro, um cavaleiro inglês e o rei português. No primeiro caso temos a história de um cavaleiro francês, camareiro do rei, que foi a Castela com mensagem de seu senhor ao rei castelhano e acabou ficando para participar de uma batalha contra os portugueses, na qual, inclusive, faleceu. Do alto de seus sessenta anos este cavaleiro ofereceu uma opinião ao rei castelhano que se não nos desperta interesse pelo seu conteúdo de ordem estratégica, por não fazer parte dos objetivos deste trabalho, proporciona-nos a imagem do mercenário:
“Senhor, eu som caualeiro del-Rey da Framça, vosso jirmaão e vosso amigo, e som ja na jdade que veedes, e ey vistas muytas batalhas, assy de mouros come de christaãos, em quamto estive allem mar. E pellas cousas que vy acomteçer, tanto ey apremdido em ellas que huuma das cousas per que homeem moor avantagem pode teer de seu emmigo assy he poer-sse em booa hordenança, assy em guerra guerreada como em batalha. E em duas batalhas que eu fuy com el-Rey Filipe e Rey Joham meus senhores comtra el-Rey dIngraterra e comtra o prinçepe de Gallez seu filho, ambas se perderom por se nom teer nellas booa hordenança...”
De sua parte, o cavaleiro inglês, por certo comandante dos mercenários ingleses, embora Lopes não o qualifique assim, dizia a D. João I antes da batalha de Aljubarrota:
“Senhor, sede muyto çerto sem nenhuuma duuida que uos aues de uemçer esta batalha; e uedes, Senhor, em que o emtendo. Eu fuy ja em sete batalhas campaes, e com esta som oito, e digo-uos que nunca vy tam ledos vultos dhomeens, semdo tam poucos como estes e auerem desperar tantos pera pellejar com elles.”
Embora conscientes de estarmos sendo repetitivos, dada a clareza do texto reproduzido, queremos enfatizar os aspectos que mais nos interessam. O cavaleiro francês tinha por volta de sessenta anos, viu e participou de muitas batalhas, inclusive além-mar, serviu a dois reis franceses e agora estava a serviço de um rei estrangeiro, o que provavelmente não se constituía em novidade para ele. Quanto ao cavaleiro inglês, Lopes nos legou menos informações, mas uma delas, a de que participou de sete batalhas campais e que estava pronto para entrar na oitava, é significativa. Com certeza elas não se restringiram a um único reino, pois as batalhas campais na Idade Média não eram assim tão freqüentes. Estes, portanto, ao menos nas crônicas de Lopes, constituem-se nos protótipos dos mercenários medievais. Homens afeitos às guerras, que lutam ao lado de seus respectivos Senhores, é verdade, mas não hesitam em combater ao lado de outros, sem se importarem quanto a justiça da causa. Dedicam às guerras toda as suas existências e, inclusive, chegam a morrer nelas, conforme ocorreu, ao menos, com o mercenário francês.
Pelo exposto, podemos dizer que os mercenários foram agentes influentes na composição dos contornos da política ibérica do final do século XIV e início do XV. Em Castela, a participação de mercenários faz com que se torne bem mais fácil a compreensão da vitória de D. Henrique sobre seu meio irmão, graças a aliança que fez com os franceses e o concomitante abandono inglês a D. Pedro, que não lhes conseguiu pagar os soldos. Muito menos se entenderia a coragem de D. Fernando e de D. João I em enfrentar os castelhanos não fosse o apoio inglês para contrabalançar os apoios franceses a Castela. Aparentemente, portanto, os mercenários eram muito bem vistos pela utilidade que tinham, e sendo necessários, eram incluídos nos exércitos feudais de forma natural, mesmo porque tal participação não implicava em mudanças substanciais no caráter da guerra medieval peninsular. Todavia, o comportamento dessas tropas em território contratante, especialmente nos períodos em que se encontravam desocupadas, é que causava mal-estar e às vezes a indignação dos naturais da terra que, a partir de então, viam com reservas esses colaboradores. Lopes em particular, não poupou os aliados ingleses de D. Fernando de severas críticas:
“Estas gentes dos ingreses que dissemos, como forom apousentados em Lixboa, nom como homees que viinham pera ajudar a defender a terra, mas come se fossem chamados pera a destruir e buscar todo mall e desonrra aos moradores d'ella, começarom, de sse estender pella cidade e termo matando e rroubando e forçando molheres, mostrando ttal senhorio e desprezamento contra todos come se fossem seus mortaaes emmiigos de que sse novamente ouvessem d'asenhorar. E nenhuu no começo ousava de tornar a ello, por grande rreceo que aviam d'el-rrei, que tiinha mandado que nenhuu lhes fezesse nojo, polla gram necessidade em que era posto de os aver mester...”
Na seqüência, após perguntar-se “que cumpre mais dizer?”, Lopes apresenta uma série de atitudes dos ingleses que comprovam o enunciado. E nós, da mesma forma, poderíamos fazer a mesma pergunta, pois o texto apresenta-se tão evidente na comprovação de nosso raciocínio que se basta por si. De qualquer forma desejamos apenas sublinhar que os portugueses, por sofrerem tantos desaforos, desonras, roubos e crimes somente poderiam alimentar em relação aos mercenários ingleses um sentimento de aversão muito grande, que levava a sociedade a marginalizá-los, apesar da importância militar que representavam.
Os ingleses permaneceram em Lisboa e cercanias enquanto durou o inverno. Lopes diz-nos que nesse tempo o rei D. Fernando preocupou-se “em dar cavallgaduras aos ingreses e hordenar as cousas que compriam pera a guerra”. Sabemos, outrossim, que durante o inverno os exércitos ficavam imobilizados, sem encontrar condições favoráveis a deslocamentos em virtude das fortes chuvas que se verificavam nessa época do ano. A chegada dos ingleses nessa época do ano e a manutenção das tropas próximas a Lisboa mostram claramente um erro organizacional de D. Fernando que, ademais, recebeu uma força descavalgada. E ao passar o inverno providenciando cavalgaduras para os seus aliados, o rei passou por muitos dissabores. Em primeiro lugar deve-se observar que os ingleses não ficaram esperando passivamente; muitos animais eram tomados aos seus donos em compensação ao soldo que D. Fernando lhes devia, segundo alegavam. Depois, temos a considerar que os bons animais para a prática da guerra não eram abundantes; portanto, para servir aos mercenários, o rei precisava desagradar aos seus próprios patrícios requisitando-lhes as cavalgaduras, o que, conseqüentemente, fazia dos ingleses pessoas malvistas.
No que concerne ao relacionamento entre portugueses e ingleses na época de D. João I, devemos considerar que duas razões principais, ao menos teoricamente, deveriam fazer com que fossem mais amenas. Em primeiro lugar temos que ressaltar o fato do Duque de Lancaster ter vindo à Península com o propósito de reclamar o trono castelhano em virtude de ser casado com Dona Constança, filha de D. Pedro, o Cruel, como já tivemos oportunidade de afirmar. A segunda razão é que D. João I esposou uma filha do Duque, Dona Filipa, e este último, como aspirante ao cargo de rei, não poderia deixar passar a impressão de indisciplina em suas tropas, pois além da preocupação em evitar desgastes para a própria família se não conseguia administrar sequer um pequeno exército, como poderia governar Castela? Finalmente, não podemos deixar de considerar que D. João I estava longe da insuperável inépcia militar de D. Fernando. Mas, apesar desse clima, na prática as coisas eram bem diferentes.
“As gemtes do Duque, pero fossem poucas como dissemos, porque som homeens fora de sa terra de maa gouernança e pouca prouissam açerca dos mantimentos, amdauom muy desbaratados e com gram myngua; e elles (chamando) a toda a terra sua, deziam aas vezes aos portugueses, quando cobrauom alguuma villa, que par Deus! elles faziam mall de lhes roubarem suas fortallezas e villageens, e outras taaes razoões de que os portugueses escarneçiam; e tanto que el-Rey era posto em afam e cuidado por sua guarda e booa hordenamça.”
A passagem acima, Lopes escreveu-a como introdução a uma desavença ainda maior que envolveu portugueses e ingleses logo após a tomada da cidade castelhana denominada Valdeiras, em 1387. O episódio já foi relatado quando abordamos “O Ódio e a Sanha”; portanto, para o nosso propósito atual, basta-nos lembrar que quando Valdeiras foi evacuada ficou à mercê dos vitoriosos guerreiros, agora transformados em saqueadores vorazes. E D. João I, em virtude das reclamações do sogro de que “suas gemtes nom auiam boa companhia dos portugueses”, decidiu para evitar dissabores ainda maiores, que o saque seria feito até ao meio-dia pelos ingleses e após esse horário entrariam os portugueses para aproveitarem-se do restante.
“E foy assy que o Duque e suas gemtes emtrarom pella menhaã e começarom de roubar; e os portugueses, vemdo-lhe trazer os mantimentos, auiam-no por gramde agrauo, dizemdo muytas razoões amtre ssy sobresto, em tanto que se forom aa avilla muyto primeiro amte de meyo dia, e começarom de roubar de mestura com elles. Os jmgreses, queixamdo-se desto muyto, avyam aroydo huuns com os outros.”
A conclusão do episódio, como também já vimos anteriormente, foi surpreendente. Ouvindo as reclamações do Duque, seu sogro, D. João I, tido sempre como um rei equilibrado, cavalgou até o local e “açesso com gram sanha” matou dois portugueses e feriu muitos deles ao fazer com que saíssem do local e cumprissem suas determinações. Depois desse ato violento, foi restabelecida a ordem e os portugueses somente voltaram a saquear depois do meio-dia. O que se poderia esperar desses exércitos que nem sequer podiam estar juntos na hora do saque? Que pensar sobre os sentimentos desses homens, uns em relação aos outros?
Depreendemos da leitura das crônicas de Lopes sobre essas questões que da mesma forma como a aliança portuguesa com os britânicos foi duradoura, também a aversão pelos mercenários ingleses foi grande, pois os portugueses não perdiam oportunidade de tomar vingança. Talvez não seja por outra razão que os nossos já conhecidos cinco cavaleiros ingleses, após uma refrega em Torres Novas, em 1385, chegaram-se ao Condestável “queixando-sse muyto que morryam de fame e que queryam beuer com elle”. Não encontravam, por certo, dentre os cavaleiros menos graduados quem lhes desse guarida. Nuno Álvares, entretanto, tendo cinco pães, contemplou os aliados e ficou sem nenhum, tendo, inclusive, nesse dia, que se alimentar apenas de carne, o que fez “com grande rjso e sabor”. Ao procurar mostrar o espírito magnânimo de Nuno Álvares Pereira, Lopes nos ofereceu também a oportunidade de demonstrarmos a marginalização dos ingleses em território português.

4. ALEIJADOS E POBRES

Os aleijados e os pobres por certo não eram poucos na sociedade portuguesa medieval, mas nas crônicas de Lopes, entretanto, as referências a essa gente são mínimas ou demasiadamente genéricas, dificultando qualquer tipo de análise mais abrangente. Temos que recorrer a histórias particulares de alguns indivíduos se quisermos obter algum resultado positivo. A existência de um pobre manco nos chegou através de Lopes porque envolveu-o na salvação de um fidalgo português, Diogo Lopes Pacheco, que o rei castelhano D. Pedro pretendia repatriar a Portugal para que o seu homônimo se vingasse dele em virtude da suspeita de que participara da morte de Inês de Castro. Apesar de já termos mencionado o episódio, ele serve, para neste capítulo, frisarmos uma passagem que demonstra a marginalização desses indivíduos. O pobre manco,
“[Andou] (...) quanto pode por onde entendeu que Diogo Lopes viria e achou-o já vir com seus escudeiros, mui dessegurado das novas que lhe ele levava. E dizendo o pobre a Diogo Lopes que lhe queria falar, quisera-se ele escusar de o ouvir, como quem pouco suspeitava que lhe trazia tal recado.
Afincando-se o pobre todavia que o ouvisse, contou-lhe à parte como uma guarda del-rei de Castela com muitas gentes chegaram a seu paço para o prender...”
O manco havia feito, com certeza, muito esforço para salvar Diogo Lopes, pois se fosse fácil para ele locomover-se, a guarda dos portões da cidade, que havia recebido ordens para não deixar sair ninguém, evidentemente barraria a sua passagem. Era, enfim, um homem grato ao fidalgo que o ajudava na subsistência com as esmolas que costumeiramente lhe dava. Mesmo assim Diogo Lopes somente o ouviu após convencer-se, pela insistência do mendigo, que lhe tinha algo importante a dizer. Fica, portanto, muito clara a existência de discriminação em relação ao pobre manco, mas é difícil, entretanto, qualquer avaliação a respeito do objeto que levava à discriminação: era em virtude de sua pobreza, de sua deficiência física ou da conjunção de ambos os infortúnios?
Quer nos parecer que a última hipótese levantada seja a mais correta.
A tradição popular que atribuía ao Diabo a característica de ser coxo devido a ferimento sofrido quando fora precipitado do céu, resultava na crença de que os portadores de deformidades físicas fossem seus agentes, resultando daí a rejeição. Por outro lado a pobreza era atribuída a algum castigo. José Mattoso entende que a marginalização dos pobres, assim como dos leprosos e loucos, dava-se por motivos diferentes das aplicadas aos histriões, prostitutas, judeus e mouros. Estes eram afastados da sociedade por razões religiosas e morais; aqueles segundo os conceitos da época, não tinham culpa do seu estado: a pobreza era resultante do pecado original. Por não serem responsáveis pela sua situação, era de se esperar que fossem alvo permanente da caridade cristã; entretanto, somente o foram a partir do século XI e, assim mesmo, graças à insistência dos clérigos, que disseminaram a idéia de que a caridade cristã era fonte de salvação:
“os pregadores insistem nos méritos morais da caridade, e apresentam os pobres, não apenas como os portadores da maldição do gênero humano, mas também como os que Deus mantém nesse estado para que os ricos possam praticar a virtude da generosidade, que os assemelha ao Senhor omnipotente.”
Não havia, conseqüentemente, em razão dessa representação mental, qualquer preocupação em acabar com a mendicância através de mudanças na ordem social estabelecida. Em compensação multiplicavam-se as doações para “ajudar os peregrinos, remir os cativos, construir albergarias e hospitais, edificar e repassar pontes e caminhos, aliviar os pobres e leprosos...”. As esmolas muitas vezes chegavam aos pobres em virtude de legados de pessoas ricas que esperavam dessa forma expiar os seus pecados e alcançar a recompensa eterna. “A pobreza ajudava a riqueza a conquistar o Céu”. Pobres e clérigos “são os cambistas que convertem a moeda humana, os bens terrenos, em moeda celeste, os bens eternos”.
Quanto as feridas de guerra eram até mesmo usadas para vangloriar aos seus detentores, conforme podemos constatar na ocasião em que D. João I passou em revista suas forças em 1386. Depois de uma revista geral, o rei pediu a Gonçalo Peres que verificasse bem se todos os capitães faziam jus ao soldo que recebiam. Os critérios, ao que se nota, eram o número de lanças de cada um e as condições do armamento, pois era evidente que um cavaleiro armado convenientemente tinha maior valor bélico que um desarmado. Mas interessa-nos demonstrar a questão das deformações e para tanto retomemos a revista. Quando Gonçalo Peres aproximou-se de um dos comandantes, que tinha mais de setenta lanças, com alguns cavaleiros bem armados e outros nem tanto, este foi logo lhe dizendo:
“Digo, Gonçallo, que te pareçe a ty deste? — porque estaua bem armado. — Sam Jorge he jsto, ca nom homeem darmas. Faze-lhe trager huuma serpe e veras como a matara! — e assy outras taaes razoões de gabo que por cada huum bem armado dezia. E dos que nom eram bem armados tornaua dizer: Ves tu este, Gomçallo? Sobejas som as armas que tem, ca de guerras e batalhas hu foy he o corpo tam calejado que todo he cheo de sinaaes de feridas. Emtom lhe fazia mostrar huum braço ou perna comtra sa vomtade, e dhuuma rascadura pequena contaua tal golpe e como o soffrera que pareçia façanha douuvir. E dizia logo: Ves tu? tal como este nom quero eu que mate menos de seis, ca ja el tem prouado como sabe o ferro frio. Dhij tu ao castellaão que venha pellejar com este, ca aqui achara elle recado que o farte. E desta guissa a huuns e a outros poinha taaes louuores quaees Gomçalo Perez muyto bem notaua.”
Não eram defeitos congênitos, sobre os quais, aliás, Lopes não nos oferece nenhuma informação, mas feridas de guerra, o que torna qualquer conclusão de nossa parte parcial. E, ainda assim, há divergências. Se por um lado o comandante Antão Vasques esforçava-se por demonstrar que as feridas eram sinônimo de bravura, experiência e coragem, por outro, não podemos deixar de levar em conta o fato de que as pessoas mostravam as suas feridas a contragosto, o que pode muito bem ser uma demonstração de que se envergonhavam delas. Em outras narrativas a impressão que Lopes nos passa é a de que os ferimentos de guerra de certa forma enobreciam o vitimado, e nem poderia ser diferente, pois se assim não fosse as pessoas não teriam motivação psicológica para participar de combates. Não queremos dizer, evidentemente, que havia interesse dos combatentes em se deixarem ferir, mas na eventualidade desse tipo de ocorrência, normalmente ressaltava-se a coragem, o destemor e demais virtudes do gênero, não se dando nenhuma ênfase às possibilidades de imprudência, imperícia e outros fatores análogos que prejudicassem a reputação do guerreiro. Exemplos dessa natureza são abundantes nas crônicas de Lopes; limitar-nos-emos, no entanto, ao estritamente necessário para a ilustração do que estamos expondo. Numa das muitas refregas que se deram entre portugueses e castelhanos durante o cerco de Lisboa de 1384, João Rodrigues de Sá sofreu “quimze feridas e duas no rrostro” e o Mestre andava entre os feridos, esforçando-os e fazendo-lhes mercês e “todos davom graças a Deos que os assi ajudara a deffemder de seus emmiigos”.
A história do pobre e manco levou-nos a contemplar as questões relativas às deformações físicas. Voltemo-nos agora para aquilo que podemos resgatar em Lopes sobre a pobreza. Iniciemos por dizer que o estado de pobreza podia abater-se eventualmente sobre elementos da nobreza, afetando, conseqüentemente toda a sua casa. É o caso do infante D. João, filho de D. Pedro I e de Dona Inês de Castro. Este moço após ter assassinado a sua amante, D. Maria, irmã da rainha Dona Leonor, foi formalmente perdoado por D. Fernando; no entanto
“ele vivia nojosa vida, e os seus isso meesmo passavom mui mall, ca d'el-rrei lhe viinham poucos e maaos desembargos de suas teenças e moradias, de guisa que apenhavom as armas e os vestidos, e ja nom tiinham que apenhar se nom alaãos e sabujos, e com esta pobreza se passou o iffante a rriba de Coa, e alli faziam sua gastada vida.”
Penhorar os próprios cães! Eis como se delineou a desgraçada trajetória de vida deste moço que sendo filho de rei — D. Pedro I com Inês de Castro — com possibilidades de ascender ao trono, acabou tendo que se refugiar em território castelhano. Claro que a fuga para o reino vizinho teve muito a ver com o temor de vingança por parte dos parentes de Dona Maria; todavia Lopes não deixou de frisar que ele “conheceo bem que era escarnido”. Resta saber se era escarnido em virtude de seu estado de pobreza ou por ter se tornado um assassino? Aí reside outra dicotomia que não podemos resolver com provas cabais, restando-nos, portanto, o raciocínio hipotético de que o crime o levou à desgraça junto à Corte, a qual induziu-o à pobreza. Não obstante, temos a considerar que D. João não quis, não soube ou não pode fazer política, pois não eram raros os exemplos de assassinos inocentados pela opinião pública em virtude de terem se dado bem politicamente.
Se um nobre descaído era menosprezado, que dizer de um pobre qualquer? Sabemos que de forma geral o pobre era tratado como ser inferior, não se levando em conta naquela época que o seu estado fosse o resultado de um sistema econômico e social extremamente injusto, pois os contemporâneos concebiam-no como fruto da vontade divina que o colocara no mundo com uma missão subalterna a cumprir. Quanto menor a possibilidade de conseguir a subsistência com a força de seu trabalho maior era a discriminação. Os mais miseráveis viviam das esmolas que, por um ato de piedade cristã, lhes davam os mais abastados. Mas até mesmo a piedade cristã desaparecia quando ocorriam situações de desabastecimento e, nesses casos, o poder dos mais fortes fazia-se sentir sobre os menos favorecidos de maneira desumana.
Em 1384, quando a cidade de Lisboa estava cercada pelas forças castelhanas, a situação alimentar da população em geral era tão difícil que Lopes chegou a dizer que o trigo era tão pouco que seria necessário multiplicá-lo como fizera Cristo com os pães, a fim de alimentar os cinco mil homens. E enquanto durava o cerco
“...gastousse a çidade assi, apertadamente, que as pubricas esmollas começarom desfalleçer, e nenhuua geeraçom de pobres achava quem lhe dar pam. de quisa que a perda comuu vemçemdo de todo a piedade, e veemdo a gram mimgua dos mamtiimentos, estabelleçerom deitar fora as gemtes mimguadas e nom perteeçemtes pera deffemssom; e esto foi feito duas ou tres vezes, ataa lamçarem fora as mançebas mundairas (sic) e Judeus e outras semelhantes...”
Despejados, esses pobres iam ao acampamento castelhano onde de início lhes forneciam comida, mas logo, ao perceberem que os tratar seria aliviar a cidade de seus infortúnios e, conseqüentemente, desobrigá-la de uma rendição, passaram a enxotá-los, restando-lhes como saída, para aliviarem o tormento da fome, tomarem muita água e comerem ervas e raízes. Mas essas atitudes desesperadas não se constituíam em solução do problema e os pobres morriam pelas ruas ao lado de cachorros. A piedade cristã cedia lugar à luta pela subsistência.
Finalmente, queremos registrar que o pobre, de forma geral, era facilmente manipulado, não sendo raras as vezes em que aparecem nas crônicas de Lopes, em multidão, seguindo inconscientemente esse ou aquele senhor. Vamos, entretanto, nos ocupar do significativo caso de um pobre que, ao ocupar um cargo estratégico, se constituiu em presa fácil de um espertalhão, corrompendo-se para facilitar a subsistência da família. Na narrativa da tomada de Badalhouce pelos portugueses, em 1396, Lopes nos ofereceu esse exemplo, embora a sua intenção fosse de ressaltar a astúcia e a malícia de um seu patrício. Mesmo já tendo reproduzido essa história, vale a pena retomá-la em alguns de seus aspectos que, além de nos serem úteis na demonstração de nosso argumento, servirá também para mostrar algumas artimanhas utilizadas na guerra medieval, que, na verdade, não era tão franca como equivocadamente às vezes se imagina.
D. João I, ouvido o seu Conselho, planejou tomar as cidade de Badalhouce e Albuquerque aos castelhanos porque estes não lhe pagaram as “duzentas e çinqoenta myl dobras” que haviam combinado no tratado de tréguas assinado em maio de 1393. Para a execução da tarefa foi designado Martim Afonso, que tratou logo de obter o maior número de informações sobre tais localidades a fim de traçar o plano estratégico para tomá-las concomitantemente. Nessa sua missão descobriu que em Badalhouce vivia um português homiziado, chamado Gonçalves Eanes, seu conhecido. Aproveitando-se de que a situação jurídica de seu compatriota facilitava a sua participação em troca do perdão, mandou chamá-lo e procurou obter a sua contribuição para tomar a cidade de surpresa. Obtido o apoio, foram-lhe sugeridas algumas alternativas, por certo já experimentadas em outras oportunidades, que facilitariam a tomada da cidade, como as medidas da altura dos muros para que fossem construídas escadas apropriadas ou o modelo, em cera, das chaves da porta principal da cidade para que se fabricassem cópias. Entretanto Gonçalves Eanes encontrou uma maneira inédita de obter o seu intento. Conhecendo o porteiro, disse-lhe saber da existência de uma cova onde estava guardado certo trigo, nas cercanias de Elvas, e que se lhe abrisse as portas da cidade em horas previamente estabelecidas, repartiria com ele o produto. O porteiro, por ser “muyto pobre e myngoado”, deixou-se levar pela artimanha e caiu numa armadilha: depois de algumas ações em que Gonçalves Eanes lhe forneceu trigo da cova secreta que jamais existiu, descuidadamente saiu da cidade para trazer mais, deixando abertas as portas e facilitando a ação portuguesa, que resultou na tomada da cidade.
O que ocorreu com esse pobre porteiro não sabemos. Sua mulher, entretanto, quase foi degolada porque ameaçara gritar quando presenciou o início da invasão. Valeu-lhe a promessa de que se calaria como de fato o fez. Pudera! Gonçalves Eanes já ordenara a um ajudante: “degola esta puta; não braade”.
Puta? Não, ao menos na verdadeira acepção da palavra essa mulher nada tinha de puta. Mas era pobre e, conseqüentemente, ao menos na ótica de quem a destratou, pouca diferença fazia a imputação dessa desqualificação moral. Afinal, assim ou de maneira semelhante, eram tratados os marginalizados na Idade Média: com muito pouco respeito. É verdade que variava a extremos o grau de marginalização, ao menos sob nosso ponto de vista, que classificamos como marginalizados tanto aqueles que eram simplesmente malvistos e malquistos, como os que ocupavam lugares subalternos ou os que chegavam a ser discriminados e confinados. Uns por conta do pecado original, como os pobres; outros, em virtude de infrações morais, as prostitutas, os proxenetas; outros, em virtude da religião e da raça, os mouros e judeus; outros, em virtude de defeitos físicos, congênitos ou não, os aleijados; outros devido à função e ao sexo, a exemplo especialmente dos mercenários e das mulheres. Na verdade uma multidão de despossuídos, condenados por um sistema social injusto, mas conformada porque havia uma explicação já devidamente interiorizada para tudo isso: cada qual havia feito por merecer sua sina; quando não, era a vontade divina que estava se manifestando e, com certeza, agindo com sabedoria, pois alguma recompensa haveria de advir.