CAPÍTULO V

MANIFESTAÇÕES SENTIMENTAIS DO
HOMEM MEDIEVAL PORTUGUÊS

1. O AMOR
O AMOR COMO MANIFESTAÇÃO ASSOCIATIVA
O AMOR FILIAL
O AMOR COM CONOTAÇÕES HOMOSSEXUAIS
MANIFESTAÇÕES DO AMOR CONJUGAL
O AMOR PROIBIDO
2. A INVEJA E A COBIÇA
3. ALEGRIA E PRAZER
4. O ÓDIO E A SANHA
5. O MEDO, A APREENSÃO E A INCERTEZA
6. O DOMÍNIO SOBRE OS SENTIMENTOS
7. O RISO E O CHORO

CAPÍTULO V

MANIFESTAÇÕES SENTIMENTAIS DO
HOMEM MEDIEVAL PORTUGUÊS

O homem, além de comprar, vender, trabalhar, guerrear, pensar e reproduzir-se, também sente. Os sentimentos entretanto, embora constituindo-se em componentes importantes da totalidade humana, nunca mereceram muita atenção por parte dos historiadores, ao menos até o início do século XX. Que dizer então dos cronistas medievais? Se tivermos em mente que quem os patrocinava, ou era a realeza, ou a nobreza, com o propósito evidente de imortalizar suas origens e seus feitos, não podemos realmente esperar dos cronistas daquele tempo muito mais do que a narração das façanhas cavaleirescas. Os sentimentos das pessoas não se constituíam, portanto, em matéria-prima para uma crônica. Não estava, ademais, em voga na época esse tipo de preocupação. No que concerne a Lopes, não devemos nos esquecer de que a matéria central de suas crônicas foram os acontecimentos políticos, aos quais se subordinavam manifestações de índole diversa, incluindo-se aí as sentimentais. Não havendo implicação política, a tendência geral de nosso cronista era a de ignorar as situações peculiares, o que, em algum grau, o descredencia como fonte recomendável para abordagens dessa natureza. Fiquemos portanto prevenidos de que o material do qual dispomos não será suficientemente abundante para uma história do comportamento do português medieval, e de que somente porque Lopes foi um homem culto, sensível e muito perspicaz é que nos deixou algumas referências sobre o tema, numa ou noutra passagem, ora fazendo menção a uma lágrima, ora a um sorriso, ou mesmo descrevendo gestos ou expressões que dizem respeito aos sentimentos humanos. Aproveitarmo-nos das oportunidades em que na narrativa de Lopes fluem quaisquer considerações sobre manifestações sentimentais e retirar delas elementos que nos possibilitem compreender, tanto quanto possível, como se comportavam os portugueses daquela época, é o que procuraremos fazer nas páginas que seguem.
1. O AMOR

Quando tratamos sobre o casamento, não nos detivemos muito no aspecto amoroso, por um lado para não sermos repetitivos, já que estava em nossos planos abordar esse sentimento em separado, e de outra parte e principalmente, porque na Idade Média não encontramos estreita relação entre o amor e o casamento. É claro que em vários casos o casamento se constituía no coroamento de um grande amor, mas essa não era a regra geral e abundam nas crônicas de Lopes exemplos, como vimos, de uniões matrimoniais que se realizaram sem que houvesse qualquer inclinação sentimental entre as partes. Temos, ademais, a considerar que o amor não era um sentimento exclusivo entre sexos opostos, ao menos na acepção que se dava à palavra naquela época. Na verdade, o sentido dado ao verbo amar na Idade Média era muito abrangente, o que, de certa forma, relaciona-se com a posição da Igreja, pois não podemos perder de vista que o cristianismo é uma religião de amor, e que, sendo a Idade da Fé, a Idade Média atribuía a esse sentimento um valor essencial ou antes, de medida referencial de valor, de padrão ao qual eram reduzidos os outros valores.
É significativo observar que na Bíblia, mesmo no Antigo Testamento, o menos indicado para encontrarmos esse tipo de referência, inclusive porque não faz referência ao Cristo, a prática do amor é imposta com força de Lei: dos dez mandamentos, os dois primeiros dizem respeito a esse sentimento. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo!!! No Novo Testamento a ênfase dada ao amor é ainda maior e com certeza surtiu efeitos consideráveis, em particular no período estudado, pois inclusive um rei coevo de Lopes retransmitiu, em um livro que escreveu, o Leal Conselheiro, os ensinamentos contidos na Bíblia, mais especificamente do livro de São João, XII, 35, da seguinte maneira:
“Tanto prouve a Nosso Senhor que sempre nos amassemos, que per este signal sollamente quis seerem conhecydos seus seruydores, dizendo: ‘em esto vos conhecerom que sooes meus discipullus, se huus aos outros vos amardes’.“
Essa era a idéia de amor predominante na Idade Média e, portanto, não nos admiremos pelo fato de Lopes ter usado indiscriminadamente o verbo amar, até mesmo em situações que nos tempos atuais seriam no mínimo embaraçosas, como é o caso de designar por amor tanto a amizade entre dois cavaleiros como a afeição acentuada entre um casal. Nas páginas seguintes cotejaremos as modalidades de amor já mencionadas, bem como algumas outras às quais Lopes faz referências em suas crônicas.

O AMOR COMO MANIFESTAÇÃO ASSOCIATIVA

Embora tenhamos dito que Lopes usasse indistintamente o verbo amar, às vezes com a conotação de amizade, não quer dizer que não houvesse a palavra amigo no vernáculo daquela época. Seu sentido era o de companheiro, como procuraremos demonstrar.
Quando, em 1384, os castelhanos ameaçavam sitiar a cidade do Porto, os seus habitantes resolveram atacá-los antes da concretização do fato, não faltando na oportunidade vozes de incentivo: “Amigos, sayamos a elles”. Em 1385 os castelhanos fizeram uma incursão pela província da Beira, esperando não encontrar resistência, pois os fidalgos portugueses dessa região estavam em desavença acusando-se mutuamente por tomadias. Entretanto João Fernandes Pacheco, a pedido de D. João I, esforçou-se até conseguir que esses nobres se unissem e combatessem o invasor, o que aliás corou-se de pleno êxito. Lopes, ao referir-se a esse episódio, não fala em amor, mas em amizade
“E apanhado todo o esbulho do campo, com gram prazer e ledice tornarom-sse os capitaães portugueses, cada huum com suas gentes, pera os logares dhu partirom com aquel começo damjzade que entom ouuerom; e depois forom muyto amygos...”[grifo nosso]
Em face ao exposto, podemos afirmar que as atividades inerentes aos cavaleiros medievais tornavam praticamente obrigatória a relação de amizade entre eles. A dependência entre dois homens, o espírito de corpo, o sentimento que na atualidade consideramos coleguismo, constituíam-se em importantes elementos desses laços, sem que, entretanto, o substantivo amigo fosse usado com freqüência, pois naquela época eram designados também pelo verbo amar.
Amar ao Senhor estava além dos sentimentos de afeição, era uma questão de dever. O amor devido pelo vassalo ao Senhor era análogo ao que os fiéis, de maneira geral, deviam dedicar a Deus que, não nos esqueçamos, era considerado Senhor. A base de sustentação desse amor era a fidelidade, portanto “amar ao Senhor” na verdade significava “amar a honra e o serviço do senhor”. O fidalgo João Afonso Tello, ao emitir sua opinião favorável ao confronto entre portugueses e castelhanos em Aljubarrota, oferece-nos, com muita clareza, um exemplo que confirma o nosso ponto de vista. Ao dizer ao rei, D. João I, que era de opinião contrária aos que o aconselhavam no sentido de que não deveria promover a batalha, João Afonso enfatizava na ocasião que “quem vos comselha que uos nom pellegees nem ponhaaes a batalha a estes homeens, que nom ama vossa honrra nem serruiço...”[grifo nosso]. Nesse sentido, portanto, o amor era algo estritamente formal, mas a convivência cotidiana e, principalmente, a ajuda mútua nos campos de batalha, sem dúvida, faziam com que nascesse entre os indivíduos um sentimento de bem-querer mais profundo, um vínculo de amizade que embora presumisse um engajamento permeado pela lealdade e boa fé, ultrapassava os limites do dever contratual e era igualmente sintetizado no vocábulo amor. São comuns, nas crônicas de Lopes, as narrativas de atitudes favoráveis à formação de fortes vínculos de amizade entre os combatentes de uma mesma facção. Tomemos por exemplo uma façanha de Nuno Álvares Pereira, deixando à parte os possíveis exageros cometidos pelo cronista nesse caso, na ânsia de exaltar as qualidades de seu herói. Sendo ainda moço, durante o reinado de D. Fernando, Nuno Álvares comandava um pequeno grupo para uma escaramuça com os castelhanos. A proporção era de dez por um e os portugueses, evidentemente, recusavam-se a aceitar o comando de ataque, então:
“Nun'Allvarez, veendo que os seus nom davom volta e que os castellaãos chegavom acerca d'onde ell estava, aderençou contra elles com gram virtude cavalleirosa, a alguus impossivell de creer, e soo sem parceiro se lançou na moor espessura dos emmiigos, honde eram aquelles duzentos e cinquoenta homees d'armas. E como sse assi lançou antre elles e fez de lança o primeiro encontro, perdida a lança tornou aa espada; e nom ho seguindo nenhuu dos seus dava tam assiinados golpes a toda parte que pero os castellaãos fossem muitos assaz avia de logar antr'elles; mas em todo esto foi elle servido de lanças e pedras e viratoões que era mararilha pode-llo sofrer; e prougue a Deus que nenhuua lhe deu em logar que lhe fazer podesse nojo, ca o corpo era bem armado de huuas assaz fortes solhas, de guisa que os golpes maçavam o corpo e nenhuu damno faziam na carne: pero ell penssava que era chegado de morte, por os muitos golpes que em ssi sentia. Mas seu cavallo com as muitas lançadas pose as ancas e cahiu em terra, e Nuno Alvares isso meesmo: e em cahindo assi ambos, começou o cavalo bullir rrijamente com as maãos e com os pees: e perneando assi rrijamente, acertou a canello da ferradura da maão ho tecido d'huua fivella das solhas de Nun'Allvarez, de guisa que ell nom sse podia desaprender do cavallo, e alli cuidou de seer logo morto. Os seus, que estavom a longe oolhando, veendo o gram periigo em que Nuno Allvarez era, constrangidos de doo e vergonha, correrom rrijamente combrando corações, e acorrerrom-lhe mais toste que poderom: e huu dos primeiros que a ell chegou foi huu clerigo em cuja casa Nun'Allvarez pousava, que hia em sua companha com huua besta, e cortou-lhe a pressa o tecido per que estava preso. Nun'Allavarez, se levantou rrijo e tomou huua lança de muitas que jaziam arredor d'elle; e com esforço e ajuda d'os que ja com elle estavom, começou de seguir os castelaãos.”
Esforçar-se para salvar a vida de um companheiro em combate ou contribuir de alguma forma para o seu sucesso militar não era comportamento raro, e parece-nos que a repetição desses atos dentro de um mesmo grupo gerava um sentimento superior à gratidão, engendrando o amor ao qual estamos nos referindo. Não foi à toa que entre o Mestre de Avis e Nuno Álvares Pereira se consolidou uma grande amizade, visto que os propósitos comuns e as lides bélicas cotidianas, sem dúvida, forjaram entre eles uma amizade marcante. Lopes compreendeu tão bem isso que distinguiu a amizade entre ambos acrescentando ao amor a bem-querença:
“Gram liamça damor e bem queremça se geerou muito amtre Nuno Allvarez e ho Meestre, desque veo pera ell, e começou de o servir; e esto foi segumdo alguuns scprevem, porque eram ambos de cavalleirosos coraçoões, e acompanhados de virtuosos costumes...”

O AMOR FILIAL

Mas não era somente o convívio diário e as campanhas militares ou façanhas cavaleirescas que despertavam nas pessoas o sentimento do amor. Um vassalo poderia ser amado pelo seu senhor pela sua bondade e vice e versa. Esse amor pode ser comparado ao filial e não há porque imaginá-lo na Idade Média portuguesa, menos permeado pelo afeto do que o de outras épocas, ainda que fizesse parte do modo de vida nobre cultivar um certo estoicismo em relação à perda de entes queridos, sobretudo em combates.
Um filho amava ao pai muito mais intensamente do que se depreende das análises históricas a respeito do período. Por exemplo, após a batalha de Atoleiros, realizada em 1384, um jovem castelhano, armado, movido pelo amor filial, adentrou no acampamento dos vitoriosos portugueses para saber se seu pai, Pero Gonçalves de Sevilha, tinha sido preso ou morto. Que outro sentimento senão o amor filial poderia mover esse jovem a correr tamanho risco de vida? Seu pai, verificou o moço, estava morto. Nuno Álvares compreendendo seu estado de espírito confortou-o e o manteve como hóspede até o dia seguinte. Comportamentos dessa natureza nos inclinam a inferir que mesmo num contexto onde prevalecia tanta rudeza, como aquele em que se desenrolava a vida medieval, sobrava algum espaço para o cultivo de sentimentos afetuosos.

O AMOR COM CONOTAÇÕES HOMOSSEXUAIS

Finalmente, ao menos no que concerne aos tipos de manifestações de bem-querer entre os homens e designadas também por Lopes com o vocábulo amor, constatamos que poderiam haver relações não tão inocentes: as homossexuais. Apesar de Oliveira Marques ter afirmado que “a homossexualidade surgia na Idade Média com freqüência e não suscitava, na vida prática, o pavor do empestado” , o tema esteve muito longe de ser objeto de consideração por parte de Lopes, por razões já suficientemente esclarecidas ao longo deste trabalho, mas que insistimos em lembrar porque, de modo evidente, isso dificulta o nosso empreendimento.
Nesse sentido, duas passagens merecem análise à medida que sugerem conotações homoeróticas no emprego do termo amor por Fernão Lopes. Numa delas Lopes narra que D. João I mandou queimar um seu camareiro, Fernando Afonso, porque este, não atendendo às reiteradas recomendações do rei, mantinha relações íntimas com uma donzela do paço, Beatriz de Castro. No transcorrer da narrativa do episódio, a menção ao amor do rei pelo camareiro seria um dos azos da suspeita:
“Fernamdafonssso, jrmão de joham Afomsso de Santarem, de que em esta hobra fezemos menção, homem de prol e de boom corpo e que el-Rey amaua muyto, assy por o seu jrmaão que o bem seruya como por suas manhas e conversaçam, de que el-Rey era muy contente. em tanto que todos eram em conheçimento do grande amor que lhe el-Rey mostraua.”
Entretanto, como já tivemos oportunidade de esclarecer, a palavra amor, na Idade Média, poderia ser empregada para designar a amizade entre dois homens, portanto, fica fora de qualquer cogitação até mesmo a mera desconfiança de que haveria algum tipo de desvio sexual em D. João I em função do amor que nutria pelo seu camareiro. Além do mais, fica muitíssimo claro que D. João não o amava somente pelas suas “manhas e conversaçam”, mas também porque o seu irmão também era um bom servidor. Ora, isso afinal, de tão comum, era do conhecimento público, “todos eram em conheçimento do grande amor que lhe el-Rey mostraua”. Há, entretanto, na seqüência do texto, um elemento complicador; o rei chamara várias vezes Fernando Afonso à sua presença e, nessas oportunidades, “emcomemdaua e mamdaua que com nenhuuma molher nam teuesse geyto de bemquerença, moormente com esta dona Breatiz”.
Poderíamos supor que as recomendações de D. João I fossem fruto do ciúme em relação ao rapaz; todavia, com que argumentos defenderíamos tal hipótese? Temos, isso sim, uma evidência muito forte de que a condenação do camareiro foi descrita por Lopes de forma a enfatizar que nem mesmo uma grande amizade desviava o soberano de fazer justiça, de usar de sua prerrogativa de justiceiro. Ora, se é verdade, como escreve Lopes, que “tinha el-Rey na goarda das molheres de sua cassa gram sentido que nenhuum nam jugatasse com ellas nem teuesse maneyras per que antre ellas podesse naçer çuja fama”, então era muito natural que castigasse aos que transgredissem essas normas.
A outra passagem envolve o rei D. Pedro I e um seu escudeiro chamado Afonso Madeira. Esse D. Pedro, segundo Lopes, também era “muito cioso, assim de mulheres de sua casa como de seus oficiais e das outras todas do povo” e, portanto, castigava exemplarmente quem ousasse transgredir as normas vigentes na época, dormindo com uma mulher que não lhe pertencesse de direito. Foi o que ocorreu a esse Afonso Madeira que, apaixonando-se por Catarina Tosse, mulher do corregedor Lourenço Gonçalves, usou de várias artimanhas para estar próximo dela até conseguir o seu intento. E, segundo já dizia Lopes, como essas coisas não ficam encobertas por muito tempo, o rei tomou conhecimento dos amores clandestinos entre os dois e não teve dúvidas em castigar muito severamente ao seu escudeiro:
“E como quer que o el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, posta de parte toda benquerença, mandou-o tomar em sua câmara e mandou-lhe cortar aqueles membros que os homens em mor preço têm.”
Tudo estaria normal para os padrões de justiça da época, pois como já tivemos oportunidade de afirmar, às vezes o castigo suplantava o próprio delito, não fossem algumas poucas palavras que Lopes acrescentou ao dizer que o rei muito amava àquele jovem: “mais que se deve aqui de dizer”. Com essas palavras, Lopes deixou poucas dúvidas quanto ao procedimento homossexual de D. Pedro.
Em resumo, podemos afirmar que a palavra amor tinha um sentido mais elástico do que atualmente, haja vista poder significar tanto uma inocente amizade entre dois cavaleiros como o amor filial ou até mesmo relações bem mais íntimas, providas inclusive de conteúdo sexual.
MANIFESTAÇÕES DO AMOR CONJUGAL

Apesar de nossa insistência na argumentação de que para a realização das uniões conjugais não se levava em conta quaisquer sentimentos, isso não quer dizer que não houvessem casamentos por amor ou que da convivência matrimonial não surgisse esse sentimento. Sabemos, por exemplo, que a nossa já conhecida Maria Rousada amava o marido. Caso contrário não o teria seguido aos prantos quando foi conduzido à forca por tê-la desvirginado antes do casamento. Mas não nos deteremos nesse caso sobre o qual pouco sabemos além de que “viviam ambos em grande benquerença”, pois nos dedicaremos a outros dois, paradigmais, de amor nascido do convívio e do casamento por amor.
O primeiro caso diz respeito a D. João I e Dona Filipa, cujo casamento foi promovido com fins exclusivamente políticos. Consta que os noivos não se conheciam, jamais tinham se visto e, portanto, não havia entre eles quaisquer sentimentos. Ademais, o silêncio de Lopes sobre o aspecto físico de Dona Filipa e ainda o seu próprio retrato em alto-relevo sobre o túmulo no mosteiro da Batalha, levou um historiador a considerar que era uma mulher feia. Esse historiador, o Conde de Vila Franca, com esse seu raciocínio pretendeu provar que a hesitação do rei em promover as suas bodas deveu-se ao fato de ter tomado conhecimento de que a plástica da futura esposa não era nada estimulante. Oliveira Martins, embora não mencione a palavra feia, não nos deixa dúvidas dessa realidade presente em Dona Filipa, pois descrevendo-lhe os traços diz não ter ela “outra belleza mais do que o doirado dos seus cabelos (...) a alvura da sua pele, rosada nos lábios (...) e o azul (...) dos seus pequenos olhos”. Mas se esses autores estão acordados em relação à feiúra de Dona Filipa, não estão em relação às causas da relutância de D. João em realizar logo o matrimônio, conforme havia prometido. Para Oliveira Martins a razão estaria na desconfiança do rei de que Dona Filipa não tivesse recebido uma educação esmerada já que a corte de seu pai não era vista exatamente como um exemplo de moralidade pois suas próprias filhas foram criadas pela amante, Catarina Bonet. Apesar de improcedente, como veremos no próximo capítulo, essa suspeita de má educação, aliada à feiúra de Dona Filipa, deveria constituir-se em fator desestimulante ao nascimento do amor. Entretanto, o casamento foi realizado e, apesar desses entraves, o casal real teve uma longa e, ao menos pelo que nos consta, harmoniosa convivência conjugal.
A ausência de narrativas que implicassem em adultério ou que denotassem quaisquer desentendimentos entre o real casal, levam-nos a supor que, pela convivência, era possível o surgimento do sentimento amoroso. Mas temos além disso alguns outros indícios que reforçam o que estamos afirmando. Em junho de 1387, D. João I partiu de Guimarães com destino a Coimbra, onde se encontrava D. Filipa. Entretanto, em meio ao caminho foi acometido de forte febre, sendo obrigado a ficar nos Paços do Curral. A rainha, tão logo soube tais notícias sobre o “seu muyto amado marido que ela tamto preçaua, trigosamente partio pera aquelle logar”. Nesse caso, quando Lopes fala em “amado marido”, não se trata de expressão usual, dita por força do hábito, porque ela é ímpar em suas crônicas, assumindo, portanto, o seu sentido literal. A rainha ficou muito triste e, segundo Lopes, com razão, pois “se uia em terra estranha casada de pouco, posta em tam gramde homra” e temendo que o marido viesse a “falleçer-lhe logo assy çedo” tinha-se por desventurada e não cessava de chorar, rogando que a morte a levasse.
Em terra estranha, Dona Filipa — na condição de inglesa que veio para Portugal em companhia do pai, o Duque de Lancaster, grande interessado na disputa à coroa castelhana em virtude de ser casado com Dona Constança, filha mais velha do rei D. Pedro, assassinado no transcorrer da guerra pela disputa do trono com o seu meio-irmão Henrique de Trastâmara —, estava casada há pouco, visto ter o casamento sido realizado em início de fevereiro de 1387, o que significa que mal haviam se passado quatro meses das bodas. Finalmente, com a afirmação de que com o casamento, Dona Filipa foi posta em grande honra, Lopes insinua que a posição social ocupada pela esposa de um rei era invejável aos olhos das mulheres da sociedade medieval. Quer dizer que o choro da rainha e seus rogos para que a morte a levasse, ao invés de motivados pelo amor, bem poderiam sê-los pela insegurança. Mas se paira essa pequena dúvida sobre o amor de Dona Filipa por D. João I, ao menos não se pode ignorar a sua extrema dedicação ao marido:
“A muyto nojossa Rainha chegaua-se a el-Rey por o comsollar, nom tiramdo os olhos delle, e nom sabia como reteer as lagrimas que embargauom a sua doçe falla. E atemdendo por sua saude, via-o cada vez mais fraco; e oolhando como se todos apuridauom huuns com outros, esto a poinha em mayor desperaçam, assy que a seu nojo sobre gujssa nom sabia comselho que poer, senom tornaua-se ao muy alto Deus e aa sua preçiosa Madre, rogamdo-a ameude em suas deuotas oraçoões que se qujsesse amerçear do seu desemparo, e assy como Mestra de Mysericordia prouese de saude ao seu marido; aa quall prougue por sua merçe empetrar tamta graça do seu bemto filho que el-Rey começou de coualesçer e melhorar pera saude, cousa que nom foy e menos conta theuda como se resuçitara da morte aa vida.”
Quanto a D. João I, ousamos afirmar, também amava a esposa ou ao menos nutria em relação a ela um sentimento muito afetuoso, pois não encontramos nas crônicas de Lopes absolutamente nada que contradiga essa hipótese: nenhuma atitude do rei era desrespeitosa em relação à esposa e não nos consta que tenha em algum momento buscado compensar alguma eventual frustração doméstica com relações extraconjugais, tão comuns entre os reis que não conseguiam superar a mera conveniência política de seus matrimônios. Em virtude de sua felicidade conjugal talvez possamos compreender melhor porque D. João I foi tão aplicado no que diz respeito à prática do costume dos reis portugueses de casarem as donzelas da corte. Ao longo de seu reinado foram promovidos, pelo casal real, mais de cem casamentos e, se dermos crédito a D. Duarte, entre esses casais não eram conhecidas quaisquer desavenças sérias.
Visto ser possível da convivência surgir o amor, observemos agora um caso que em virtude do amor surgiu o casamento. É uma história já conhecida por nós, referida neste trabalho sob o título “Casamento por Juras ou Furto”, mas que acreditamos valer a pena ser repetida por inscrever-se dentre as mais belas páginas escritas por Lopes. Um verdadeiro romance trágico genialmente reproduzido pelo nosso cronista. Trata-se do enlace do infante D. João com Dona Maria, irmã da rainha Leonor Teles que, apesar de viúva era jovem, “em boa hidade de mancebia, fremosa e aposta e muito graciosa”. Além dessas qualidades, D. Maria possuía também linhagem e “gram casa”, bens móveis e de raiz, não desprezíveis especialmente aos segundogênitos como o caso de D. João. O infante, que a via com certa freqüência “começou de a amar muy de voontade; e rrevolvendo-sse ameude em este pensamento, secretariamente [sic] lhe enviou descobrir seu amor...”. Mas, segundo Lopes, Dona Maria, uma dama distinta, com boas maneiras, procurava dissuadir o infante de seus intentos; todavia, não o conseguindo, mandou-lhe por intermédio de um fidalgo a mensagem de que se ele realmente a amasse “que casasse com ella e a rrecebesse por molher”. Assim de fato aconteceu, pois o infante não conseguiu conter seu amor e escorregou para uma verdadeira armadilha que lhe montou a mulher amada: a seu chamado foi escondidamente a sua câmara, à noite, onde encontrou-a ainda mais formosa, pois preparara-se convenientemente para a ocasião. “[...] quando entrou, vio ella e seus corregimentos assi despostos pera o rreceber por ospede que parecia que cada huu corregimento o rrogava que ficasse alli aquella noite”; paralelamente Dona Maria dizia-lhe que somente se a tomasse por esposa poderia concretizar os seus desejos. E, como se fora coisa combinada, uma dama de companhia disse ao infante que a recebesse por esposa, pois, afinal seu irmão, o rei D. Fernando, havia se casado em circunstâncias idênticas.
“O iffante, preso per maginaçom e posto mui firme so jugo do amor, per congeitura das cousas que viia tiinha em gram preço e desejava muito as que nom pareciam; em tanto que o fogo da bem-querença, aceso em dobrada quantidade, lhe fazia semelhar aquel pouco d'espaço que fallavom huua perlongada noite. Entom, querendo acabar o aazo o que a voontade começara, concordarom seus prazivees desejos, outorgando el que a rreceberia e avia por sua molher; e foi assi de feito que a rrecebeo logo presente Alvaro d'Antes e outros de que muito fiavom; os quaaes se logo forom e el ficou hi; e satisfazendo huu ao desejo do outro, el se partio ledo, sem ella ficar triste, muiito cedo ante manhãa, o mais afastado de fama que se fazer pôde.”
Consumou-se assim o amor do infante. Mas, como temos sublinhado à exaustão, os interesses de ordem política muitas vezes sobrepunham-se aos sentimentos. D. João, iludido pela rainha Dona Leonor que acenava com um casamento com sua própria filha, a princesa Dona Beatriz, assassinou brutalmente a esposa — como vimos quando tratamos das “Encomendações a Deus”— imaginando que com esse ato uma grande oportunidade que se lhe abria para suceder ao irmão, D. Fernando, no trono. Ledo engano, pois de nada lhe serviu a morte de Dona Maria: a rainha Dona Leonor voltou atrás em seu propósito de casá-lo com a filha e o rei, seu meio-irmão, deixou de recebê-lo bem na corte. Desamparado e com medo da vingança dos familiares de Dona Maria, D. João teve que homiziar-se em Castela, não sem antes passar pela sina dos príncipes desgraçados.

O AMOR PROIBIDO

Não encontramos nas crônicas de Fernão Lopes nenhum caso em que pudéssemos constatar um amor mais intenso e vibrante que o experimentado por D. Pedro I em relação a Dona Inês de Castro. Trata-se de um sentimento muito forte e meio louco, bem talhado, afinal, ao perfil psicológico de seu principal protagonista. Embora em certos aspectos esse caso pudesse ter sido analisado sob a mesma perspectiva que diz respeito ao infante D. João e Dona Maria, preferimos abordá-lo separadamente para não corrermos o risco de estereotipá-lo, o que seria deplorável, pois constituí-se em um caso exemplar dos muitos amores proibidos vividos naquele tempo. Se teve óbices grandiosos a impedi-lo, foi também favorecido pelos infortúnios alheios; se foi coroado por momentos felizes, não deixou de ser desventurado e trágico; se culminou com a realização do casamento, o que é discutível, como vimos, não deixou de arrastar o estigma do concubinato; se provocou compaixão, não deixou de suscitar o ódio, pois extrapolou os limites da privacidade do casal para transformar-se em motivo de divisão de opiniões. Nosso cronista foi muito preciso em definir esse grande amor:
“semelhante amor qual el-rei Dom Pedro houve a Dona Inês raramente é achado nalguma pessoa, porém disseram os antigos que nenhum é tão verdadeiramente achado como aquele cuja morte não tira da memória o grande espaço do tempo.”
O amor verdadeiro é o que a própria morte não apaga!!! Tem razão Fernão Lopes, pois embora algumas atitudes em vida possam dar-nos prova do amor de D. Pedro por Inês de Castro, elas não são tão convincentes como as que tomou após a sua morte. De qualquer forma faremos uma digressão sobre o que entendemos terem sido manifestações em vida do amor do soberano pela mulher amada para, em seguida, trabalharmos na análise das atitudes tomadas por ele posteriormente à sua morte.
D. Pedro I conheceu Inês de Castro logo após seu casamento com Dona Constança, que a trouxera como dama de companhia. A bela Inês com certeza apresentava atrativos físicos bem mais insinuantes que os da legítima esposa, sobre os quais, por sinal, o cronista se cala, e atraiu para si as atenções do futuro monarca. Não que este repudiasse a esposa, com a qual relacionava-se ao menos sexualmente, como provam os filhos advindos, mas porque lhe faltava um complemento ao gênio inquieto e turbulento, incapaz de satisfazer-se ao lado de uma única mulher. Amou-a, com certeza, e tanto a ponto de atrair o ciúme de Dona Constança, que procurou obstar o relacionamento de todas as maneiras ao seu alcance, inclusive dando à rival o filho que lhe nascera, D. Luís, para batizar. Procurava assim criar laços de parentesco que impedissem o relacionamento amoroso extraconjugal do marido, conforme estabelecia a Igreja dessa época. De nada adiantou, entretanto, tal iniciativa, pois D. Luís faleceu com apenas uma semana de vida o que, de certa forma, desfez o parentesco contraído.
De nada valendo a ação de Dona Constança e nem as Leis da Igreja, interveio D. Afonso IV, proibindo o filho de encontrar-se com Dona Inês. Mas mesmo reunindo em sua pessoa a autoridade paterna e real, o rei não conseguiu desviar seu herdeiro de seu desiderato. O amor por Inês era mais forte que o poder de seu pai: continuou a corresponder-se com ela, embora às escondidas. Com a morte prematura de Dona Constança, D. Afonso IV pretendeu casar o infante com a amante, um casamento digno de um rei, afinal Dona Inês pertencia à melhor nobreza castelhana, inclusive com seus antecedentes reais; mas, por razões não muito bem explicadas, D. Pedro recusou essa proposta, que lhe traria enfim o que tanto almejara. E justamente devido a sua ascendência, Inês de Castro foi condenada à morte. Temia-se que a poderosa família Castro pudesse influir na sucessão, em detrimento de D. Fernando, filho legítimo de D. Pedro com Dona
Constança. Por isso, a bela Inês foi morta por degola. O famoso “colo de garça” ou “colo de alabastro” foi degolado em Coimbra, a 7 de janeiro de 1355, iniciando-se assim uma nova fase do comportamento de D. Pedro I em relação ao seu amor.
Na verdade o comportamento de D. Pedro I em relação a Dona Inês encerra quatro posições distintas. Ao conhecê-la apaixonou-se perdidamente, a ponto de relegar a esposa legítima a segundo plano, desobedecer a proibição paterna e a própria legislação eclesiástica. Quando teve oportunidade de casar-se, contraditoriamente negou-se ao consórcio, contrariando novamente o pai que propusera essa solução. Após a morte de Inês, em princípio, buscando vingança, o infante agiu com extremada violência e por fim, com saudosa ternura. Se as primeiras atitudes não são surpreendentes, as tomadas posteriormente à sua morte nos revelam com maior clareza a intensidade de seu amor.
A primeira foi uma atitude muito cruel envolvendo os presumíveis assassinos de Inês de Castro, Diogo Lopes Pacheco, Pero Coelho e Álvaro Gonçalves. Segundo Lopes, os dois últimos citados eram, de fato, responsáveis pela morte de Dona Inês, mas Diogo Lopes Pacheco nada tinha a ver com tal crime. É sabido que após D. Afonso IV ter mandado matar a amante do filho, houve um princípio de guerra civil envolvendo pai e filho. Todavia, serenados os ânimos, graças principalmente à intervenção da rainha mãe, houve um acordo através do qual Afonso IV perdoou os partidários do filho e este, por sua vez, perdoou os suspeitos do assassinato. Desconfiado, entretanto, que o filho não cumpriria a promessa, o rei, em seu leito de morte, aconselhou aos suspeitos que buscassem asilo político em Castela, a exemplo de alguns castelhanos ? D. Pedro Nunes de Gusman, Mem Rodrigues Tenório, Fernando Godiel de Toledo e Fernando Sanches Caldeirom ? que, temendo pelas suas vidas em virtude de desavenças com o rei Castelhano, D. Pedro, o Cruel, haviam buscado homizio em Portugal. Afonso IV estava certo. Mal assumiu o poder, D. Pedro I declarou os suspeitos traidores e, em flagrante desrespeito as regras de relacionamento vigentes àquela época, fez um acordo de extradição dos exilados, com o seu homônimo castelhano.
Diogo Lopes Pacheco, que estava caçando, foi avisado por um aleijado e, disfarçado em mendigo, conseguiu fugir para Navarra. Pero Coelho e Álvaro Gonçalves, entretanto, não tiveram a mesma sorte. Presos, foram enviados a Portugal, onde o rei, enquanto comia, os mandava matar e retirar-lhes o coração, do primeiro pelo peito e do segundo pelas espáduas. Embora não saibamos que diferença faz tirar o coração pela frente ou pelas costas, o certo é que somente um ressentimento muito grande poderia levar um rei a tal ato. Crueldade e sadismo, ou uma vingança proporcional ao grande amor que D. Pedro nutria por Inês de Castro? São dúvidas às quais não podemos responder com certeza, mas convenhamos que nem sequer o próprio tempo, que é o remédio mais recomendado e praticamente infalível para esses casos, foi suficiente para levá-lo a perdoar.
Quanto a segunda atitude de D. Pedro I após a morte de Inês de Castro, não há nada de cruel, ao contrário, é uma demonstração terna que chega a constituir-se em reverência muito especial à memória da mulher amada. Mandou construir um mausoléu no mosteiro de Alcobaça, tendo como destaque sobre a campa, em alto relevo, a imagem de Dona Inês coroada, como se houvera sido rainha. Providenciou em seguida o translado do corpo do mosteiro de Santa Clara de Coimbra para o de Alcobaça, num cortejo que incluiu a participação de grandes cavaleiros, fidalgos, damas, donzelas, membros do clero e muita gente do povo. Todo o caminho entre os dois mosteiros, perfazendo uma distância de dezessete léguas, foi iluminado com círios segurados por homens dispostos de forma tal que sempre havia claridade por onde passava o séquito. Enfim, como que para demonstrar que se não fora possível conviver com a amada enquanto vivo, ao menos repousaria seu cadáver ao lado dela, mandou construir ao lado do mausoléu que fizera para Dona Inês um outro semelhante, de modo que, quando faleceu, foi enterrado ao lado dela.
Dizer que todas essas providências não tinham senão o objetivo político de aparentar ser realmente verdadeiro o seu casamento, parece-nos improvável, e embora tal hipótese não possa ser totalmente descartada porque o rei tinha interesse em incluir os filhos que restavam dessa união dentre os seus herdeiros, a nossa impressão é a de que realmente Lopes resgatou um grande e verdadeiro amor, proibido, é verdade, e talvez por isso, mais intenso, mais emocionante, mais trágico. Um amor, enfim, diferente, porque ultrapassava a mesmice dos amores comuns.
Sobre se o amor de D. Pedro foi correspondido, nada podemos dizer, pois é temerário qualquer julgamento a respeito. O mais provável é que às mulheres era negado o direito de externar os seus sentimentos. Se amavam, mesmo que fosse a seus maridos, era um sentimento contido e muito pouco divulgado.

2. A INVEJA E A COBIÇA

“Segumdo emsina o lomgo huso, e a pratica disto nos faz muito certos, em nenhuua parte tem a emveja tam gramde morada, como na corte dos Reis e Senhores...”
O texto em epígrafe, válido para qualquer corte, torna-se muito mais apropriado quando se trata de uma corte nova, como a de D. João enquanto ainda era o Mestre de Avis, no início da Revolução que o conduziria ao poder. Em Portugal, naquela época, uma nova nobreza estava sendo constituída e muitos pequenos senhores, segundogênitos e letrados, ávidos por ocuparem o melhor espaço junto ao rei e levados pela inveja, procuravam prejudicar os concorrentes. A maior vítima da inveja nesses tempos de transição, ao menos pelo que aparece nas crônicas de Fernão Lopes, foi sem a menor sombra de dúvidas o Condestável Nuno Álvares Pereira. Aliás, do princípio do movimento que conduziu o Mestre ao trono, desde as primeiras reuniões de seu conselho, em toda a trajetória de luta e inclusive quando D. João I já estava consolidado no poder e procurava diminuir o poderio dos grandes senhores, foi Nuno Álvares Pereira o alvo principal da inveja de seus próprios patrícios.
Nas primeiras reuniões do Conselho do Mestre, Rui Pereira, Álvaro Vasques e João das Regras, revolucionários de primeira hora, juntamente com outros conselheiros, chegaram a combinar que contradiriam todas as propostas que Nuno Álvares Pereira viesse a apresentar, mesmo que fossem boas. E assim o fizeram; todavia o Condestável, que não foi apenas um bom guerreiro, mas também um hábil estrategista no campo político, conhecendo a trama soube aguardar a oportunidade adequada para desfazê-la. Quando todo o Conselho do Mestre esforçava-se em demonstrar que uma sua proposta não era boa, ao invés de indignar-se, simplesmente pôs-se a rir. Tal atitude despertou a atenção de D. João que perguntou porque ria. Descoberta a trama, os conselheiros curvaram-se diante dos argumentos do futuro rei que os demoveu de tal prática.
Mas com certeza a perspectiva de uma brilhante carreira fazia com que a atenção dos invejosos recaísse sobre Nuno Álvares. Em 1384, quando Lisboa estava sitiada pelos castelhanos, o Mestre de Avis mandou-lhe recado para que fosse com suas gentes ao Porto, de onde deveria partir uma frota portuguesa para combater a castelhana, objetivando pôr fim ao cerco. O condestável escreveu então aos fidalgos que se encontravam na frota, dentre os quais Dom Gonçalo e Rui Pereira, para que o esperassem. Mas com “emveja e corruta emtemçom” não o aguardaram. Quando o Condestável chegou ao Porto a frota já estava em uma localidade a que chamavam Buarcos. Novamente Nuno Álvares mandou recado para que o esperassem; entretanto, seus comandantes, “husamdo aimda da primeira emveja”, outra vez partiram sem aguardá-lo. Em 1386, durante uma incursão que D. João I fez em terras castelhanas, novamente o Condestável foi alvo da inveja de seus próprios companheiros. O rei dividiu as suas gentes em três grupos, sendo o primeiro comandado por ele próprio, outro por Nuno Álvares e um terceiro, onde iam Martim Vasques e Gonçalo Vasques, “que por emveja nom eram bem dacordo com o Comde, auiam dhir per outra parte”. Esse último grupo adiantou-se e partiu antes que o Condestável, com o objetivo de tomar algumas localidades que estavam no caminho “e esto por leuar aquella homra amte que o Comde chegasse”. Honra e cobiça, eis os móveis da inveja entre os homens medievais.
Entre 1395 a 1396, estando perfeitamente consolidada a independência portuguesa em relação a Castela, tanto Nuno Álvares como D. João I procuraram organizar-se administrativamente, cuidando dos bens que haviam amealhado ao longo da campanha. O Condestável tratou de dividir parte de suas terras, que não eram poucas, entre aqueles que o haviam seguido em toda a jornada. Essa divisão motivou comentários diversos, uns o tinham por
“homem de gramde discriçam e notaueel conheçimento. Houtros com enveja e encuberto hodyo diziam que bem podia aquello fazer, e muyto mais se quysese, pois tinha a metade do reyno em terras e rendas e outras dadyuas que del-Rey avia recebidas.”
E os comentários sobre as posses do Condestável não paravam aí; dizia-se até que quando D. João o mandou para o Alentejo, como fronteiro-mor, havia prometido dar-lhe a metade de tudo quanto fosse conquistado durante a guerra com Castela. Verdadeiros ou ressentidos, o certo é que os comentários tinham fundamento, pois o Condestável possuía praticamente a metade do reino, sendo três condados [Ourém, Barcelos e Arrayolo] e dezoito localidades diversas.
É inegável que a detenção dessa quantidade enorme de terras num reino relativamente pequeno como Portugal e num período histórico em que o poder provinha da posse da terra, proporcionava a Nuno Álvares Pereira os meios suficientes para desestabilizar a monarquia. E se os fortes laços de amizade que o ligavam ao Rei eram suficientes para evitar qualquer atrito mediato, não era difícil prever que na medida em que esses laços se afrouxassem em virtude das respectivas sucessões, haveria sempre um perigo em potencial para uma divisão do reino. Por precaução, os conselheiros do rei sugeriram-lhe que promovesse a compra de boa parte das terras de Nuno Álvares, bem como de outros fidalgos, o que de fato foi feito, num grande golpe à descentralização do poder que, inevitavelmente, ocorreria. Lopes, entretanto, não teve percepção disso e atribuiu à inveja a atitude do conselho.
O Conde, apesar da imagem de não ser ambicioso, jamais concordou com essa idéia que inevitavelmente dilapidaria o seu patrimônio. Mas de nada adiantaram os seus argumentos, em especial o de que quem possuía as terras as merecia em virtude da luta contra os castelhanos. Nas Cortes realizadas para esse fim, o rei possuía “por ajudadores quamtos ao conde nam tinham boom desejo, e outros por lhe conprazer; de guysa que rezam que disese em contrairo nenhuuma nam podia aproueytar”. Então o Conde abandonou as Cortes e, inconformado, ensaiava abandonar o reino, somente não o fazendo após longas negociações que incluíram a garantia de que D. João I assumiria os seus vassalos.
Inveja e cobiça, dois pecados capitais que, no período estudado, eram originados especialmente em virtude das dignidades atingidas e do acúmulo de terras por outrem. Bem observou Lopes quando distinguiu os nobres que acompanharam o mestre e aqueles que se foram para Castela no início da “Revolução de Avis”, que
“[Emtamto] que posto que o amor da terra e naturall afeiçom costramgesse muitos fidallgos e alcaides de castellos a teer com Portugall, amte que com Castella; outros porem avia hi taaes, que husando de cobiiça mesturada com emteemçom maliçiosa, e delles com temor e rreçeo de cada huu perder sua homrra, desi cobrar outra mayor da que tiinha, lhe fez de todo escolher o comtrairo; per tal modo que foi o rreino deviso em ssi, e partido em duas partes.”
3. ALEGRIA E PRAZER

Existiam em Portugal, para a época que estamos enfocando, várias atividades ou acontecimentos que podiam fazer com que as pessoas se alegrassem e sentissem prazer. Além das coisas relativamente comuns, como as danças, jogos, nascimentos, casamentos, festividades diversas, viagens e caçadas, outras, até bastante inusitadas, como a própria guerra e a ascensão de um chefe, causavam o prazer. Neste estudo, por não desconhecermos que a alegria e o prazer são sentimentos subjetivos, ficaremos limitados aos casos em que Lopes os menciona literalmente.
D. Pedro I, segundo Lopes, gastava boa parte de seu tempo em danças e festas; para o acompanhamento das danças, dispensava todos os instrumentos existentes e limitava-se a ouvir o som de umas trombas longas que estavam em voga. Tão apreciada era a dança naquela época que quando D. Pedro I chegou a Lisboa proveniente de Almada, foi recebido “com danças e trebelhos, segundo então se usavam” e ele próprio “saia dos batéis e metia-se na dança com eles e assim ia até ao paço”. Tal procedimento demonstra quanto prazer o rei sentia em dançar, pois se naquela época não era imprudente esquecer-se de sua própria segurança e meter-se no meio do povo, não podemos deixar de considerá-lo extravagante. Mas essa não foi a única atitude excêntrica do rei em relação à dança que além de lhe proporcionar alegria, parecia ter sobre ele um efeito terapêutico. Certa feita, conta-nos Lopes,
“[Jazia] el-rei em Lisboa uma noite na cama e não lhe vinha sono para dormir. E fez levantar os moços e quamtos dormiam no paço. E mandou chamar João Mateus e Lourenço Palos que trouxessem as trombas de prata. E fez acender tochas e meteu-se pela vila em dança com os outros. As gentes que dormiam saíam às janelas a ver que festa era aquela ou porque se fazia. E quando viram daquela guisa el-rei, tomaram prazer de o ver assim ledo. E andou el-rei assim grande parte da noite, e tornou-se ao paço em dança, e pediu vinho e fruta, e deitou-se a dormir.”
Poderíamos dizer que era uma bela época a desse rei que, completamente despreocupado com a sua segurança pessoal, podia meter-se no meio do povo e desenfadar-se, entreter-se, alegrar-se. Mas isso seria um equívoco; sua incolumidade física era garantida pela aura sagrada que cercava a figura dos reis, não pelos seus tranqüilos dez anos de governo ou pela segurança reinante em sua época. Ao contrário, a época medieval era de muita insegurança, em alguns casos agravada pela instabilidade política. Não admira, portanto que um dos motivos de alegria do povo era ter um soberano que lhe garantisse segurança. Um exemplo do que estamos afirmando podemos buscá-lo na crise dinástica ocorrida em Portugal após a morte de D. Fernando. O povo, quase em desespero, implorava ao Mestre de Avis que não partisse para a Inglaterra, como era o seu desejo, após ter assassinado o Conde de Andeiro, amante da rainha, e que assumisse o título e a responsabilidade de ser o defensor do Reino. Alfim,
“Quando o Meestre outorgou desta guisa de teer cuidado e rregimento do rregno, toda tristeza foi fora das gemtes, e seus coraçoões nom derom logar a nehuu trespassado temor...”
Finalmente, recolhemos em Lopes alguns motivos geradores da alegria e do prazer no transcorrer da guerra. Um reforço que chegasse em um momento crucial poderia ser motivo de grande alegria. Assim foi, quando, em plena campanha militar, D. João I partiu de Alenquer para Abrantes e Nuno Álvares foi ao seu encontro. Também uma incursão bem sucedida em território inimigo causava prazer, mas nada como uma grande vitória para fazer com que a alegria contagiasse toda a coletividade. Quando, por exemplo, os portugueses venceram a batalha de Aljubarrota, o contentamento foi tão grande a ponto de Lopes julgá-lo indescritível. Num primeiro momento um grande rumor do povo, depois, passado o arroubo, lágrimas, preces, procissões, missas, sermões e com eles mais choro:
“As gentes, quando esto ouuyrom, [a notícia da vitória] foy o prazer tamanho em elles quamto se escrepuer nom poderya; e por a gram ledice que auyam douydauom muito de o crer (...) E todos muyto allegres, cessado o rumor do poboo que per grande espaço por esto durou, entraarom a aquello por que eram ally juntos; e deuotamente, com lagrymas e prezes, o acabarom, e sse forom per as pusadas.”

4. O ÓDIO E A SANHA

Embora ódio e sanha possam ser consideradas palavras sinônimas, Lopes as usa distintamente, dando à primeira um sentido de ressentimento profundo não manifestado e à segunda, a idéia de um sentimento que vem à tona, que explode em ações violentas. O termo ódio é usado em raríssimas oportunidades, enquanto sanha é muito freqüente, o que não significa nenhuma predileção de Lopes, mas, ao que nos parece, o retrato da realidade medieval, pois nesse período, conforme já demonstrou Huizinga, o arrebatamento de espírito era mais comum que a interioridade das desavenças.
Ódio, com certeza, alimentava há longo tempo a rainha Dona Leonor em relação a D. João, o Mestre de Avis. Em princípio, movida pela simples suspeita de que esse irmão bastardo do rei pudesse pretender lavar-lhe a honra matando seu amante, o Conde João Fernandes Andeiro, arquitetou um plano para prendê-lo e matá-lo. O plano consistia em apresentar ao rei cartas falsificadas, incriminando o Mestre e um outro fidalgo, Gonçalo Vasques de Azevedo, de traição. O plano não chegou a se consumar, apesar de ambos os acusados serem presos por alguns dias, sendo soltos sem que soubessem ao menos o motivo da prisão. Depois da morte de D. Fernando, quando a nobreza portuguesa já não suportava a influência do Andeiro sobre a rainha e conspirou para a sua morte, o Mestre foi o escolhido para matá-lo. Dona Leonor não presenciou a cena do assassinato, mas chegou a ver o corpo, ainda quente, estendido num aposento próximo. Então o seu ódio recrudesceu. Um ódio mordaz, mas silencioso, uma espécie de rancor, porque o rancor, embora seja um ressentimento profundo, fica interiorizado, não se manifesta. No caso da rainha, parece-nos não ter sido por falta de vontade que ela se absteve de qualquer represália ao Mestre: na realidade, faltavam-lhe meios para uma eventual vingança.
Convém lembrarmos que após a morte do Andeiro, o tumulto foi geral. As pessoas ligadas a ele e à rainha, prevendo que mais mortes poderiam ocorrer, fugiam até mesmo pelas janelas. A rainha, temendo pela própria vida, mandou perguntar ao Mestre se ela também seria alvo de morte. Respondendo que não, o Mestre foi almoçar com os seus e somente voltou ao Paço mais tarde, acompanhado de vários fidalgos, para pedir perdão à rainha, não pelo fato de ter matado o Conde, mas por tê-lo feito em seus Paços. De joelhos, o Mestre fez o pedido de perdão e colocou-se à disposição para servi-la. A rainha permaneceu calada. O Conde Álvaro Peres intercedeu pelo Mestre e a rainha continuou sem dizer uma palavra. Somente após outro Conde, o de Barcelos, interceder, é que a rainha perdoou-o. E o que mais poderia fazer? Os dois condes do reino, inclusive seu próprio irmão, o Conde de Barcelos, e outros fidalgos do reino estavam em sua própria câmara, armados como em tempo de guerra, ao lado do Mestre. De fato, como dissemos, faltavam à rainha meios, que, aliás, em toda a sua vida jamais conseguiu reunir para vingar-se.
Outro motivo que podia fazer com que o ódio ficasse enrustido nas pessoas era a equivalência de forças militares entre senhores feudais vizinhos que, conseqüentemente, não podiam resolver as suas diferenças através da luta armada. Era o que acontecia na Província da Beira, onde
“Gonçalo Vasquez e Martim Vasquez e seus irmãos eram postos em desuairo e homezio por aazo de tomadias que huuns deziam aos outros que tomauom em suas teras [sic], nom o deuendo de fazer; e por esto se nom fallauom tempos auia.”
Tal desavença era de conhecimento público, e porque transpunha as fronteiras do reino, teve como desdobramento uma incursão castelhana a Portugal, comandada por João Rodrigues Castanheda. Uma invasão muito ousada, que Lopes atribuiu ao ódio existente entre os fidalgos portugueses daquela região:
“E o aazo desta fouteza que todos emtom assy mostrauom era (o) odio e desuairo que os capitaães portuguesses que em aquella comarca estauom amtre sy auyam; emtendendo que pois dacordo nom eram, que se nom juntariam contra elles, e que cada huum per sy nom lhe podia fazer torua. E desta guissa ousadamente emtendiam comprir sua vomtade.”
Finalmente, encontramos nas crônicas de Lopes, menção ao ódio motivado pelo ressentimento de guerras e que vinha à tona se porventura alguma oportunidade de vingança se apresentasse, como por exemplo, nessa narrada por Lopes:
“NunAllvarez estamdo assi em Coimbra, pousava hi estonçe a Comdessa, molher do Comde dom Hemrrique Manuel que tinha Sintra por elRei de Castella; e por hodio que avia a NunAllvarez de quamdo fora correr o termo daquell logar, desi por seer muito da parte da Rainha, e fazer serviço a elRei, hordenou de o premder...”
Nuno Álvares safou-se dessa por ter sido prevenido em tempo hábil, antes que a intenção da condessa se consumasse. Mas convém perguntarmos: seria mesmo ódio o sentimento que a Condessa nutria pelo Condestável? Quer nos parecer que “por ser muito da parte da Rainha”, prendê-lo poderia significar uma providência política e não estritamente odiosa. Assim o vocábulo ódio, além de ser menos usado por Lopes do que poder-se-ia esperar em virtude das contingências daquela época, quando o foi nem sempre expressou o sentimento na sua verdadeira acepção. Isso nos leva a concluir que sobre o ódio o único exemplo inequivocamente caracterizado é o de Leonor Teles contra o Mestre de Avis.
Falemos agora sobre a sanha do homem medieval, ressaltando, novamente, a limitação de nosso objetivo em virtude de Lopes privilegiar, nesses casos, atitudes dos reis. Aliás, a prodigalidade dos soberanos em tais atitudes é tão grande que precisaremos reduzir as exemplificações, tomando apenas as mais significativas.
O rei que mais violências cometeu levado pela ira, o grande campeão, foi sem dúvida D. Pedro de Castela, cognominado não sem motivo de “cruel”. Lopes, inclusive, temendo cometer exageros se contasse tudo o que viu escrito de mau sobre esse rei, limitou-se apenas a narrar os seus principais descalabros. Mesmo assim, nem sempre fica caracterizado que as suas ações, mesmo as mais sanguinolentas, fossem tomadas em virtude de estar dominado pela ira. Lopes não conseguiu qualificar as suas sentenças de morte, apenas menciona-as: “e deixados os achaques que a cada um punha para os matar, somente em breve das mortes digamos e mais não”.
Mas, ao usar a palavra achaque, que quer dizer imputação infundada, Lopes comete um exagero evidente. Em boa parte de seu reinado, esse D. Pedro esteve envolvido em uma guerra civil com o seu meio-irmão, Henrique de Trastâmara e, nessas circunstâncias, defendendo a legalidade de seu reinado, era evidente a necessidade de condenar aqueles que se colocavam contra si. E talvez seja por essa razão que as opiniões dos historiadores a seu respeito sejam divergentes. Em nossa maneira de entender, mesmo levando em conta que sua linha política era anti-aristocrática e que tendeu a dar dimensões hipertróficas à afirmação das prerrogativas monárquicas, parece-nos que esse rei não era lá muito equilibrado.
Mas como não é esse o foco central de nosso assunto, voltemos a tratar sobre a ira, tomando como exemplo um outro rei castelhano, D. João I, filho de Henrique de Trastâmara. Esse rei, que invadiu Portugal em 1385, porque os portugueses não o tomaram por rei, segundo Lopes
“nom çesou husar de toda crueldade, assy em homeens como molheres e moços pequenos, mandando-lhe deçepar as maãos e cortar as limguoas e outras semelhantes crueldades, e jsso mesmo poer fogo as jgreias, espeçialmente a de Sam Marcos...”
Mas a sanha não era privilégio dos reis castelhanos. D. Pedro I, de Portugal, muitas vezes agiu movido por esse sentimento. E se não lhe imputaram a pecha de cruel, foi porque recebeu o epíteto colorido de justiceiro. D. Pedro não somente mandava executar as suas sentenças como, tomado de ira, chegava a praticar a justiça com as próprias mãos. O episódio mais conhecido envolveu o bispo do Porto que, acusado de dormir com uma mulher casada, somente não foi chicoteado pelo rei devido à intervenção de alguns conselheiros que, por um ardil do escrivão da puridade, Gonçalo Vasques, entraram na Câmara onde estavam o bispo e o monarca e demoveram este último de seu intento, argumentando que deveria deixar ao papa um eventual castigo ao bispo e que não ficaria bem ao rei ser chamado de algoz por seu povo.
“Com estas e outras tais razões arrefeceu el-rei de sua brava sanha, e o bispo se partiu de ante ele com semblante triste e torvado coração.”
Que cena! Um rei a brandir o chicote para um bispo, completamente fora de controle emocional. Tomado de “brava sanha”, diz Lopes. Quer dizer, não era uma ira qualquer, mas uma grande ira. Exageros à parte, todos os reis que figuram em alguns capítulos das crônicas de Lopes, de uma forma ou de outra, cometeram algum ato levados pela sanha. O próprio D. João I tido como um rei mais comedido, não deixou de ter alguns acessos de grande ira. Vejamos ao menos um desses momentos.
Em 1387, os portugueses, em ação conjunta com seus aliados ingleses do Duque de Cambridge, tomaram a cidade de Valdeiras. Na hora de proceder ao habitual saque, o Duque expôs a D. João um problema que estava gerando descontentamento entre os seus comandados: sendo os portugueses numericamente muito superiores aos ingleses, estes sempre levavam muita desvantagem na pilhagem. Para resolverem tal questão, o rei e o duque decidiram então que os ingleses sacariam a cidade até ao meio-dia e os portugueses até a noite. Como estes últimos não respeitaram o acordo e antes da hora combinada roubavam não somente a cidade mas os próprios ingleses, o duque dirigiu-se a D. João I, a quem apresentou a sua queixa. O rei deixou sua tenda e cavalgou apressado para o local do saque, onde comprovou que de fato suas ordens estavam sendo desrespeitadas. Então, num
“açesso com gram sanha, leuamdo huuma espada nas maãos, fazia sayr fora, damdo com ella aos que achaua pellas ruas, de guissa que ouue hij feridos e mortos per tall aazo, porem que os mortos nom forom mais que dous, huum que el-Rey degolou per sa maão e outro que fez saltar do muro a fumdo, de que logo moreo.”
Lopes não parece estranhar essas atitudes; quer nos parecer, inclusive, que as tinha como corriqueiras. Não fosse assim, com certeza as acobertaria ou, ao menos, amenizaria tal procedimento quando se tratasse de seu herói favorito, o Condestável. Mas, ao contrário, parece exaltá-las. Quando narra o comportamento de Nuno Álvares no período de guerra, diz:
“Era graçioso em suas pallauras, reçebemdo mesuradamente qualquer da hoste que a elle chegaua, asy capitaees como homen(s) darmas; de guyssa que sua messura sempre passaua em os honrrando allem do que cada huum em seu estado mereçia. Mas com todo esto, no mouymento do arrayall, hordenamdo suas batalhas como aviam de hir, queria se(r) muy themydo como senhor, de guyssa que nenhuum nam pasasse do que elle mandaua; ca doutra guysa tornaua brauo como leom...” [grifo nosso]
Se os próprios reis e a nobreza da época mal conseguiam conter seus ímpetos, é de se imaginar que as coisas se passassem muito pior quando se tratava do povo comum, sem nenhuma instrução e sem contar com a finesse da corte a polir-lhe os atos. O intempestivo comportamento coletivo do povo às vezes acabava em tragédia, como não é difícil supor, especialmente porque com a início da “Revolução de Avis”, a partir de 1383, Portugal passou por um período que se não chega a ser caracterizado como de anomia se aproxima muito, pois as massas chegaram a agir de forma completamente desordenada. Por desconfiança de que o bispo de Lisboa, um castelhano, estivesse do lado da Rainha e não do Mestre de Avis, o povo, tomado de “çega sanha”, invadiu a Sé, desnudou-o, matou-o e atirou-lhe o corpo ao fundo da torre. Em seguida, o corpo desnudo foi arrastado pelas ruas e dado aos cães, somente sendo soterrado após boa parte já ter sido devorada. Mortos também foram aqueles que se encontravam com o bispo, apesar de não terem nada a ver com a história, o prior de Guimarães e um tabelião. O certo é que o bispo, por ser castelhano, como dissemos, era suspeito de traição e, como agravante, recusara-se a mandar repicar os sinos em júbilo pela atitude do Mestre de Avis ao matar o Andeiro. Isso tudo motivou a ira do povo ou, nas palavras de Lopes “a sanha trigava os corações de todos”.
Início de uma grave crise sucessória. Após a morte de D. Fernando em 1383 e até mesmo em 1384, o povo português de um modo geral estava desorientado. Sem uma definição política, sem saber a quem obedecer, ficava muitas vezes à mercê de lideranças pouco escrupulosas e, pior, se deixava levar por impulsos de “brava sanha”. Na verdade, faltava especialmente ao homem comum das cidades, uma entidade institucionalmente constituída que lhe garantisse a segurança social. Faltava-lhe um rei e, mais que isso, o povo não prescindia do imaginário que cercava a figura do soberano. Nessas circunstâncias, a população transformava-se em turba e bastava que alguém sugerisse um nome para que todos se dirigissem a sua casa, matá-lo e roubá-lo. Assim ocorreu com a Abadessa de Évora, porque teria se referido ao povo da cidade como uns bêbados que ainda se dariam mal pelo que faziam. Bastou isso para que um cabreiro de nome Gonçalves Eanes, conduzisse o povo para “matar a alleivosa da Abadessa, que he paremta da Rainha e sua criada”.
Como se vê, bastava pouco para que a violência dos sentimentos aflorasse, e cremos não precisar recorrer a outros exemplos para reforçar essa idéia. Passemos, portanto, a considerar outros sentimentos do homem medieval português.

5. O MEDO, A APREENSÃO E A INCERTEZA

Mil faces tem o medo, todavia, numa época de tanta insegurança é presumível que, durante a vigência de alguma crise de poder, a instabilidade política trouxesse agravamentos ao quadro geral e que o medo, a apreensão e a incerteza fossem, conseqüentemente redobrados. Nas crônicas de Lopes, mais especificamente onde relata o período que conduziu o primeiro Avis ao trono, o medo quase sempre aparece associado à guerra, sendo numerosos os exemplos de que dispomos nesse sentido. O próprio Mestre de Avis, D. João, após ter assassinado o Conde João Fernandes Andeiro, resolveu ir-se para a Inglaterra e, ao que parece, tal atitude não significava um engodo arquitetado para atrair simpatizantes à causa revolucionária, mas sim uma deliberação calcada na incerteza do momento, no medo que tinha de ser vítima da vingança da rainha. Medo, aliás, não infundado, pois o Mestre percebia claramente que muitos nobres evitavam-no por temor à Rainha.
Quando a superioridade numérica do adversário era grande, o medo podia abater o ânimo dos combatentes e um bom chefe, compreendendo isso, incentivava seus comandados com discursos que objetivavam despertar no coletivo reações de coragem, bravura, coesão, enfim, atitudes propícias a um bom desempenho militar; mas que na prática, nem sempre resultavam em êxito. Algumas vezes a composição das forças era tão desproporcional que se registravam deserções, como ocorreu em 1385, pouco antes do embate de Aljubarrota, em que “alguuns homeens de pee portugueses ataa trinta, com medo e fraqueza de coraçom, ssayrom-sse dantrre a carryagem (...) pera fugir”. Em outros casos nem era necessária a invasão, apenas uma simples ameaça podia fazer com que um senhor mudasse de lado e, inclusive, obrigasse aos que estivessem sob o seu mando a acompanharem as suas decisões, passando também a submeterem-se ao rei ameaçador.
Em casos de cerco, o medo de que os inimigos invadissem à força o castelo, ou se fosse o caso, a cidade, provocava negociações entre as partes, o que culminava, na maioria das vezes, com a entrega do local e a submissão dos ocupantes ou em muitos casos a desocupação com uma saída honrosa para os habitantes que iam, em segurança, para os seus senhores. Mas apesar do medo, poderia ocorrer da localidade resistir, como foi o caso de Lisboa em 1384. Os seus habitantes, cercados por terra, viam chegar a esquadra castelhana e “aviam temor e rreçeo”, mas não se entregaram. Segundo Lopes os moradores passaram a noite sem dormir e pela manhã, estando ainda escuro, se dirigiram às igrejas e mosteiros “com camdeas açesas na maãos, fazendo dizer missas e outras devoçõoes com gramdes prezes e muitas lagrimas”.
Mas, afinal, o que temiam as pessoas envolvidas com a guerra? Em primeiro lugar, não nos restam quaisquer dúvidas pelo que analisamos nas crônicas de Lopes, que cuidavam da preservação da própria vida. Não tem nenhum fundamento, qualquer análise que tente explicar os inúmeros conflitos medievais em virtude de alguma eventual doutrina de desapego à vida. A maioria das pessoas não punha a sua existência em risco por insignificâncias e mesmo as façanhas dos cavaleiros medievais, por temerárias que fossem, não sugerem um comportamento de desamor à vida. Ao contrário, à medida que os cavaleiros buscavam a fama e a glória, estavam valorizando a vida; o sucesso das suas façanhas representava, pois, a sua valorização pessoal e o aumento de sua auto-estima. Depois de preocuparem-se em resguardar a própria vida, então vinha a dos parentes e amigos. Durante as batalhas campais e nos cercos, a população ficava em estado permanente de apreensão. As lágrimas eram freqüentes nessas oportunidades e as orações, seguidas de pedidos a Deus, à Virgem e a Todos os Santos para proteção dos envolvidos, constantes.
Depois da própria morte e a dos parentes e amigos, as coisas que mais atemorizavam as populações das cidades e vilas em estado de guerra eram as crueldades cometidas pelos invasores e os saques. Já tivemos oportunidade de mostrar que o rei castelhano D. João I, ao invadir Portugal em 1385, usou de muita crueldade, ateando fogo às igrejas e sem excluir homens, mulheres ou crianças, mandava que lhes cortassem a língua ou decepassem as mãos. Que mais precisaríamos dizer? Atitudes dessa natureza deixam marcas profundas, que não se apagam com a passagem de uma única geração. O temor de invasões, portanto, mesmo por aqueles que não experimentaram diretamente a experiência, era compreensível. Temiam-se ainda as invasões em virtude dos abusos sexuais a que eram submetidas as mulheres das localidades dominadas. Nesse aspecto Lopes não nos deixa muitas pistas, mas por certo não foi à toa que a filha de Lopo Gomes, mulher do alcaide de Neiva, localidade próxima ao Porto e ocupada em 1385 pelos Revolucionários de Avis, “ueo ao Comdestabre, pedindo-lhe por merçee que lhe nom fosse feito alguum desaguisado, e que sua homra fosse guardada”. Mas nem todos os chefes podiam ser comparados ao Condestável e, mesmo que o fossem, nem sempre eram respeitados nas situações de extrema balbúrdia em que ficavam as tropas no gozo das vitórias. O próprio rei, D. João I, não conseguiu evitar o roubo promovido pelos seus comandados em Guimarães e, até mesmo pior que isso, não pôde evitar que seus homens, desrespeitando um trato que havia feito com Airas Gomes, ateassem fogo às portas da vila e a invadissem.
Em resumo, essas eram as situações que causavam o medo. Convém, ainda em tempo, fazermos uma ressalva. Quando dissemos que a coisa mais temida era a morte, referíamo-nos àquela violenta, a que ceifava vidas prematuramente; entretanto a morte que chamamos de natural, ocorrida em virtude da idade avançada ou mesmo quando em virtude de alguma doença, ao que nos parece,. apesar de ser recebida com mais resignação, não o era sem medo. Temia-se sobretudo o Juízo Final, como diz Maria Angela Beirante, em seu interessante trabalho sobre a morte em Portugal:
“O medo do terrível dia do grande juízo, em que Cristo há-de vir em majestade julgar os vivos e os mortos, os justos e os injustos, e em que se há-de ouvir a voz de Cristo: 'Vinde benditos de meu pai...' e 'afastai-vos de Mim, malditos! “ (Mateus, XXV, 34 e 41), não deixa de se fazer sentir.”
Mais ainda, o temor do Juizo Final é mais específico do contexto medieval português, pois nesse dia todos seriam julgados e colocados, segundo seus atos, cada qual em lugar merecido: o céu para os justos e a geena de fogo para os ímpios e pecadores em geral. E quem, na Idade Média, tinha a consciência tranqüila em relação ao estado de sua alma? Quem se julgava livre de pecado quando tinha a Igreja, a cada momento ou pelo menos a cada sermão, demonstrando as dificuldades de se atingir o estado de graça para alcançar o paraíso? Afinal naquela época não eram poucos os pecados a serem evitados, portanto difícil a salvação. Daí o grande medo da morte, a preocupação das pessoas em deixar em seus testamentos doações com o fim específico de “escapar ao fogo do inferno e alcançar o céu”. Por aí também se explicam as diligências dos moribundos que, a despeito da extrema-unção, entravam em verdadeiro estado de pânico. Nas Crônicas de Fernão Lopes o paradigma mais perfeito que encontramos para retratar o medo da morte, ou do Juízo Final, está na passagem em que são narrados os últimos cuidados e providências tomadas antes do passamento de D. Fernando:
“E sentindo sua morte muito acerqua, seendo ja menfestado, rrequerio que lhe dessem ho sacramento; e quando lhe foi apresentado, e contarom os artiigos das fe como he costume, dizendo-lhe se criia assi todo e aquell santo sacramento que avia de rreceber, rrespondeo ell e disse: 'Todo esso creo come fiell christaão e creo mais que elle me deu estes rregnos pera os manteer em dereito e justiça, e eu por meus pecados o fiz de tall guisa que lhe darei d'elles mui maao conto'; e em dizendo esto chorava mui de voontade, rrogando a Deus que lhe perdoasse, e choravom com piedade d'elle todollos que presentes eram: e assi com gram rreverença e devoçom rrecebeo o santo sacramento, jazendo vestido no avito de Sam Francisco. E quando veo aos viinte e dous dias d'outubro da era ja escripta de mill e quatrocentos e viinte e huu, em huua quinta-feira aa noite, começou ell de sse afficar; e lidando ho spritu com a carne n'aquella aspera hora por sse partir d'ella, em breve espaço desemparou o corpo, e ell deu a alma a Deus, a que por sua mercee praza de a fazer rregnar com os seus santos.”

6. O DOMÍNIO SOBRE OS SENTIMENTOS

Anteriormente falamos dos sentimentos mais mencionados nas crônicas de Lopes, mas é óbvio que os outros sentimentos humanos se manifestavam também nos homens medievais, embora não houvessem sido muito destacados pelo nosso cronista. As pessoas sentiam vergonha de algumas coisas, como Nuno Álvares Pereira em relação ao seu pai, quando este lhe falou em casamento, ou como o Mestre de Santiago por ter desrespeitado um trato que fizera com os portugueses, ou como os que acompanhavam o infante D. João, quando este assassinava a sua “esposa a furto”, Dona Maria, por verem-lhe o alvo corpo descoberto. Sentiam saudade, como se depreende de um diálogo narrado por Lopes entre o mesmo Nuno Álvares e o seu irmão Diogo Álvares, que há muito não se viam. Enfim, podemos dizer que todos os sentimentos manifestados hoje pela humanidade, o eram também na época estudada, embora com coloração diferente. Mas não imaginemos que os sentimentos fossem completamente desenfreados e incontroláveis. Ocorriam sim os arrebatamentos, como já vimos; todavia, haviam, também como hoje, mas talvez menos convincentes, elementos coibidores das ações mais destemperadas. Os sentimentos eram, portanto, em muitos casos e para muitas pessoas, perfeitamente controláveis.
Basta retornarmos à nota acima para nos certificarmos de que os irmãos sentiam saudades, tinham lembranças, com certeza gostosas, do tempo de infância; todavia suas convicções políticas estavam acima desses sentimentos e cada qual seguiu o seu caminho. A convicção política era, portanto, mais forte que a saudade. Mas esse não é com certeza o único exemplo que temos nas crônicas de Lopes em que os sentimentos eram freados. Selecionemos, pois, alguns outros que sejam significativos dentro do que estamos tentando demonstrar.
É sobejamente sabido que a Rainha Dona Leonor tinha pelo Andeiro algo muito maior que uma inocente amizade. No entanto, é impressionante a frieza que demonstra quando ele foi assassinado pelo Mestre de Avis. Se ficássemos restritos apenas à leitura do capítulo da Crônica em que Lopes narra a morte do Andeiro, jamais faríamos idéia de que era amante da rainha. Por outro lado, não era desconhecido o ódio que a rainha alimentava em relação ao Mestre, entretanto, dissimulava-o muito bem:
“Ella avia çertos fumdamentos pera quem tiinha maa voomtade, numca lho poder conheçer; e omde emtemdia fazer gram dãpno, aazava mortaaes empeecimentos cõ mostramça de todo o comtrairo. Assi que pero ella tevesse ao Meestre huu tam mortall odio por a morte do Comde Joham Feranmdez, em guisa que de nenhuu mall lhe podera emtom viir tam gram parte, que a ella fora abastada viimgamça; pero com todo isso ella pode tamto como seu gramde coraçõ a poucos ligeiro de fazer, que nenhuus signaaes de mall queremça mostrava ao Meestre de fora, como sse lhe nuca ouvesse feito nenhuum desprazer.”
Quer dizer, além do amor ou do ódio estava o cargo que ocupava. Assim era. Quem possuía um ofício tão importante não podia dar-se a sentimentalismos. Um rei não podia se dar a lamúrias, como o de Castela, após ser derrotado em Aljubarrota. Logo alguém o lembrava de que deveria dar exemplo, que não podia abater-se, enfim, ao menos teoricamente ninguém podia fraquejar. E assim era com a sociedade em geral, que nem mesmo diante da morte podia manifestar-se sem ter em conta certas regras de comportamento que levavam ao comedimento:
“E porque o carpir sobre os finados he costume desonesto e descemde dos gentios, semdo speçia de jdollatria defessa per Deus em seus mandamentos, por emde hordenarom que homem nem molher nom se carpisse nem bradasse sobre alguum finado, posto que fosse padre ou madre nem filho nem jrmaão ou marido ou molher nem per outra nenhuuma perda nem nojo, mas trouxesse seu doo e chorasse honestamente; e quem o contrairo fezesse, pagasse çerta pena de dinheiro e teuesse o ffinado oito dias em sua casa.”

7. O RISO E O CHORO

A inclusão desse assunto no presente capítulo pode parecer estranha, pois, afinal, o riso e o choro não são sentimentos. Cabe, portanto, esclarecer que, apesar disso, optamos por inseri-los porque são manifestações de diversas origens e conotações que refletem inumeráveis estado de espírito que, em última análise, refletem o sentimento das pessoas em determinado momento e em relação a alguma coisa. Enfim, são atos que denotam alguns sentimentos.
Iniciemos pelo choro, em primeiro lugar distinguindo-o de carpimento, porque embora esperemos ter ficado claro pelo exemplo usado logo acima, que este era um ato coibido pela sociedade da época, o que não quer dizer que não fosse utilizado. Pelo exemplo mencionado, podemos afirmar que os coevos entendiam que chorar era algo mais civilizado e carpir mais vulgar. E, de fato, entre a nobreza, somente encontramos indícios de carpição nas lamúrias do rei D. João I, de Castela, após ter sido derrotado em Aljubarrota. Indícios, dissemos, pois Lopes nem sequer usou, para o caso, a palavra carpir, o que quer dizer que pode ter ocorrido do rei não ter cometido os excessos inerentes à dor da derrota. Diz que, com o rosto entre as mãos e a cabeça encostada em uma parede, chorava e dizia:
“O booms vasallos e amygos, que maao rey e maao parceiro teueestes em mym que vos trouue todos a matar e nom uos puyde acorrer nem seer boom! Oo Deus, porque te prougue leixar huum rey tam soo e tam desemparado de tantos e boons como hey perdidos! Viuyrey lastimado em todos meus dias, e mais me vallyrya a morte que a vida.”
Por outro lado, quando Lopes usa literalmente o verbo carpir, não nos oferece nenhuma descrição das palavras utilizadas e nem dos gestos correlatos. Talvez não fosse necessário naquela época; bastava que usasse o termo para que todos entendessem que se referia a lamentações estapafúrdias. É de se imaginar a cena bizarra, já enfocada por nós em outro contexto deste trabalho, do enforcamento do marido de Maria Rousada, a mando de D. Pedro I. Maria havia sido violada em sua virgindade antes do casamento, donde lhe proveio o nome Rousada. Entretanto vivia com o marido há muito tempo, queriam-se bem e tiveram filhos, como já tivemos oportunidade de ver. Não havia portanto rancor e muito menos foi feita alguma queixa ao rei. Então, ao menos do ponto de vista da família, não havia motivo para a condenação. Mas não era a maneira de ver do soberano, que mandou enforcá-lo. É de supor, por conseguinte, o alarido feito quando viram que lhe levavam o marido e pai à forca. Lopes define a cena de maneira muito simples e objetiva: “atrás dele, iam a mulher e os filhos carpindo”.
Quanto ao choro, pudemos perceber que ocorria em diversas situações. Chorava-se em virtude de injustiças cometidas, por vergonha, por doença, pela perda do Senhor, por emoção forte e, principalmente, pelas derrotas sofridas em combate e pela morte. Mas chorava-se também de prazer. Quando o contentamento era muito grande, nem sempre o riso era suficiente para extravasar esse sentimento, então vinham as lágrimas.
Após o Mestre de Avis ter matado o Andeiro, mandou, conforme havia combinado com Álvaro Paes, um pajem às ruas de Lisboa a gritar justamente o contrário, que matavam o Mestre. O povo alvoroçado dirigia-se aos paços e, ao ver D. João à janela, agradecia a Deus e “muitos choravam com prazer de o veer vivo”. Foi também, só para ficarmos com mais um exemplo, tomados de prazer que os lisboetas choraram ao conhecer o sucesso de Aljubarrota:
“E todos muyto allegres, cessado o rumor do poboo que per grande espaço por esto durou, entraarom a aquello por que eram ally juntos; e deuotamente, com lagrymas e prezes, o acabarom, e sse forom per as pousadas.”
Vistos esses exemplos de choro por alegria, porque eles fluíram naturalmente no discurso que vínhamos desenvolvendo, vejamos agora, obedecendo à ordem acima enunciada, cada uma das situações.
Em 1387, por adentrarem sem ordens expressas numa localidade que ainda não havia se rendido (“Villalobos”), alguns rapazes foram condenados à morte por decepamento pelo rei D. João I, apesar do condestável ter insistido para que fossem perdoados, uma vez que não achava motivo para tanto. Não sendo atendido, o Conde saiu
“com vulto triste e chorosso, e foy-sse logo pera sua temda, e deitou-sse de bruços emçima da cama. E posto que sua lagrimas constrangidamente fossem retheudas, nom o pode tamto emcobrir que os que eram daredor o nom ouuyssem chorar muyto e dar gramdes salluços por tall justiça como aquella.”
De vergonha chorou o Mestre de Santiago, o mesmo que acima mencionamos por ter desrespeitado um trato feito com os portugueses. O Mestre de Santiago de Castela e o Condestável de Portugal haviam combinado que caso um deles resolvesse fazer alguma incursão, deveriam avisar com alguns dias de antecedência para que a parte que fosse invadida se precavesse. Sem entretanto cumprir o combinado, o Mestre de Santiago invadiu Portugal e promoveu grande saque. Somente um ano após o acontecimento [1398] Nuno Álvares invadiu Castela e pôs-se à frente do Mestre para vingar-se. Foi nessa oportunidade que o Mestre chorou, ao tentar justificar a sua falta para um mensageiro do Condestável, dizendo que o rei castelhano o obrigara a promover a invasão e que em caso contrário perderia o mestrado e todos os seus privilégios.
Quando os vassalos de um determinado Senhor viam-se abandonados era prática que chorassem, ou porque o amavam, como vimos, ou por medo do desamparo. Após ter assassinado a amante, o Infante D. João fugiu para Castela, deixando recado aos seus para que procurassem fazer aquilo que julgassem mais conveniente para cada um, provocando reações desesperadas:
“Esta messagem foi ouvida com grande door e lastima, e a rreposta dada com taaes rrazzões e planto que nom aviia homem que os ouvisse que d'elles nom ouvesse piedade. Os braados e choro era muito...”

Quanto ao choro em virtude de emoções, devemos dizer que era bastante comum e que não era preciso muito para que as pessoas chegassem a esse ponto. Bastava um bom sermão para que o pranto aflorasse e desse lugar às lágrimas, que jorravam amplamente. Huizinga já nos tem alertado para isso quando diz que os sermões do dominicano Vicente Ferrer dificilmente deixavam de levar os seus ouvintes até às lágrimas e às vezes o próprio orador chorava junto com a multidão que se reunia para ouvi-lo, tendo, inclusive, que interromper a prédica até cessarem os soluços. Não ocorreu de forma diferente quando Frei Pedro, da ordem de São Francisco, em Agosto de 1385, no sermão da missa em ação de graças pela vitória de Aljubarrota, levou os participantes às lágrimas e aos soluços.
O choro ocorria também em virtude das derrotas. Chorou o rei castelhano após ter perdido a batalha de Aljubarrota, como já tivemos oportunidade de mencionar em outras partes. Chorou o povo de Castela ao ouvir as notícias do fracasso. Chorou o povo de Lisboa ao saber que a esquadra de D. Fernando havia sido desbaratada pelos castelhanos. Chorava-se nessas oportunidades porque a derrota em si é triste pelo amor próprio ferido, mas chorava-se principalmente por trazerem como principal conseqüência a morte das pessoas, fossem amigos, parentes ou vassalos fiéis. Aliás, é em virtude da morte que as pessoas mais choravam.
Quando Dona Maria foi morta pelo Infante D. João, “foi a casa logo chea de braados e choros” e o próprio assassino, passados alguns dias após o crime “se apartava a chorar amehude, fazendo planto por sua morte”. Diante da morte as próprias vítimas de eventuais infortúnios choravam, como D. Fernando que, diante da morte chorou, “rrogando a Deus que lhe perdoasse”. E, às vezes, se crermos em Lopes, precisava-se chorar diante da morte mesmo que não houvesse nenhum sentimento em relação ao morto, como a rainha Dona Leonor quando lhe morreu o marido: “e sse novamente chegavom alguus, posto adeparte todo fingimento, fazia seu planto com elles, mostrando-lhe a horphaindade do marido que perdera, com salluços e grandes lagrimas”.
Finalmente, no que tange ao choro pela morte, para que não imaginemos que o homem medieval fosse insensível às mortes dos companheiros de armas, tomemos mais dois exemplos. Após Aljubarrota, D. João I fez com que um prisioneiro percorresse por algum tempo o campo de batalha junto de si, para que reconhecesse os mortos dentre os castelhanos e esse moço, a quem Lopes não nomeia, quando encontrava algum conhecido descia de sua cavalgadura e “fazia pranto sobrelles”. O segundo exemplo diz respeito à morte de um português chamado Rui Mendes e é muito significativo por envolver lágrimas do próprio D. João I, sobre o qual, ao longo das crônicas de Lopes, delineia-se uma imagem de personalidade muito forte. Além disso, embora seja fora de nosso propósito, por estarmos falando sobre o choro, a circunstância em que se deu a morte de Rui Mendes requer que nos demoremos um pouco mais sobre ela pois envolve envenenamento, coisa muito pouco comum no período e também uma receita da época para esses casos. Em 1387, durante a tomada de uma localidade denominada Vilalobos, Rui Mendes foi levemente ferido no ombro. Coisa dada como de tão pouca importância que ele nem se preocupou em arrancar de imediato o uiratom que lhe ficou dependurado. Somente ao entrar em sua tenda e ter-se desarmado é que disse aos presentes que sentia que estava “ferido dherua”, pois ouvira falar que os feridos por setas envenenadas sentiam formigamento nos lábios e que os dele pareciam ter todas as formigas do mundo. D. João I sugeriu-lhe que tomasse urina, um bom remédio para essas coisas; o monarca inclusive chegou a ingerir um pouco, no intuito de induzir o companheiro e amigo que insistia em não beber de forma alguma, como de fato acabou não fazendo. Além da receita, o rei procurava animar o enfermo com suas duas ou três visitas diárias, mas ao terceiro dia, Rui Mendes disse que agradecia muito às visitas reais mas que, ao invés de sentir-se reconfortado, tinha-as tão em conta como se partissem de um homem a quem não quisesse bem:
“El-Rey, como ouuyo esto, voltou as costas e sayo da temda com os olhos nadando em lágrimas, dizemdo aos outros como tinha a maao sinal sa vida por aquello que lhe disera. E logo esse dia fez seu acabamento; de cuja morte el-Rey e o Duque e todollos do areal tomarom gram nojo e tristeza, por seer tam boom caualleiro em força e ardimento, e morer assy de ligeira cousa per tam desauentuirado cajom.”
Pelo que expusemos, quer nos parecer, a título de conclusão sobre o tema, que devemos reforçar a idéia de que o choro, no período em que estamos estudando, não se constituía em privilégio de nenhuma categoria social e que se manifestava de formas diversas, desde o carpimento até a simples lágrima mal disfarçada pela emoção forte e que, portanto, o homem medieval português, também no que concerne à dor, nem sempre manifestava-se de forma grotesca e arrebatada.
Quanto ao riso, queremos dizer inicialmente que ele também, a exemplo do choro que às vezes não demonstrava a tristeza que lhe é inerente, nem sempre manifestava uma alegria, um contentamento do indivíduo. São raras, aliás, as oportunidades em que o riso aparece mencionado nas crônicas de Lopes, como ato de alegria. Na maioria das vezes aparece sob a forma de escárnio; noutras surge em decorrência de brincadeiras, piadas ou travessuras; aparece também como sinal de consentimento ou como instrumento para tirar as pessoas de situações embaraçosas. Vejamos primeiro o riso como manifestação de alegria, que deveria ser o seu verdadeiro papel, para depois, na seqüência, vermos cada uma das formas anunciadas.
No início da “Revolução de Avis”, os moradores de Lisboa aclamavam o Mestre pelas ruas e essas manifestações por certo lhe proporcionavam alguma alegria, pois pelo que nos conta Lopes ele “ouvia estas cousas, e filhavasse a ssorrir, louvamdo Deos muito em seu coraçom, que tall desejo poinha no poboo comtra elle”. Em 1385, quando a situação dos partidários do Mestre de Avis era crítica, pois a fome grassava o acampamento, foi motivo de grande alegria o fato de terem encontrado muito gado quando passavam nas proximidades de Santarém. Nessa oportunidade, estando o Condestável Nuno Álvares Pereira com sua mesa posta para a refeição que constava de cinco pães, vinho e carne, aproximaram-se cinco cavaleiros ingleses que lhe pediram para comer com ele, pois estavam, segundo diziam, a morrer de fome. O Conde, sempre solícito, mandou que sentassem; eles entretanto permaneceram em pé, beberam do vinho e comeram todos os pães. “ficou o Conde sem pam, e nom comeo aquella hora senam carne sem elle, com grande rjso e sabor”.
Conforme vimos acima, o riso solto, gostoso, descontraído, praticamente inexiste nas crônicas de Lopes. Foi preciso forçar um pouco o entendimento dos fatos para admitirmos o riso em virtude de algum prazer ou alegria. Já o riso de escárnio é mais comum. Temos inclusive um exemplo em que o povo comum riu do próprio rei. Trata-se de D. Fernando que, tendo sido muito criticado por João Sanches em virtude de não ter enfrentado D. Henrique quando de sua guerra contra Castela, acabou chamando-o pejorativamente de filho de um azemel. João Sanches magoou-se com isso e quando teve oportunidade de ver o rei nas ruas, dirigiu-lhe a palavra dizendo:
“'Senhor, a mim disserom que vós dizis que eu som filho de huum azemell de vosso padre: em verdade, se o ell foi em alguu tempo eu nom ho sei, e que o fosse, foy-o de huu mui nobre rrei: mas porém sei eu tanto que sse vós teverees mill azemees taaes como eu e de tall voontade, que vos nom passara a vós el-rrei dom Henrique per ante a poorta, como passou, nem levara a vós tall honrra'. El-rrei callou e nom rrespondeo aaquello, e os outros disserom a Joham Sanchez que nom curasse d'aquellas rrazões, e rriiam-sse do que contra el-rrei dizia em modo d’escarnho.”
O acontecimento, embora inusitado, não merecerá de nossa parte maiores comentários, pelo que não analisaremos nem a ousadia de João Sanches que, em última análise, atribuía ao rei a pecha de covarde, nem o ânimo fraco de D. Fernando, que fingiu não escutar a ofensa, a fim de não fugirmos de nosso objetivo. Damo-nos, conseqüentemente, por satisfeitos se tivermos mostrado que o povo escarnecia os seus soberanos com uma arma que, apesar de não ser contundente, feria. Da mesma forma, o rei algumas vezes usava o riso para escarnecer os seus. Em uma oportunidade o rei D. Fernando reuniu o seu conselho para perguntar-lhe qual a forma mais adequada para que ele movesse guerra a Castela. Quando o Conselho respondeu que não recomendava a guerra, o rei
“...filhou-sse de sorriir e disse contra o conde: 'Parece-me, conde, que vós outros nom aprendestes bem a maneira como vos eu esto disse: ca eu nom vos pedia consselho se era bem d'aver guerra ou nom, ca eu quero-a aver em toda guisa, (...) demandava-vos consselho de que geito a poderia melhor fazer a mais a meu salvo.”
O riso de escárnio era muito comum naquela época, mas para não nos tornarmos muito cansativos limitaremos os exemplos. Dona Leonor Teles, quando regente, pôs-se a “sorriir per modo descarnho” quando o Mestre de Avis lhe propôs que reunisse as forças portuguesas para fazer frente a um iminente perigo de invasão castelhana. O Conde João Afonso, irmão da rainha Leonor, “começou de sorrir” quando recebeu o recado comunicando que Martim Afonso entregara o castelo da cidade de Lisboa ao Mestre no início da “Revolução”, por achar que o fizera por vontade de passar-se para o lado de D. João. Nuno Álvares Pereira “começou de rriir” quando viu que as suas propostas não eram aceitas no Conselho do Mestre de Avis, pois sabia que por iniciativa de Rui Pereira, Álvaro Vasques e João das Regras, isso aconteceria. Os homens de Gonçalo Vasques, para tornarem bem clara a intenção de que pretendiam seguir o partido do Mestre de Avis, recusaram-se a receber soldo proveniente do rei castelhano. Posto o dinheiro sobre uma mesa para que pegassem, como era costume, “nenhuu foi que os quisesse rreçeber, mas tomavom os floriins na maão, e começavom de rriir delles, e tornavõnos a seu logar”. Também de escárnio riu o rei castelhano quando Vasco Rodrigues beijou as mãos da rainha Leonor, sua sogra. E também Nuno Álvares Pereira riu quando o rei de Castela, por intermédio de João Rodrigues de Castanheda lhe mandou dizer que se passasse para o seu lado. Finalmente mencionaremos que D. João I tinha também a sua maneira de sorrir por escárnio e para tanto tomemos, por exemplo, a embaixada feita em 1407 por ordem da rainha castelhana, Dona Catarina, para tratar as pazes entre os dois reinos. Depois de ouvir algumas condições impostas pelos castelhanos, que nem interessam mencionar aqui, mas com as quais D. João I não concordava, “huum pouco como sorrimdo respomdeo entam”.
Como se vê o riso de zombaria era sempre precedido de uma resposta a uma proposta ou um ato descabido e não nos parece temerário afirmar que o seu uso era corriqueiro. Mas passemos a ver uma outra instância que provocava o riso: as brincadeiras, piadas ou travessuras que se faziam na época. Tomemos, a exemplo do que fizemos acima, alguns exemplos mais significativos, precavendo-nos antecipadamente para a eventual falta de graça que hoje venham a ter.
Quando o acordo de paz entre Castela e Portugal foi levado a Elvas, para que o rei castelhano, D. João I o assinasse, este pediu que fosse lido e, após a leitura, disse que não o assinaria porque havia uma cláusula que o obrigava a ceder algumas naus para transportar os ingleses de volta. O rei, ao ouvir esta cláusula, negava-se a assinar o acordo alegando que jamais daria suas naus para transportar seus inimigos e, ainda mais, sem frete. Seus conselheiros, na presença dos embaixadores portugueses, diziam para que assinasse e ele insistia em não aceitar aquela imposição. Foi assim a teima até que o Mestre de Santiago, brincando, tomou a mão do rei como que para fazê-lo assinar à força e disse que pagaria as despesas das naus se isso fosse preciso para contribuir com a paz. Quando os embaixadores portugueses levaram o acordo devidamente assinado a D. Fernando e lhes contaram o que havia ocorrido, o rei português pôs-se a rir, dizendo que tudo aquilo havia sido uma encenação, porque as pazes não tinham sido muito favoráveis aos castelhanos.
Um pouco mais engraçada, com motivos reais para o riso, é a história em que Afonso Henrique convidou João Rodrigues para ir espionar o arraial castelhano. Saíram ambos cavalgados, o primeiro em uma mula e o segundo em um cavalo. Enquanto olhavam de longe o local, Afonso Henrique pediu o cavalo emprestado a João Rodrigues, alegando que iria conversar com os seus parentes castelhanos e que se sentiria mais seguro naquele animal caso houvesse algum contratempo. Tão logo montou disse então: “Irmaão, quedate com Deos, que eu querome hir pera meus paretes” e arrancou velozmente deixando o companheiro sem ação. Envergonhado, João Rodrigues contou toda a história ao Mestre de Avis que não tomou nenhuma outra atitude senão rir.
Na maior parte dos outros exemplos de que dispomos nas crônicas de Lopes, sobre o riso motivado por brincadeiras ou piadas, notamos que eles se devem á presença de espírito dos portugueses daquela época. No cerco de Torres Vedras por exemplo, em 1384, quando
“começarom os da villa daver mimgua dagua de duas çisternas que tiinham demtro, e isso meesmo de carnes; e o Meestre nom sabemdo disto parte, mamdoulhe Joham Duque huu dia em dous baçios, huu vergonhoso presemte, comvem a saber: hea natura dasno cozida com duas laramjas; e com ella hua troba, cuja comclusom era, que das carnes nom avia tall bocado como aquelle que lhe emviava; mas porem que lhe pedia por merçee, que lhe mamdasse algua carne fresca, que dias avia que era del desejoso: ca ell nom era em culpa de lhe deffemder o logar, pois lhe seu senhor tall emcarrego leixara.
“O Mestre começou de rriir, e mandoulhe dar carnes quamto podesse avomdar huu dia...”
Quem não riria ao receber tão singular presente? É verdade que Lopes deve ter inserido esses casos anedóticos em suas crônicas para tornar ainda mais agradável a sua leitura, mas com certeza selecionou alguns dentre muitos que o bom humor português dessa época produziu. Mesmo nas situações mais dramáticas havia espaço para a pilhéria. Uma delas deu-se quando da tomada da localidade de Ponte de Lima, em 1385, em que D. João I já havia conquistado toda a vila e todas as torres nela existentes, exceto uma, a mais alta, onde se postaram Lopo Gomes com mais trinta e seis homens. Como a resistência fosse impossível e os homens de D. João já estivessem se movimentando com o objetivo de atear fogo à porta, Lopo procurava negociar uma saída honrosa. Para tal mandou descer da torre, dentro de um cesto, dois negociadores, dentre eles Gonçalo Lopes, que propunham que o rei de Castela fosse avisado da situação em que estavam e que, se não o socorresse, entregaria o local, desde que garantida a integridade dos seus companheiros bem como não lhes tirassem nenhum bem. O rei, evidentemente, não aceitou tal proposta e exigia a retirada incondicional dos ocupantes da torre. Enquanto conversavam, um escudeiro entabulou um diálogo com Gonçalo Lopes, onde reside a graça e aparece o riso, por isso vamos reproduzi-lo. Inicialmente o escudeiro perguntou
“se auya hij amtrelles que se quisesse matar huum por huum ou dous por dous sobre tall temçom qual tinham.
E quaaes som esses dous? disse ell.
Somos disse ho outro, eu e este escudeiro que aquy estaa. E el preguntou como auyam nome.
A mym chamam, disse el, Joham Giull Sapo, e a este Gomçallo Aranha.
Aa varom! disse Gomçallo Lopez, E quall seria aquell tam atreuudo que se ousasse de matar com duas taaes peçonhas? Quanto eu nom cujdo seer huum delles! E em rjndo todos desto, disse el-Rey contra Gonçallo Lopez: Tornem-uos ja a cima, pois tam bem querees prouar; ca nom auees vos ca de ficar fora.”
Ato seguinte, a torre foi atacada por todos os lados e com todos os meios disponíveis, e os seus ocupantes, meio chamuscados em virtude de ter se incendiado o local onde guardavam toucinho, renderam-se. A rendição em si por certo constituiu-se em uma cena bem engraçada; todavia ainda restava presença de espírito para Gonçalo Lopes promover mais uma:
“A, (sic) Gomçallo Lopez, [disse um escudeiro] que mal comselhastes Lopo Gomez de se nom vijr a merçee del-Rey meu senhor, e trabalhar de se defemder del!
E elle respomdeo, dizemdo: E quem sooes vos que me jsso dizees?
A mym chamam Lamçarote, dise el.
O do Lago ou quall? disse ho outro.
Mas seruidor del Rey meu senhor disse o escudeiro.
Se uos sooes Lamçarote do Lago, eu som Quea o deribado.”
Ah! que bom seria se dentro do contexto da guerra medieval apenas essas brincadeiras fossem verdadeiras. Mas não, a crueldade se fazia sentir nas mortes e nas cicatrizes que as pessoas levavam consigo para o resto da vida. E quem sabe não era em virtude desse aspecto que as pessoas procuravam brincar? Quem sabe não procuravam disfarçar o medo que a guerra lhes proporcionava? Ou talvez se auto-sugestionarem para o enfrentamento dos perigos? Por certo havia de tudo isso um pouco. Quando em 1387 Rui Mendes sofreu um ferimento “e coria-lhe o sangue per seu aluo braço”, ele nem fazia conta, e quando chegou perto do rei D. João I, disse-lhe que aquilo não era nada. E, levantando a lança com o braço ferido, disse: “A lla fee! Eu som Rodrigo, que tam bem las fago como las digo”. Evidentemente que o rei e os presentes “rirom daquesto”.
Outra face do riso era aquela que na ausência de quaisquer palavras exprimia o consentimento e às vezes a delicadeza para com as pessoas. Quando o Mestre de Avis, após ter matado o Andeiro, decidiu-se mudar para a Inglaterra, as pessoas procuravam demovê-lo de tal idéia
“E seguindoo as gemtes com gramde prazer, huus lhe travavam da rredea da besta, outros das falldras da vestidura; e braadando todos deziam altas vozes, que os nom quisesse desemparar, mas ficasse no rregno por senhor e regedor prometemdolhe cada huum das rriquezas e averes que tiinham, offereçemdo os corpos aa morte por seu serviço; e elle olhavoos rriindo do que deziam...”
Cansado, após Aljubarrota, descansava D. João I quando chegou à sua frente Antão Vasques, envolvido em uma bandeira de Castela e sem que houvesse qualquer tipo de música pôs-se a dançar o quanto quis e depois entregou a bandeira ao rei, como troféu de guerra. “El-Rey sorrijndo, mando(u)-a guardar, e aas pallauras nom respondeo nada”.
Finalmente, queremos encerrar esse assunto demonstrando que o riso muitas vezes servia para tirar as pessoas de situações embaraçosas. Quando em junho de 1386 foi combatida a localidade de Coira, D. João I não ficou muito satisfeito com os seus homens, como vimos sob o título “Lopes um historiador” e, na tenda, ao lado de muitos deles teria dito: “Gram mjngua nos fezerom oge este dia aquy os boons caualleiros da Tauolla Redomda, ca çertamente se elles aquy forom, nos tomaramos este logar”. Tais palavras foram tomadas como um insulto por Meem Rodrigues de Vasconcelos que respondeu:
“Senhor, nom fezerom aquy myngua os caualleiros da Tauolla Redomda (...) Mas fez-nos a nos aquy gram mynguoa o boom Rey Artur, senhor delles, que conheçia os boons seruidores”
D. João I, percebendo que os seus companheiros de armas haviam tomado aquilo que dissera por injúria, procurou consertar as coisas dizendo concordar que ele não devia ter excluído o rei Artur. “Entom lamçando a feito a risso daquesto e doutras cousas, leixarom tal razoado.”
Pelo visto o riso também não era privilégio de ninguém. Riam ricos e pobres pelos mais variados motivos, riam juntos, riam escarnecendo uns dos outros, riam para descontrair. Enfim, riam porque o riso é próprio da natureza humana e por maiores que sejam as agruras sempre haverá o riso onde houver o homem. Da mesma forma, cremos, ocorre com os demais sentimentos humanos tratados neste capítulo. Entretanto, constatamos que tratar historicamente os sentimentos é tarefa muito complexa, pois eles se manifestam de acordo com múltiplas variáveis que escaparam à nossa análise. Nossa preocupação maior, em vista disso, centrou-se em ancorá-los no imaginário da época, o que nos levou a constatar que a Igreja foi largamente responsável pelo comportamento medieval português. Não é à toa que pudemos verificar uma mudança significativa no modo de proceder de D. Pedro, D. Fernando e D. João I em relação à família, e da sociedade em geral frente ao medo, ao ódio e, inclusive, em relação à manifestação de dor frente à morte.