CAPÍTULO IV

O CASAMENTO E AS SUAS MODALIDADES MARGINAIS

1. CASAMENTO DE BENÇÃO

2. CASAMENTO CLANDESTINO
CASAMENTO DE PÚBLICA FAMA
CASAMENTO DE JURAS OU FURTO

3. ADULTÉRIO E CONCUBINATO
ADÚLTEROS E CONCUBINOS REAIS
ADULTÉRIO E CONCUBINATO ALÉM DA CASA REAL

4. A PROSTITUIÇÃO


CAPÍTULO IV

O CASAMENTO E AS SUAS MODALIDADES MARGINAIS

No período abrangido pelas crônicas de Fernão Lopes a Igreja, como intermediadora do Sagrado, com a contribuição efetiva do Estado, incrementava o processo de institucionalização do casamento; procurava impor à sociedade o “casamento de benção” ? ad benedictionem ? transformando a união conjugal em um Sacramento, ou seja, num ato religioso de instituição divina para a salvação da alma. A vontade da Igreja, entretanto, não foi implementada com facilidade, pois vigoravam na época o “casamento de pública fama” — maridos conhoçudos — e o “casamento a furto ou de juras”, além de outras formas de situações maritais como o adultério, o concubinato e a prostituição. A Igreja, tendo a escudá-la o preceito da Lei Mosaica do “não cobiçarás a mulher do próximo” e na ausência de um Estado forte que se importasse com a regulamentação das uniões conjugais, usando de seu inegável prestígio, foi, aos poucos, impondo à sociedade medieval o conceito de que para ser válido e puro, o casamento deveria ser feito por ela, publicamente. Admitindo inicialmente o pacto romano, foi, paulatinamente, impondo a sua doutrina, consolidada no Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563.
Em Lopes, encontramos todas as formas de casamento supramencionadas, o que nos enseja a oportunidade de ilustrar cada uma delas.

1. CASAMENTO DE BÊNÇÃO

Iniciaremos as ilustrações dos vários tipos de casamento que encontramos em Lopes pelo “Casamento de bênção”, não porque ele se constitua na forma mais antiga, mas porque, sendo ele o que se tornou “oficial”, nos servirá de parâmetro para mostrarmos, posteriormente, com muito mais clareza, os enlaces tidos como contravencionais. Mas antes de iniciarmos o assunto convém lembrar que a esmagadora maioria dos exemplos sairão da nobreza, pelo fato de Lopes ser um cronista primordialmente político que revestia os acordos matrimoniais da aura de “negócios de Estado”. Um procedimento normal da parte de qualquer cronista da época e não se limitava somente ao caso dos casamentos, em qualquer setor, os cronistas privilegiavam as atividades da nobreza. No caso do casamento de bênção, aliás, há que se considerar o fato dele ter sido introduzido inicialmente entre os membros da nobreza e, posteriormente, vulgarizado.
Reis e nobres, de forma geral, estimulavam a realização dos casamentos de bênção entre a população da maneira que lhes estivesse ao alcance, como veremos adiante, para, quem sabe, contribuir na melhoria dos costumes, pois que “nestes postumeyros tempos, em que os vycios todos entraram em lugar das vertudes”, nada melhor que os bons exemplos. Por isso, talvez, é que Lopes conte o seguinte episódio, envolvendo o Condestável, quando de suas incursões por Castela: um seu capitão, indo à frente, chegou em uma aldeia onde se realizava um casamento e prendeu o noivo, a noiva e vários convivas, levando-os a ele. Nuno Álvares que não gostou dessa atitude, soltou os prisioneiros e foi pessoalmente à Igreja da aldeia, fazendo com que a cerimônia tivesse sua seqüência normal, pois dizia ele, “asy conpria de se fazer, poys que o cassamento era huum dos sacramentos da Santa Igreja”.
Isso não significa que a preocupação com o casamento, no período estudado levasse em conta quaisquer sentimentos afetivos que eventualmente pudessem existir entre duas pessoas. Ao contrário, na maioria das vezes, os sentimentos eram relegados a planos secundários, pois primeiro os pais interessavam-se na continuidade da casa senhorial que dirigiam, os reis na manutenção da dinastia e nos compromissos políticos do reino. Enfim, a nobreza, de uma forma geral, privilegiava muito mais a manutenção do sistema vigente que qualquer espécie de sentimento. Essa submissão a critérios políticos adotada pelas famílias nobres não passava desapercebido aos olhos dos contemporâneos, muito menos aos de Lopes, que nos contemplou com uma reflexão exemplar ao comentar o casamento da filha de Nuno Álvares:
“Nam prouue aos antigos que os senhores e fidalgos de seus reinos cassasem seus filhos com as gramdes pessoas das terras a elles comarcaãs, sem sua licença e consentymento, raceamdo que de tal divido e liança, que se deste parestesco seguya, lhe podesse naçer em alguum tempo contrayra toruaçam a seus feytos. E per esta regra o muy avyssado e discreto Nunaluarez Pereira, Condestabre de Portugal, temdo huma filha, molher crescida, em boa hidade de pera cassar, chamada dona Breatriz, era requerido dalguuns senhores e fidalgos de Castella sobre feito de seu casamento; e elle, muyto homyldosso a seu Rey e Senhor, como tinha de costume, mostraua-lhe as cartas que lhe sobre esto enuyauaão, pidindo-lhe por merçee que pera tal feyto lhe desse lyçença (...) E asy se foy espaçamdo per tempo atee esta sazam em que, estamdo o Comdestabre com el-Rey em Leirea, e temdo isso mesmo el-Rey aquelle seu natural filho chamado Afonso, que ouuera ante que cassase, como contamos dos filhos que ouue, tratou-sse cassamento, e afirmou, deste dom Affomso, filho del-Rey, com a fylha do Comdestabre; de que o Comde foy muyto ledo.”
É sabido que o Condestável, pela sua lealdade e pela sua obstinada dedicação ao longo de toda a campanha que culminou com a elevação do Mestre de Avis a rei de Portugal, recebeu além de honrarias, muitas terras. Ficou sendo um senhor muito poderoso, o que nos leva a imaginar que possa ter manobrado para obter, no reino, o melhor partido possível para sua filha, como aliás se verificou, não sendo demais lembrar que do casamento da filha de Nuno Álvares com o filho bastardo de D. João I, D. Afonso, resultou a Casa de Bragança. Por outro lado, não podemos deixar de considerar a hipótese, esposada por Lopes, de que justamente por ser poderoso tinha obrigações para com seu reino, o que não lhe permitia descuidar de sua segurança. Senão, vejamos: seus irmãos haviam se colocado ao lado do rei castelhano e a sua mulher falecera, restando-lhe uma única filha. Casá-la com um castelhano significaria, portanto, introduzir novamente em território português a ameaça de uma intervenção estrangeira.
Preocupações dessa natureza eram comuns a toda a nobreza, daí a nossa afirmação de que usualmente os pais não tinham qualquer tipo de respeito para com os sentimentos dos jovens em idade para o casamento. Portanto, a boa convivência de um casal, ou era mera coincidência, ou advinha do condicionamento dos jovens, preparados desde tenra idade, para aceitar tal tipo de relacionamento. Não devemos ignorar que o fato das uniões efetivarem-se no interior de uma mesma categoria social, às vezes dentro de uma mesma família, favorecia o relacionamento do casal, pois os gostos e as preferências eram mais ou menos comuns. Se além de termos em conta o que acabamos de referir, tivermos também em mente que a Igreja difundiu largamente a idéia de que a função do casamento era a procriação e não qualquer tipo de prazer, fica mais fácil entendermos como alguns casamentos eram possíveis.
Por outro lado, havemos de evidenciar que o fato das pessoas virem a se conhecer no dia do matrimônio provocava muitas contrariedades. O tipo físico e psicológico poderia não agradar e, em decorrência tornavam-se comuns os casos de adultérios, concubinatos e as conseqüentes bastardias verificadas no período. Mas esse é outro assunto que veremos tão logo acabemos de mostrar como era o casamento de benção, que será o nosso paradigma.
O primeiro passo para a realização de um casamento quase sempre era dado nas oportunidades em que as casas reais ou mesmo as famílias da nobreza realizavam algum tratado ou acordo, a exemplo do firmado entre o duque de Lancaster e D. João I, quando aquele veio a Portugal, em 1386, a fim de auxiliar na defesa do reino contra os castelhanos. O acordo incluía o casamento da filha do duque inglês, Dona Filipa, com o rei português. Exemplos dessa natureza entretanto, nem sempre concretizados, são abundantes. Similarmente, quando morreu D. Afonso IV e ascendeu ao trono português D. Pedro I, este, como de costume, mandou embaixadas aos reinos vizinhos para manutenção da paz. Assim foi feito com Castela e um ano após esse evento, em 1358, o rei castelhano mandou seus embaixadores a Évora, onde estava D. Pedro, para ratificar as pazes então firmadas. Nessa oportunidade ficaram acertados três casamentos entre as casas reais portuguesa e castelhana:
“E foi mais ordenado entre eles que o infante D. Fernando, seu primogénito filho e herdeiro em Portugal, casasse com Dona Beatriz, filha do dito rei de Castela, e que se fizessem os esponsórios por seus procuradores, desde Fevereiro medado seguinte até ao postumeiro dia de Março que vinha. e as bodas logo postumeiro dia de Abril. [...] E mais: que casasse Dona Constança, filha do dito rei Dom Pedro de Castela, com o infante Dom João, e outra filha, que chamavam Dona Isabel, casasse com o infante Dom Dinis. E que os esponsórios e casamentos destes fossem acabados daí a seis anos.”
Em virtude do rei D. Pedro de Castela ter perdido o reino para seu meio-irmão, D. Henrique, nenhum desses três casamentos foi concretizado, mas de qualquer maneira fica demonstrada qual era a primeira atitude, o primeiro passo que se dava para a realização de um casamento. Existem muitos outros exemplos dessa natureza. O próprio D. Fernando, já feito rei, esperando encontrar no rei de Aragão um aliado contra D. Henrique de Castela, com quem fazia guerra, firmou casamento com a infanta aragonesa, Dona Leonor, tendo mesmo “esposado com ella per palavras de presente, na egreja de Sam Martinho”. Mas quando D. Fernando terminou a guerra com Castela, no acordo de paz foi incluído seu casamento com Dona Leonor, e o de sua irmã Dona Beatriz com D. Sancho, respectivamente filha e irmão de D. Henrique. Esses contratos de casamento de D. Fernando não foram concluídos, mas consumou-se o de sua irmã e posteriormente a própria filha desse rei, homônima da tia, foi dada em casamento ao rei D. João I, de Castela, em virtude do Tratado de Salvaterra de Magos (1383), que estabelecia a paz entre os dois reinos. A infanta Dona Leonor, de Aragão, cujo casamento com D. Fernando não se efetivou, mais uma vez, por conveniência da paz que D. Henrique tinha com seu pai, acabou esposando seu filho, o infante D. João e a outra Leonor, filha deste D. Henrique, rei de Castela, casou-se no mesmo dia que o irmão, com o infante D. Carlos, filho do rei de Navarra.
A habilidade de D. Henrique na formação de alianças através de casamentos de membros da família era incontestável. Os exemplos acima demonstram muito claramente como ele pretendia assegurar uma aliança ibérica, vivendo em paz com Portugal, Aragão e Navarra. O fato de não ter se concretizado o casamento de sua filha com o rei D. Fernando ? em virtude do casamento deste com Dona Leonor Teles, como veremos adiante ? não o desanimou, pois conseguiu o seu intento através do casamento de seu filho D. Afonso, com Dona Isabel, filha do rei D. Fernando, de Portugal. Pouco estava se importando o rei D. Henrique com os custos afetivos desses casamentos. Homem de espírito rude, mas convenhamos, honrador da palavra empenhada e respeitador das normas vigentes, realizou este último casamento praticamente à força. Com efeito, foi esta Dona Isabel recebida por D. Afonso em Santarém — “palavras de presente” — ainda muito nova e levada para Castela onde viveu na Corte até completar a idade suficiente para a formalização das bodas — “casamento de benção” — sem que o infante jamais lhe dirigisse a palavra, jamais lhe desse uma jóia qualquer, como era o costume. Ao contrário, sempre demonstrava claramente que qualquer aproximação com a esposa não fazia parte de suas intenções. E quando o rei ordenou que a recebesse, negou-se e, temeroso da própria vida, fugiu do reino, indo reclamar ao rei da França e ao papa de Avinhão das intenções do pai. Em vão, ao que parece. Enquanto isso, o pai, procedia de forma a obrigá-lo a voltar, usando todos os meios de pressão que possuía, como a perseguição aos companheiros do filho e a ameaça de deserção.
Subjugado à vontade do rei, D. Afonso voltou e casou-se com Dona Isabel em Burgos, numa solenidade pública. O arcebispo de Santiago perguntou as palavras que a Igreja já havia imposto ao uso, ou seja, se o infante “queria rreceber por sua molher dona Isabell que presente estava”, e ele apenas respondeu que sim após a insistência do pai, deixando muito claro aos presentes que não era a sua vontade. Estavam casados, cumpria-se um acordo e a Igreja impunha seu ritual. Mas D. Afonso jamais tocou em sua mulher. Durante os dois meses em que o rei ainda permaneceu em Burgos, todas as noites o infante dirigia-se ao quarto da esposa, mas, segundo Lopes, mesmo
“...jazendo ambos em h ua cama, husou el de todo o contrairo que a condessa rrazoadamente devia d'esperar aaquel tempo, privando el estonce assi seus sentidos que n nh u leixou husar de seu officio qual compria; ante lhe foram todos tam escasos que el nunca a abraçou nem beijou nem se chegou a ella pouco nem muito, nem a tocou com o pee nem com a maão, nem lhe fallou tam sol h ua fala...”
Depois que o rei partiu, D. Afonso abandonou a esposa e, após a morte do pai, conseguiu anular seu casamento, pois, como ensina Lopes:
“O nom onesto e forçoso poderio faz aas vezes, por comprir voontade, casamento d'alg uas pessoas em que muito condana sua conciencia, fazendo-lhes outorgar a taaes cousa contraira a seu desejo, quando h u no outro, rrecebendo-o per tall modo, livremente nunca conssente; assi que quanto a Deus nunca som casados, posto que ambos longamente vivam.”
Lopes não deixa bem clara a posição de Dona Isabel, embora mencione que ela, percebendo que estava sendo rejeitada, dissera ao rei e à rainha que também não lhe agradava casar-se com D. Afonso. Esse, por certo, não foi o único exemplo, talvez até com maior repercussão tenha sido a rejeição de Dona Branca, filha do duque de Bourbon, pelo rei D. Pedro, de Castela, que casou-se unicamente para honrar o pedido feito ao próprio rei da França, abandonando-a um dia após, deixando em grande “alvoroço” os senhores e fidalgos do reino e mandando assassiná-la posteriormente.
Bem sabemos que as referências tomadas a Lopes até então remetem também a outros tipos de análise — como o comportamento dos nubentes, a sexualidade, etc. — bem diferentes do nosso objetivo, o de mostrarmos apenas quais as formas de relações maritais na época, todavia falaremos sobre esses aspectos posteriormente, por ora limitemo-nos ao casamento por bênção tomando mais dois exemplos. Primeiro narraremos o desfecho do casamento de Dona Beatriz, filha do Condestável Nuno Álvares Pereira, com o filho bastardo de D. João I, que havíamos deixado em aberto, para depois transcrevermos literalmente uma bela narrativa de Lopes. Realizaram-se essas núpcias em meio a grandes festividades nas quais compareceram todos os senhores e pessoas notáveis do reino, não faltando “justas e torneos e muyto prazer de matinadas e outros jogos, asy da parte del-Rey como do Comdestabre”. Por outro lado, ao narrar o matrimônio da infanta Dona Beatriz, filha de D. Fernando de Portugal com D. João I, de Castela, Lopes nos legou uma boa idéia de como se processava uma cerimônia, valendo a pena transcrever suas próprias palavras, não obstante a extensão da citação:
“Quando veo ao domingo, que eram dezesete dias d'aquell mes, hordenou el-rrei como rrecebesse outra vez a iffante em presença da Egreja, fazendo-lhe suas beenções e officio sollenemente, como nos trautos era posto, e foi d'esta guisa. Aa porta da egreja cathedral estavom rrevestidos em capas, com bagoos e mitras, dom Pedro arcebispo de Sevilha e dom Affonsso bispo da Guarda e dom Martinho bispo de Lixboa e dom Joham bispo de Coimbra e dom Diego bispo d'Avilla e dom Joham bispo de Callaforra e dom frei Affonsso bispo de Coyra e dom Fernando bispo de Badalhouce, e com estes oito bispos muita outra creelezia assaz de bem corregidos; o altar era guarnido de nobres hornamentos e rrelliquias e toda a egreja apostada como compria. E estando assi todos prestes, chegou el-rrei em cima de h u cavallo branco, vestido mui rreallmente e h ua coroa d'ouro na cabeça muito guarnida de pedras; e tragiam quatro honrrados senhores h u pano d'ouro tendido em astas que cobria elle e o cavallo. A rrainha isso meesmo viinha logo junto em outro mui guarnido cavallo alvo come h ua pomba branca, e h u pano d'ouro tendido per cima; e levava-a d'h a parte h u rrei d'Armenia que hi chegara, que chamavom Leom quinto, e dom Joham meestre d'Avis em Portugal, irmaão d'el-rrei dom Fernando, e da outra dom Karllos iffante de Navarra, cunhado d'el-rrei e outro gram senhor de Castella. Alli eram presentes muitos condes e senhores, segundo podees entender que sse aaquella hora juntariam, e meestres e cavalleiros e outros muitos fidallgos cujos nomes mais rrepetidos nom compre de seer. Eram hji outrossi grandes senhoras e condessas e donas e donzellas e muita outra gente. Estonce o arcebispo de Sevilha lhe fez suas beenções aa porta da egreja e entrarom dentro, e disse missa, seendo em joelhos el-rrei e a rrainha ambos em h u rrico estrado; e acabado todo seu officio tornou-sse el-rrei e a rrainha como veherom pera as pousadas; e depois de comer, justarom e tornearom e lidarom touros; e el-rrei deu cavallos e panos d'ouro e de lãa e outras joyas aos senhores e fidallgos de Portugall; e todo aquell dia se despendeo em festas e cousas que a vodas pertenciam, d'h ua parte e da outra.”
Em suma, podemos dizer que os casamentos por bênção pressupunham o consentimento dos pais, o que, aliás, na maioria das vezes caracterizava-se como uma imposição; a dispensa da Igreja; o recebimento da noiva, pessoalmente ou através de embaixadores por palavras de presente; a bênção da Igreja em cerimônia pública, o que concretizava a união; e, finalmente, as festividades, de acordo com as condições financeiras da família.
2. CASAMENTO CLANDESTINO

Vimos que o casamento por bênção, aquele que a Igreja acabou impondo à sociedade medieval, nem sempre unia pessoas com o real desejo de se esposarem. Muitas vezes prevalecia a vontade dos pais ou dos grandes senhores, inclusive reis que, por interesses políticos, impunham casamentos sem quaisquer preocupações com os sentimentos das pessoas. Exemplificamos, inclusive, com o casamento de D. João, filho de D. Henrique de Castela e Dona Isabel, filha de D. Fernando de Portugal, que eram possíveis casos de rebeldia. Resta-nos, entretanto, a bem da verdade, deixarmos claro que nem todos os contemporâneos achavam correta essa forma de imposição. O próprio Lopes esclareceu muito bem sua posição a respeito, em primeiro lugar, colocando entre as reivindicações dos moradores de Lisboa, ao recém-eleito D. João I, o pedido de que não realizaria casamentos sem o consentimento dos interessados, a exemplo do que fizeram D. Fernando e Dona Leonor e, em segundo lugar, censurando D. João por casar várias moças e moços que vieram a se conhecer somente no dia em que ele quis casá-los.
Por outro lado, Lopes ao que tudo indica, estava de acordo com a forma de casamento imposta pela Igreja. Sua concepção nesse assunto, incluindo a união monogâmica e os princípios de fidelidade conjugal, podem ser resumidas na censura que fez aos reis adúlteros e aos elogios que teceu sobre o casamento de D. João I com Dona Filipa:
“Nom se pode dizer deste o que fealmente se repreende em alguuns reis, que como assy seia que nenhuum homeem adur he abastante pera huma molher, pero elles, leixamdo as suas e nom semdo de nenhuuma, pois lhe huuma nom avomda, emuorilhanse com outras em gramde perigo de suas almas e escamdollo do poboo. Mas o louuor deste em semelhamte feito he muyto de notar; porque tamto se absteue e castigou de tal viçio depois que tomou por parçeira a muy splandeçente per linhagem e costumes Rainha dona Filipa, posto que gram casa de fremosas molheres trouuesse quamto liuremente em semelhante feito podera cumprir seu desejo. Homrou muyto e amou sua molher dhonesto e saão amor...”
Em função dessa sintonia de Lopes com o casamento por bênção, podemos inferir que as demais formas eram consideradas contravencionais, ou seja, casamento clandestino. O fato de ser um casamento de “pública fama” ou um “casamento por juras ou furto” pouca diferença fazia. Por sinal é mesmo difícil estabelecer a diferença entre esses dois tipos de casamentos, porque o casamento de pública fama podia ser por furto ou juras. Ao que tudo indica a diferença residia no fato do casamento por juras ou furto ser secreto, e o de pública fama, como o nome diz e é notório, serem “maridos conhoçudos”.
CASAMENTO DE PÚBLICA FAMA

De uma maneira geral, para as casas reais e as famílias nobres, quanto mais divulgação fosse dada ao casamento de seus membros, melhor, pois isso representava um respaldo aos compromissos políticos que na maioria das vezes um casamento trazia a essas categorias sociais. Assim é que, como vimos, tais casamentos eram públicos, abençoados pela Igreja e comemorados com grandes festividades.
Os casamentos de pública fama, praticados pelas camadas populares da sociedade, ao contrário, não tinham divulgação, eram particulares, sem festividades. Chamavam-se de “pública fama”, não por terem sido públicos ou merecido qualquer publicidade, mas justamente pelo fato de somente serem reconhecidos através de testemunhos de parentes ou vizinhos. Sua quantificação é muito dificil, pois em Lopes, encontramos um único exemplo de casamento dessa natureza, por condições muito especiais, como veremos. Trata-se do casamento de uma tal de Maria Rousada, cujo marido D. Pedro mandou matar em virtude de seu nome. Lopes nos narrou o caso da seguinte forma, não sem demonstrar uma certa surpresa pelo rigor da justiça aplicada pelo rei justiceiro:
“Que diremos de Maria Roussada, mulher casada com seu marido que dormira com ela por força, a que então chamavam roussar, por a qual cousa ele merecia morte?
E tendo já dela filhos e filhas, viviam ambos em grande benquerença. E ouvindo-a el-rei chamar por tal nome, perguntou porque lho chamavam; e soube da guisa como tudo fora e que se avieram que casassem ambos por tal feito não vir mais à praça. El-rei, por cumprir justiça, mandou-o enforcar; e, atrás dele, iam a mulher e os filhos carpindo.”
Ao que tudo indica, em pleno transcurso do século XIV, era ainda punido como crime o ato de violar uma mulher, mesmo que houvesse reparação através do casamento. Apesar de que Viterbo nos ensinou, mencionando os forais de Mós de 1162, de Santa Cruz de Vilariça, de 1225 e o de Aguiar da Beira, de 1258, que eram imunes a tal crime os que se apresentassem aos seus respectivos senhorios. Rousar mulher casada ou sair de sua terra com mulher roussada é que significava culpa. Portanto, levando em consideração de um lado a punição em si e, de outro, a prescrição dos forais, fica-nos a nítida impressão de que a aplicação da justiça de D. Pedro foi demasiadamente severa para o caso, uma vez que o casal vivia há anos maritalmente, como provam os filhos que possuíam. Devemos observar, todavia, que dentro das características modelares que Fernão Lopes atribui a D. Pedro I como símbolo de justiça cega, acima das particularidades de cada caso, essa dureza é que exatamente seduz o cronista. Ademais, por certo, os casos análogos eram muitos numa época em que o casamento por bênção, como já dissemos, não estava ainda completamente implantado.
Não nos passou desapercebido, concomitantemente, que a narração dessa condenação reflete o fato de Lopes ter interiorizado o ideário da Igreja e, talvez até mesmo de forma inconsciente, defendido sua posição moralizante. Mas, de qualquer forma, o que salta à vista é que a justiça secular nessa época, e nesse caso particularmente, agiu como uma mera executora da doutrina eclesiástica, contribuindo para tornar contravencional “o casamento de pública fama” e marginalizando, conseqüentemente, os chamados “maridos conhoçudos”.

CASAMENTO DE JURAS OU FURTO

Pelo que depreendemos das crônicas de Lopes a respeito das formas de casamento praticadas em Portugal, a Igreja tinha já mais ou menos consolidada a sua posição no final do século XIV, pois, embora ainda vigorasse o casamento de juras, já não era muito bem aceito pela sociedade. Prestava-se muitas vezes para encobertar ou justificar relações amorosas escusas, como as de D. Fernando com Dona Leonor Telles.
Leonor, casada com João Lourenço da Cunha, certa feita foi a Lisboa passar uns dias com a irmã, Dona Maria, que era dama de companhia da infanta Dona Beatriz, irmã de D. Fernando, filha de D. Pedro e Dona Inês de Castro. Nessa sua estada na Corte aconteceu que D. Fernando
“vio dona Lionor em sua casa, louçãa e aposta e de boom corpo, pero que a d'ante ouvesse bem conhecida, por entom mui aficadamente esguardou suas fremosas feiçoões e graça; entanto que leixada toda bem-querença e contentamento que d'outra molher poderia aver, d'esta se começou de namorar maravilhosamente; e ferido assi do amor d'ella, em que seu coraçom de todo era posto, de dia em dia se acrecentava mais sua chagua, nom descobrindo por m a n nh ua pessoa esta bem-querença tam gramde...”
D. Fernando já conhecia Leonor Teles; entretanto dessa feita a viu com outros olhos, com certeza olhos de rapaz que não conseguia frear os impulsos da libido e que tinha à sua disposição para satisfazê-lo, além da virilidade juvenil, uma coroa sobre a cabeça o que, por certo, lhe facilitava o cometimento de certos excessos. Não podendo fazer de Leonor Teles a sua “barregãa” e não tendo paciência para aguardar os trâmites legais para a dissolução do casamento anterior de sua amada “ante que el-rrei dormisse com ella, primeiro a rrecebeo por molher, presente sua irmãa e outros que esta cousa traziam callada”.
Mas, como estamos a demonstrar, a posição da Igreja já se fazia sentir. Tanto é que após algum tempo, estando de passagem pelo mosteiro de Leça, D. Fernando recebeu Dona Leonor “de praça”, quer dizer, publicamente, em dia previamente determinado e por palavras de presente. O texto que transcreveremos é, por si, esclarecedor:
“Amigos, bem sabees como a hordem do casamento he h u dos nobres sacramentos que Deus em este mundo hordenou pera nom soomente os rreis mas ainda os outros hom es viverem em estado de salvaçom, e os rreis averem per lidema linhagem quem depós elles soceda o rreino e rregimento rreal que lhe Deus deu [...] e oolhando outrossi como a dita dona Lionor he molher convinhavell pera elle [...] tem trautado com ella seu casamento, e porende quer rreceber de praça per pallavras de presente, como manda a Santa Egreja...”
O casamento era portanto um dos nobres sacramentos de Deus, usado inclusive para legitimar a sucessão dos reis, mas também para que todos os homens vivessem em estado de salvação. Ora, então que dizer do casamento anterior de Dona Leonor? E como ficava o pobre João Lourenço da Cunha, seu primeiro marido? O próprio Lopes nos elucida também essa questão, não sem colocar um sutil toque de ironia em sua narração:
“... e per consselho de todos, por fazerem prazer a el-rrei, aazarom como ella [Dona Leonor] buscasse caminho de seer quite de seu marido per aazo de cunhadia, que he ligeira d'achar antre os fidallgos, como quer que muitos afirmavom que Joham Lourenço ouvera despenssaçom do papa ante que com ella casasse; mas veendo que lhe nom compria aperfiar muito em tall feito, deu aa demanda logar que sse veencesse cedo, e foi-sse pera Castela por segurança de sua vida.”
Quer dizer, a Igreja, ao mesmo tempo em que impunha o casamento a toda sociedade, abençoando-o e transformando-o em um sacramento, tolerava que os reis e até mesmo membros da nobreza usassem esse cunhadio tão encontradiço para regularizar situações de acordo com suas vontades.
Voltando aos casamentos de juras, mas continuando no seio da família da rainha, tomaremos como outro exemplo o caso de sua irmã, Dona Maria, aproveitando o ensejo para mostrar como se dava a aproximação de um casal.
D. João, meio-irmão de D. Fernando, da parte do pai — filho de D. Pedro com Dona Inês de Castro — era um desses rapazes folgazões que perambulavam pelo reino em busca de aventuras ou, quem sabe, de um bom casamento. Em suas andanças acontecia de ver, com certa freqüência, Dona Maria, à quem “começou de a amar muy de voontade”. Apaixonado, o segundo passo da rapaz foi enviar-lhe, secretamente, um emissário que lhe declarasse esse amor. “Mas a cumprir seu desejo como el queria lhe eram muitas cousas contrairas, porque a dona era muito sesuda. e corda e discreta e bem guardada, e enviou-sse-lhe defender com boas e mesuradas rrazoões”. Como, entretanto, o infante mantivesse o assédio, Dona Maria mandou dizer-lhe que se de fato a amava, ela designaria um embaixador para tratar de casamento. O escolhido foi Álvaro Pereira, um amigo comum, que levou a cabo as convenções estabelecidas para a união de um casal.
Convém lembrar que Dona Maria era viúva e rica, motivos suficientemente fortes para que suas precauções fossem redobradas. Não é à toa que Lopes enfatizou ser ela uma dona “sesuda e corda e discreta”. Somente o fato de ser mulher já era uma razão para que tivesse cuidado especial com a imagem, pois, afinal, não se deve perder de vista a visão maniqueísta que se tinha da mulher medieval, considerada pura ou puta. Que dizer então de uma viúva rica? Quantos segundogênitos sem eira nem beira, não teriam interesse em casos como esse?
Mas o enlace de D. João com Dona Maria não aconteceu com a mediação de Álvaro Pereira. Ao menos pelo que se lê em Lopes, fica-nos a impressão que, pelo lado do infante enamorado, faltava paciência para aguardar um certo lapso de tempo para a realização do casamento formal e, do lado de Dona Maria, não faltava ardileza para passar por recatada ao mesmo tempo em que consumava os desejos que, nessa altura, parece-nos, eram mútuos. Assim é que combinou que o infante a fosse visitar numa noite, escondidamente,
“...e aalem de ella seer asaz de fremosa e pera cobiiçar, ella corregeo si e sua camara assi nobremente pera tall tempo que a n nhum homem seeria ligeiro postar com seu siso que sse partisse d'alli cedo. E aas horas que o iffante veeo, foi rrecebido per hua molher de sua casa e levado escusamente honde dona Maria estava: e el, quando entrou, vio ella e seus corregimentos assi desposto pera o rreceber por ospede que parecia que cada hu corregimento o rrogava que ficasse alli aquella noite: a qual cousa emadeo aaquella hora dobrado aazo em sua bem-querença e amor.”
Nesse clima é que Dona Maria, segundo Lopes, repreendeu o infante, dizendo-lhe que além de descender de boa linhagem era irmã da rainha, o que significa que havia entrado para a linhagem real, e por conseguinte não merecia ser abordada da maneira como ele o fez; que somente o chamara para desabafar, o que não conseguira fazer através de recados. Era esse, portanto, o seu desagravo; o infante podia agora tomar o seu caminho, ir-se por onde viera.
Ora! o infante, “cercado de querer e voontade d'aquel desejo que todo siso e estado poõe adeparte”, concordava com tudo, aceitava tudo, até mesmo o casamento que lhe foi proposto pela dama que o acompanhara. Mais uma vez a força da libido falava mais alto que o estágio civilizatório daquele tempo. E o infante caía numa verdadeira armadilha. Imediatamente foram chamadas algumas testemunhas diante das quais D. João recebeu Dona Maria por esposa e, naquela mesma noite, consumou-se o casamento, ficando “satisfazendo h u ao desejo do outro”.
O quanto “sesuda” fosse, Dona Maria Teles calculou mal as implicações políticas de sua união “a furto” com um infante da Casal Real, com probabilidades de herdar o trono, pela falta de filho homem de D. Fernando. Para ser aceito, tal casamento teria que ser negociado com o rei que se o aprovasse provavelmente imporia garantias suplementares para a sua filha ou para outros eventuais filhos que lhe nascessem do casamento com Dona Leonor Teles. Por isso o infante D. João não pretendia que seu casamento se tornasse público, e alegando que Dona Maria divulgava-o, e que o traia, matou-a cruelmente. Na verdade existiam sérias implicações políticas em relação a esse casamento. A rainha Dona Leonor, por não ter filho varão temia que em virtude da eventual morte de D. Fernando, o infante D. João o sucedesse e conseqüentemente a sua irmã se tornasse rainha e ela afastada do poder. Por essa razão teria feito chegar ao infante a manifestação de seu desejo de que se cassasse com sua filha, Dona Beatriz, dizendo que “...pois a Deus prazia de nom aver filho que herdasse o rreino depois da morte d'el-rei seu senhor, que ante queria a iffante sua filha veer casada com elle que com o duque de Benavente que era castellaão...”. Ora, o infante desejoso de poder, procurava, segundo Lopes, uma forma de se livrar do compromisso com Dona Maria e encontrou-a facilmente quando alguém, não se sabe bem quem, apresentou-lhe a tese de que “a poderia matar sem prasmo, porque era fama que dormia com outrem”. Induzido a matar Dona Maria o infante na verdade caiu em uma segunda armadilha, dessa feita armada pela rainha, pois na prática liquidou com as suas pretensões potenciais ao trono.
Um outro caso, narrado por Lopes, esse muito mais famoso, e que nos oferece a oportunidade de conhecer as formas de casamento da época é o de D. Pedro com Dona Inês de Castro. Nele, além da força da libido, encontramos elementos mais complicados, como alguns traços de alteração psicológica no comportamento do monarca, a preocupação reinante com referência ao processo sucessório e, ainda, a conivência da Igreja que, nesse caso, ignorou a existência de laços de compadrio entre os dois. Convém lembrar, de início, que, por paradoxal que possa parecer, trata-se do mesmo D. Pedro I que mandou matar o pobre marido de Maria Rousada, como vimos há pouco, por dormir com ela à força.
O episódio é conhecido. Quando Dona Constança casou-se com D. Pedro, veio-lhe como dama de companhia Inês de Castro, por quem o então infante Pedro apaixonou-se perdidamente, inclusive amasiando-se com ela. Com a morte da legítima esposa, os amores entre Dona Inês e D. Pedro tornaram-se públicos, motivando o rei Afonso IV a mandar matá-la, embora já possuísse filhos. Esse grave acontecimento provocou, de imediato, o início de uma guerra civil entre pai e filho, logo serenada e ambos postos em acordo. Depois de muito tempo, estando reinando já há quatro anos, D. Pedro resolveu anunciar que houvera casado com D. Inês. Estando numa localidade denominada Cantanhede, na presença da Corte,
“... fez el-rei chamar um tabelião e, presentes todos, jurou aos evangelhos por ele tangidos corporalmente que, sendo infante, vivendo ainda el-rei seu pai e estando ele em Bragança, podia haver uns sete anos pouco mais ou menos, não se acordando do dia e mês, que ele recebera por sua mulher lídima por palavras de presente como manda a Santa Igreja, Dona Inês de Castro...”
Passados três dias, dois homens testemunharam publicamente a realização do casamento de D. Pedro com Dona Inês. Um deles, Estevão Lobato, jurou ter presenciado o casamento; teve, portanto, uma participação apenas passiva; o outro, D. Gil, bispo da Guarda, jurou que quando ainda era deão, D. Pedro o
“...mandara chamar um dia à sua câmara, sendo Dona Inês presente, e que lhe dissera que a queria receber por sua mulher. E que logo sem mais detença o dito senhor pusera a mão nas mãos dele e isso mesmo a dita Dona Inês. E que os recebera ambos por palavras de presente como manda a Santa Igreja. E que os vira viver de comum até à morte de Dona Inês.”
A encenação foi diante da Corte e tanta gente se fazia presente que quando o Conde de Barcelos, D. João Afonso, foi ler toda a juntada, esperou que se fizesse silêncio. Fernão Lopes, embora não tenha emitido a sua opinião pessoal sobre a veracidade do acontecimento, não deixou de demonstrar que muitos dos presentes, principalmente os letrados, não acreditaram na história. O interesse principal de D. Pedro foi, evidentemente, o de amparar os filhos que tivera com Dona Inês, prevenindo-se inclusive sobre a sua sucessão, caso houvesse, como houve de fato, algo com D. Fernando, primogênito e legítimo filho do seu casamento com Dona Constança. Esse tipo de providência, aliás, não era inédito. D. Pedro de Castela, após mandar matar a rainha Dona Branca, viveu amasiado com Dona Maria de Padilha, mas somente após a sua morte é que, nas Cortes de Sevilha, declarou ter se casado com Dona Maria antes de casar-se com Dona Branca. Não faltaram ao rei quatro testemunhas que confirmaram toda a história. Ato seguinte, determinou que tomassem por rei, após a sua morte, a D. Afonso, filho casamento com Dona Maria.
Já que falamos em D. Pedro de Castela, ele mesmo nos ofereceu um outro exemplo, ainda mais significativo que o narrado acima, de como uma pessoa coroada podia cometer excessos com a conivência da Igreja, como estamos demonstrando: estando a rainha Dona Branca ainda viva e o rei vivendo em concubinato com Dona Maria Padilha, aconteceu de se enamorar por uma viúva, Joana de Castro. Não teve dúvidas em mandar pedi-la em casamento, o que, evidentemente, foi recusado uma vez que todos sabiam que era casado. O rei fez, então, com que dois bispos, o de Ávila e o de Salamanca, se pronunciassem favoráveis a esse casamento. Isso feito, D. Pedro e Dona Joana
“...foram recebidos na vila de Qualhar dentro da Igreja solenemente pelo bispo de Salamanca que os recebeu ambos. No outro dia partiu el-rei dali e nunca mais viu esta Dona Joana. E ela chamou-se sempre rainha, pero não prazia a el-rei disso.”
O que poderíamos acrescentar à analise que estamos procedendo é que alguns reis, abusando do poder que detinham e extrapolando todas as convenções a que estavam subordinados, produziram exemplos distonantes das normas matrimoniais que a Igreja vinha impondo. Membros do clero, como o bispo da Guarda, no caso de D. Pedro de Portugal, e os bispos de Ávila e de Salamanca, no caso do Pedro castelhano, coagidos por esses soberanos, temerosos de que lhes adviesse a morte em caso de negarem-se a cumprir os seus respectivos mandados, acabavam assumindo uma atitude submissa e conivente com essas contravenções. E não é de admirar que assim procedessem, pois, em caso contrário, a morte lhes seria coisa certa, dada a crueldade desses dois reis. D. Pedro, de Castela,
“...um verdadeiro tigre coroado, um monstro sanguinário que sempre sentia especial deleite em mandar matar [ e ] D. Pedro de Portugal, também cruel, embora com o colorido de justiceiro”
não contribuíram somente para colocar a Igreja em situação delicada, mas por certo também as famílias das mulheres pelas quais se enamoravam.
Em resumo, podemos dizer que o estágio civilizatório da Idade Média portuguesa, apesar dos esforços desenvolvidos pela Igreja, não foi suficientemente forte para conseguir subjugar a força da libido, especialmente se a sua manifestação ocorresse em pessoas com a cabeça coroada.

3. ADULTÉRIO E CONCUBINATO

Tanto o adultério como o concubinato eram comuns em todas as camadas sociais. Evitá-los era uma preocupação mais ou menos generalizada, pois constituía-se numa espécie de autoproteção da própria sociedade. A Igreja, entretanto, como vimos, teve um papel destacado na imposição do casamento monogâmico e, auxiliada pelo Estado, perseguiu com intensidade mais ou menos constante, ao longo do período que estamos estudando, os casos que fugiam aos princípios por ela estabelecidos. Claro que não podemos nos esquecer de que na Idade Média as pessoas eram tratadas desigualmente, de acordo com a posição que ocupavam; portanto, em alguns casos, não havia sequer punições e em outros eram muito variadas.
Face ao exposto, procuraremos agrupar os casos de adultério e concubinato de acordo com o nível social das pessoas que o praticaram, analisando-os tendo em vista a diversidade de circunstâncias em que aconteciam. Norteando-nos sempre pelas crônicas de Lopes, iniciaremos nossa análise pelas famílias reais, onde destacam-se os reis, passando pelo clero e, finalmente, abordando essa problemática no seio das camadas populares.

ADÚLTEROS E CONCUBINOS REAIS

O adultério e o concubinato eram tão comuns entre as famílias reais que não há praticamente um rei dentre os contemplados por Lopes em suas crônicas que não passasse por alguma experiência extraconjugal.
D. Pedro I de Portugal, o Justiceiro, que inclusive puniu severamente os que transgrediram as normas vigentes a respeito do casamento, paradoxalmente, teve ligações ilícitas com pelo menos duas mulheres. Casado com Dona Constança, relacionou-se fora do casamento com Dona Inês de Castro e com Teresa Lourenço. Inês foi, sem a menor sombra de dúvida, a grande paixão desse rei. Após a sua morte, tentou, como vimos, fazê-la rainha, atestando que havia se casado com ela. Procurava assim evitar problemas sucessórios. E de fato um problema dessa natureza ocorreu, mas o sucessor não foi o previsto pelo rei e sim o filho de Teresa Lourenço, D. João, cujo destino D. Pedro já definira nomeando-o Mestre da Ordem de Avis, o que o tornava sujeito ao voto de castidade. Se teve outras mulheres em sua vida, não o sabemos, pois temos por claro que Lopes não nos narrou sobre as suas amantes em virtude da importância do fato em si, mas pelas suas conseqüências, ou seja, pelos bastardos que nasceram dessas uniões e que, de uma forma ou de outra, acabaram sendo peças importantes no processo sucessório que se seguiu à morte de seu legítimo e primogênito filho, D. Fernando.
D. Pedro de Castela, que governou simultaneamente com o Pedro português, não lhe tinha apenas o nome em comum, teve também mais do que uma mulher. Ao que parece, pelo menos se desconsiderarmos que Lopes possa ter poupado o rei português, esse D. Pedro de Castela foi até mesmo mais voluptuoso:
“Este rei foi muito arredado das manhas e condições que aos bons reis cumpre de haver, cá dizem que foi muito luxurioso, de guisa que quaisquer mulheres que lhe bem pareciam, posto que filhas de algo e mulheres de cavaleiros fossem e isso mesmo donas de ordem ou doutro estado, que não guardava mais umas que outras.”
De qualquer forma, citadas nominalmente por Lopes, foram também três as suas mulheres. A legítima, através do cumprimento de todas as formalidades diplomáticas e inclusive através do casamento, foi a infeliz Dona Branca, com quem o marido não passou mais que uma noite — por insistência da nobreza esteve com ela depois, em Valadolid, durante mais dois dias — abandonando-a e mandando assassiná-la em seguida, passado pouco mais de um ano do casamento quando contava vinte e cinco anos de idade. A outra mulher esposada por esse rei, foi Dona Joana de Castro, com quem passou também uma única noite. Mas a grande paixão desse D. Pedro foi, sem dúvida, Maria de Padilha, tomada como manceba um ano antes do casamento com Dona Branca. Lopes conta, aliás, que D. Pedro, após a primeira noite com Dona Branca, abandonou-a para ir-se a Montalvão onde então estava sua amada. E não param aí as semelhanças. Enquanto viveu essa Maria de Padilha, o rei a teve sempre como amante, mas depois de sua morte, numas Cortes que fez em Sevilha, declarou perante todos que antes de casar-se com Dona Branca a havia esposado. Não faltaram também testemunhas, em número de quatro, que juraram ter presenciado tal casamento. Mais uma vez eram os bastardos, que o rei queria legitimar, os figurantes principais da encenação; inclusive o rei exigiu que se prestassem homenagem a um deles, D. Afonso, a quem designava como sucessor.
D. Fernando, sucessor do rei justiceiro, teve também as suas aventuras extraconjugais. Um desses casos, cuja dimensão exata não podemos estabelecer, somente o conhecemos porque Lopes menciona que por ocasião das pazes firmadas entre Portugal e Castela, tratou-se, entre outras coisas, do casamento de uma bastarda de D. Fernando, Dona Isabel, com um filho de D. Henrique, D. Afonso. Mas com certeza esse caso não foi o único, pois Lopes não deixa de insinuar que houvesse até mesmo um certo desvio sexual em D. Fernando, ao afirmar que pretendeu casar-se com sua meio-irmã, da parte de pai, Dona Beatriz:
“...reinando el-rrei dom Fernando, como dissemos, mancebo e ledo e homem de proll, tragia sua irmãa a ifante dona Beatriz, filha que fora de dona Enes e d'el-rrei dom Pedro seu padre, gram casa de donas e de donzellas, filhas d'allgo e de gram linhagem, porque hi nom avia rrainha nem outra iffante por estonce a cuja mercee se ouvessem d'acostar: e por afeiçom mui continuada, veo nacer em elle tall desejo de a aver por molher que determinou em sua voontade de casar com ella, cousa que atá aquel tempo semelhante nom fora vista. Que compre de dizer mais sobr'esto? Proposto d'aver despenssaçom pera casarem ambos, eram os jogos e fallas antr'elles tam a meude, mesturados com beijos e abraços e outros desenfadamentos de semelhante preço, que fazia a alguns ter desonesta sospeita de sua virgiindade seer per elle mingoada.”
Foi exatamente devido às constantes visitas incestuosas que fazia à irmã que D. Fernando teve oportunidade de conhecer Dona Leonor Telles, por quem se apaixonou e acabou casando-se, como vimos ainda há pouco.
O comportamento sexual desse rei enseja-nos algumas considerações mais prolongadas e para efeito de contextura nos permitiremos repetir aqui a descrição do seu tipo físico, já utilizada em outra oportunidade, e lembrar também que quando iniciou o seu reinado tinha vinte e dois anos, sete meses e dezoito dias de idade. sendo então um
“...mancebo vallente, ledo e namorado, amador de molheres e achegador a ellas. Avia bem composto corpo e de rrazoada altura, fremoso em parecer e muito vistoso, tall que estando acerca de muitos hom es, posto que conhecido nom fosse, logo o julgariam por rrei dos outros.”
Que poderíamos esperar de um moço em uma idade de plenitude física, formoso, com uma coroa na cabeça e, de lambujem, um reino em paz e com muitos tesouros que seu pai havia ajuntado? Na plenitude física, por certo o vigor sexual; na formosura, a confiança para as suas arremetidas; na coroa, a certeza de conseguir o que poderia ser impossível aos demais mortais. Isso tudo teve, por certo, D. Fernando, mas é preciso acrescentar-lhe a volúpia para entender-lhe as ações.
Somos, portanto, levados a crer que a história move-se também em virtude das pulsões humanas, que pesam tanto mais quanto maior for o espaço deixado pelos quadros institucionais respectivos, pois afinal é em função delas que podemos melhor explicar toda a série de atitudes tomadas por D. Fernando para resguardar a sua união com Leonor Teles. Já vimos que foi levado por pulsões sexuais que D. Fernando casou-se com ela. Devemos agora acrescentar a reação do povo em relação a esse casamento, para demonstrarmos que a volúpia desse soberano gerou um problema que teve reflexos sobretudo após a sua morte.
Os amores do rei com Dona Leonor e seu casamento com ela “por furto”, tornaram-se conhecidos por todo o reino e tanto os fidalgos como o povo em geral desaprovaram-no, pois, segundo eles, o rei jamais deveria casar-se com a mulher de um seu vassalo, mas sim com filhas de outros reis, como as que tinham os reis de Castela e Aragão. Por todo o reino, mas principalmente em Lisboa, o povo juntava-se em grupos, discutia o assunto e culpava muito o conselho do rei, por lhe permitir tal feito. A conclusão do povo foi a de que se os fidalgos do reino não cumpriam as suas funções, seria necessário tomar providências. Assim foi feito. Comandadas pelo alfaiate Fernão Vasques, cerca de três mil pessoas, armadas como podiam, foram aos paços onde se encontrava o rei, para lhe dizer que não podiam permitir tal casamento. D. Fernando, diante dessa manifestação, pouco costumeira aos olhos contemporâneos, conseguiu evitar qualquer ação da massa prometendo-lhe que tomaria conselho e que no dia seguinte, todos estivessem no mosteiro de São Domingos, onde então lhes comunicaria a decisão.
No dia seguinte, enquanto o povo reunia-se no mosteiro, o rei fugia, sem maiores esclarecimentos. E para reprimir as manifestações que se alastravam pelo reino — Lisboa, Santarém, Alenquer, Tovar, Abrantes — D. Fernando mandou prender e degolar os líderes, além de tomar-lhes os bens. Serenado os ânimos, o rei casou-se com Dona Leonor, segundo os rituais da Igreja, e a nobreza portuguesa, exceto o infante D. Dinis, beijou as mãos da nova rainha. Mas os rumos da história portuguesa estavam mudados. Dona Leonor, embora nem imaginando que um dia pudesse nascer um Maquiavel para estabelecer uma teoria a respeito do procedimento dos príncipes, já dava algumas lições:
“Ouve grande e vivo entendimento por afortellezar grandes pessoas como as pequenas, mostrando a todos leda conversaçom, com graada prestança e muitas bem-feituras. E porquanto ella era certa que nom prazia aas gentes meudas de ella seer rrainha, segundo se mostrara em Lixboa e em outros logares, e ainda d'alg us grandes duvidava muito, trabalhou-sse de aver da sua parte todollos moores do rreino per casamentos e grandes officios e fortellezas de logares que lhes fez dar, como adeante ouvirees. E fez ainda grande acrecentamento espiciallmente n'os de seu linhagem [...] Era muito graada e liberall a quaasquer que lhe pediam, entanto que nunca a ella chegou pessoa por lhe demandar mercee que d'ant'ella partisse com vãa esperança. Era ainda de muita esmolla e muito caridosa a todos...”
A habilidade da rainha em arregimentar vassalos era muito grande e isso, indubitavelmente, alterou profundamente o quadro político português. Ao conceder terras e fortalezas e promover casamentos, só para se ter uma idéia, a rainha conseguiu afastar os próprios meio-irmãos do rei das proximidades do poder e colocar em seus lugares pessoas de sua confiança, como os seus próprios irmãos, João Afonso Telo e Gonçalo Telo e, seu futuro amante, o Conde João Fernandes Andeiro.
Em suma, é difícil desconsiderar a volúpia de D. Fernando como uma fonte de desdobramentos políticos no sentido de dar-lhe contornos que evidentemente não teriam caso ele fosse menos impulsivo, bastando evocar a crise sucessória que, após a sua morte, abriu-se em Portugal e que custou dois anos de lutas com Castela, com os inevitáveis e altos custos sociais da guerra medieval. Em boa parte porque a legitimidade de seu casamento foi contestada e sua filha Dona Beatriz desconsiderada como sucessora.
Enfim, podemos concluir que os soberanos do medievo peninsular não eram muito propensos à monogamia. Agora, o que temos a ressaltar, é que Lopes sublinhava um pouco mais os casos extraconjugais de um rei que de outro, conforme lhe fosse mais ou menos simpático. Assim é que a respeito de D. João I, uma das figuras que teve como herói nacional, Lopes foi bem discreto. Além de mencionar o casamento de seu filho natural com a filha do condestável, como vimos, Lopes nos legou apenas mais um único parágrafo, dizendo que quando ainda era Mestre,
“...houue conhecimento de huma dona que chamauão dona Ines, comemdadeira que depoys foy de Santos, (mosteiro) de donas acerca de Lixboa; da qual ouue huum filho e huma filha. Ao filho chamaram dom Afonsso [...] A filha ouue nome dona Breatiz, que casou em Imgraterra foy condessa de Arandel...”
Já sobre os adúlteros com os quais não simpatizava muito, Lopes não poupou palavras de repreensão. Seu alvo principal foi a rainha Dona Leonor, cuja vida particular ele esmiuçou. E tanto insistiu que, acompanhando a narrativa de seu procedimento, podemos chegar até mesmo a detalhes sobre o assunto, para não dizer, esboçar a história de um adultério.
O amante da rainha foi João Fernandes Andeiro, um conde galego, colocado em seu caminho pelas mãos do próprio D. Fernando que, evidentemente, não tinha essa intenção. Esse Andeiro, embora sendo súdito da coroa castelhana, passou-se para o lado de D. Fernando quando da guerra deste com D. Henrique, de Castela. Ao final da guerra, uma das exigências de D. Henrique para que fosse firmada a paz, era que D. Fernando expulsasse de seu reino os castelhanos que haviam tomado seu partido, num total de vinte e oito pessoas. O Andeiro, atingido pela medida, foi-se para a Inglaterra, não antes de ter passado pela sua terra, a Grunha, e promovido aí um saque, roubado-a, no dizer de Lopes. Depois de algum tempo, D.Fernando, tendo tomado conhecimento de que o Andeiro já havia se acomodado na Inglaterra e que possuía, inclusive bom relacionamento com o rei e com os seus filhos, mandou-lhe cartas secretas para que intermediasse o apoio inglês para uma invasão a Castela. No desempenho dessa tarefa, o Andeiro voltou secretamente a Portugal para falar com D. Fernando. Este, para evitar que o Conde fosse descoberto, hospedou-o em uma torre onde costumava sestear com a rainha, recebendo-o em sua câmara, na presença dela. Essa intimidade com o casal real continuou, acontecendo muitas vezes do conde e a rainha ficarem a sós e D. Fernando, embora soubesse disso, não tinha nenhuma suspeita de que estava nascendo aí um romance duradouro.
As pessoas próximas ao casal real desconfiavam daquela aproximação entre o Andeiro e a rainha; todavia, parecia-lhes mais recomendável o silêncio. E Lopes, sempre muito sutil, ao invés de afirmar categoricamente que já existia o romance, acrescentou apenas que ao partir de volta para a Inglaterra, João Fernandes mandou por Gonçalo Vasques de Azevedo, de presente à rainha “h u agumill de cristal obrado d'ouro...”. Um pequeno presente, um mimo, entretanto, retribuído pela rainha. Com a morte do Conde de Ourém, D. João Afonso Telo, a rainha interferiu junto ao rei para que o condado fosse dado a João Fernandes Andeiro, designado a partir de então Conde de Ourém. Nessas alturas, ao que parece, a suspeita sobre a rainha era generalizada. Para disfarçar, mandou que João Fernandes trouxesse a Portugal Dona Mayor, sua mulher legítima. E quando essa galega sisuda, no dizer de Lopes, ia à Corte, a rainha presenteava-a e tecia-lhe elogios. Quando Dona Mayor partia, a rainha “apregoava-a com louvores quaaes h ua combooça tem costume de dizer da outra”.
Essa, digamos assim, técnica, de revelar o envolvimento do Andeiro com Dona Leonor, por certo ia conduzindo o leitor de Lopes — desatento em relação à conjuntura política do reino e preso à mentalidade de então a respeito do adultério — a entrar no clima de aversão à rainha. Por um lado, Lopes deixa muito claro que o povo em geral e principalmente a nobreza de boa estirpe, odiavam a rainha, pois “sse dohiam da desonrra d'el-rrei”, mas, por outra parte, fica também a impressão de que questões políticas, como a prisão do Mestre de Avis pelo rei, por suspeita de traição, não passavam de intrigas da rainha, que maquinava sua morte, temerosa de que o Mestre, sendo meio-irmão do rei, pretendesse vingar a sua honra.
Salta-nos à vista, portanto, pela narração de Lopes, que as ligações da rainha com o Conde, não atraíam o ódio de todos somente pelo fato dele ser galego, um estrangeiro portanto, mas porque feriam a honra do soberano e por extensão a própria honra nacional. Registramos nesse sentido que quando do nascimento de um filho da rainha, que lhe morreu com quatro dias, Lopes não mencionou qualquer reação em termos de sucessão. Nem precisava, em virtude da morte do menino. Mas a desconfiança generalizada de que fosse filho do Andeiro, ao que parece não era à toa. O próprio D. Fernando com certeza tinha suas dúvidas sobre a legitimidade desse nascimento, inclusive, suspeitou-se que ele próprio o afogara no colo de sua ama. Essa versão de infanticídio jamais foi comprovada. Todavia, parece não existir dúvidas de que D. Fernando sabia do caso e a narrativa de Lopes, de como se processava o flerte e de como este não passava desapercebido, é esclarecedora:
“Certo he que amtre as comdições que do amor escprevem, os que delle compridamente fallarom e forom criados em sua corte, assi he que por muito que emcobrir queira o que ama, nom sse pode tamto teer, que per algu s signaaes e fallas e outros demostradores geitos, nom de a emtemder aquell ardemte desejo que em sua voomtade comtinuadamente mora. E quamdo os home s veem desacostumadas afeições e prestamças, homde nom ha tall divedo que maa fama embargar possa, ligeiramente veem a presumpçom do erro em que taaes pessoas podem cahir.
E por tanto elRei dom Fernando veemdo os muitos modos per que a Rainha mostrava desordenada afeiçom e bem queremça ao Comde Joham Fernandez, e o gramde acreçemtamento que lhe procurava per quallquer guisa que podia, bem certificou em seu penssamento seer verdade o que as gentes presumiam, posto que da pubrica voz e fama que a Rainha havia com o Comde, ell nenhuua parte soubesse; nem era alguu ousado de lhe tall cousa dizer, posto que sse de sua desomrra com boom desejo doesse, rreçeamdo pena por gallardom, e mortall hodio por amizade, como já a algu s acomteçeo por taaes novas rrecomtarem, moormente aos Reis e gramdes senhores.”
O jogo era conhecido, os olhares, gestos e atos denunciavam os amantes. Por analogia ao comportamento do homem medieval, que ao contrário de encontrar o meio-termo, era sempre muito compulsivo em suas atitudes, somos levados a supor que o flerte não se constituía em exceção, que acabava sendo escancarado, apesar das tentativas óbvias de discrição. Por essas circunstâncias é que não escapavam a D. Fernando os amores de sua mulher. Além disso, fraco e abatido pela doença, por certo não restava mais ao rei, cognominado formoso, a virilidade da juventude, o que devia, certamente, reforçar a sua desconfiança. Apesar de tudo ninguém ousava dizer-lhe nada, pairava o medo, embora todos se doessem pela sua desonra. Se quis, D. Fernando teve que tomar a iniciativa: mandou escrever uma carta ao Mestre de Avis, seu meio-irmão, ordenando que matasse o Andeiro; entretanto, rasgou-a, aconselhado pelo escrivão João Gonçalves e ficou aguardando uma oportunidade melhor, que, aliás, jamais ocorreu. Os argumentos do escrivão resumiam-se no temor de fazer do Mestre um herói que viesse a disputar a coroa em caso de morte do soberano:
“Vos, Senhor, veerdes bem como o meestre vosso irmão he bem quisto de todollos do rregno, e sse ell tevesse Coimbra, falleçemdo vos o que Deos nõ mamde, jumtarssehiam a ell todallas gemtes, e ficaria el por rei desta terra; e vossa filha assi deserdada...”
Pobre rei! Embora tenha usado do poderio que a coroa lhe outorgava para conquistar amantes e para casar-se com uma mulher já comprometida pelos laços do matrimônio, não pôde usá-lo para lavar a própria honra, como era costumeiro na época. Os interesses políticos não o permitiram. Mas, em conclusão, podemos afirmar que se as pulsões de D. Fernando contribuíram de forma marcante para estabelecer os rumos da história do seu reinado, não foi menor a contribuição da rainha nesse mesmo sentido. A direção que tomaram os acontecimentos após a morte do rei, está relacionada muito fortemente com a sua postura amorosa, pois, sem dúvida, a expectativa de serem governados pelo Andeiro, que era galego, em muito contribuiu para que boa parte da nobreza portuguesa se colocasse ao lado do Mestre e fizesse, com ele, a chamada “Revolução de Avis”.
Todos os sentimentos da população em geral e especialmente da nobreza portuguesa em relação à vida sexual da rainha, refletem o modo de pensar da época a respeito do assunto. Consagrado o casamento monogâmico com a bênção da Igreja, todas as outras formas de relacionamento eram consideradas ilícitas, daí o empenho das autoridades em coibirem-nas. Os próprios reis empenhavam-se nessa tarefa, como veremos a seguir; entretanto, não é dificil imaginar as dificuldades. Se na corte e até mesmo no seio da família real praticava-se o adultério e o concubinato, era evidente a sua vulgarização, pois não precisamos nos esforçar muito para compreendermos que, aos olhos de uma população ingênua, os exemplos da nobreza eram imitados.

ADULTÉRIO E CONCUBINATO ALÉM DA CASA REAL

A narração da prática do adultério e do concubinato no âmbito da casa real não era tarefa que se impunha ao cronista pela sua importância em si e, ao que tudo indica, ou não despertava tanto a curiosidade do leitor medieval como os feitos cavaleirescos, ou Lopes não era do tipo fofoqueiro. Na verdade, a narração de tais práticas ocorria quando algum acontecimento político obrigava o autor a entrar no assunto ou, principalmente, quando do aparecimento de filhos bastardos em alguma partilha, casamento, e até mesmo nas sucessões reais mal definidas. Da mesma forma ocorria quando o adultério ou o concubinato davam-se entre as demais camadas da população. Ou seja, eles não eram narrados pela importância que, em si, despertavam, mas sempre em virtude da ligação com outros acontecimentos, cuja inclusão na narrativa era interessante ao cronista. Esse aspecto já pôde ser observado nos vários exemplos anteriores, principalmente quando narramos a execução do marido de Maria Rousada, com cuja evocação Fernão Lopes quis, evidentemente, ressaltar o espírito justiceiro de D. Pedro I, e não tanto a união ilegítima do casal. Da mesma forma, os exemplos a seguir evidenciam e realçam as atitudes justiceiras do monarca, o que evidentemente não invalida o ponto de vista que vimos até então defendendo: de que a Igreja procurava impor o casamento de bênção a toda a sociedade, com a ajuda do poder real, inclusive. Embora fosse adúltero, D. Pedro I, como vimos, contraditoriamente era muito cioso em relação às contravenções de ordem sexual e punia com muita severidade os infratores, sem exceção.
Para destacar acerca desse aspecto, o extremo zelo de D. Pedro I pela justiça, Fernão Lopes narrou-nos alguns episódios que julgamos extremamente úteis para nossa análise. Comecemos pelo mais extravagante, que é a história de como este rei quase chegou a punir corporalmente um alto dignatário eclesiástico por comportamento adúltero. Ao tomar conhecimento de que o bispo da cidade do Porto dormia com uma mulher casada e que, ainda por cima, sendo senhor de grande poder e fortuna ameaçava de morte o marido, um dos homens bons da cidade, D. Pedro, tão logo teve oportunidade, ao passar pelo local, tomou suas providências, mandou chamar o referido prelado ao paço e providenciou para que ficassem a só:
“El-rei, como foi à parte com o bispo, desvestiu-se logo e ficou numa saia de escarlata. E por sua mão tirou ao bispo todas as suas vestiduras, e começou de o requerer que lhe confessasse a verdade daquele malefício em que assim era culpado. E em lhe dizendo isto, tinha na mão um grande açoute para o brandir com ele.”
O rei somente não teve consumada a sua intenção porque os homens do bispo, percebendo-a, procuraram os conselheiros reais para que intercedessem em seu favor. E mesmo acorrendo rapidamente, esses fidalgos não ousaram entrar em virtude do rei ter posto guarda na entrada da câmara onde se encontrava. Providencialmente, Gonçalo Vasques de Góis disse que precisava entrar urgentemente para falar com o rei sobre cartas de Castela que acabavam de chegar. Com essa desculpa, alguns do conselho entraram no recinto e conseguiram demover o rei de seu intento, alegando que não era de sua jurisdição tal atitude e que o papa, por certo, ficaria com muita sanha dele, isto é, muito irritado.
Damião Peres já observou que o episódio envolvendo o bispo “constitui-se em pura lenda, ou transposição lendária em pessoa, em época e em assunto”. De nossa parte, já tivemos oportunidade de referir que a base narrativa desse episódio, provavelmente, tenha sido retirada de algum cancioneiro, não se constituindo, portanto, em fato real. E ressaltamos na oportunidade que, apesar de não ser tão fidedigna como as de D. Fernando e D. João I, a Crônica de D. Pedro possui valor diante da história, ao nos propiciar a oportunidade de resgatar o imaginário social da época.
Quando Lopes iniciou a Crônica de D. Pedro em 1434, era intensa a crise que se abatia sobre Portugal. A expedição portuguesa a Tânger foi um desastre espetacular. Os “criados” de D. João I declaravam-se desamparados. A reincidência da Peste Negra fazia grande número de vítimas — inclusive o próprio rei, D. Duarte, em 1438. As ordens sociais já não eram apenas três: uma para orar, outra para guerrear e outra para trabalhar; a burguesia nascente quebrava a harmonia social tão decantada, se é que chegou a haver harmonia social na Idade Média. Esse estado generalizado de crise se por um lado despertava nos espíritos contemporâneos a necessidade de apegarem-se ao sagrado, por outro, provocava justamente uma reação contrária, ou seja, um desejo muito forte de aproveitarem ao máximo as oportunidades e os prazeres mundanos que a vida podia lhes propiciar. Todas essas vicissitudes parecem ter induzido Fernão Lopes a ver o seu tempo como de degeneração de muitos costumes sociais. Se considerarmos que durante o reinado de D. Pedro [1357-1367], os feitos cavaleirescos, tão ao gosto da nobreza e matéria-prima de primeira grandeza para os cronistas medievais, não tiveram qualquer destaque, não nos será difícil compreender que a crônica de D. Pedro I tivesse se revestido de um caráter de conselheira. Quer dizer, Lopes atribuiu a D. Pedro I uma série de qualidades que desejava encontrar em D. Duarte, o que nos enseja afirmar que o comportamento do rei justiceiro em muitos casos se constituía num reflexo provável dos anseios do cronista a respeito de como deveriam proceder os seus contemporâneos. Daí tender a dita crônica a tornar-se um repositório de exemplos moralizantes, dentre os quais destaca-se esse episódio do bispo, para servir, principalmente, ao meio eclesiástico que, nessa época, manifestava grande número de concubinatos, inclusive de conhecimento público.
Para a sociedade laica Lopes apresentou outros exemplos. Enquanto Afonso André, um honrado mercador, segundo Lopes, participava de um torneio com fidalgos da corte, o rei D. Pedro mandava queimar sua mulher e degolar o amante. Quando Afonso soube do fato, dirigiu-se ao rei para queixar-se, mas este simplesmente explicou-lhe que “já o tinha vingado da aleivosa de sua mulher e do que lhe punha os cornos, e que melhor sabia ele quem ela era que ele”.
E não eram apenas as mulheres que sentiam o peso da justiça de D. Pedro quando praticavam o adultério. Um seu escudeiro, Afonso Madeira, foi castrado porque dormiu com uma mulher casada. É verdade que nesse caso temos a considerar, além do moralismo, alguns outros aspectos que poderiam ter suscitado o rigor da penalidade imposta por D. Pedro. A mulher que cometera o adultério com Afonso Madeira era Catarina Tosse, casada com Lourenço Gonçalves, corregedor da corte, a quem o rei queria muito bem pela sua honestidade e dedicação. É de supor que esse fato possa ter influenciado a decisão do rei. Por outro lado, o rei queria muito bem também a Afonso Madeira, tanto que Lopes inclusive chegou a insinuar uma relação homossexual entre eles, caso em que o ciúme do rei teria contribuído para o rigor da pena. Mas, apesar desses argumentos, mais uma vez, fica-nos a impressão de que a atitude real relacionava-se com a moralização dos costumes e estava atrelada à concepção da Igreja em considerar lícito apenas o relacionamento sexual que tivesse recebido a sua bênção, através do matrimônio.
Não fosse assim, como explicaríamos outras atitudes de D. Pedro, que atingiam pessoas distantes de seu relacionamento pessoal, e que somente diziam respeito à pratica do sexo extraconjugal? E, além do mais, devemos enfatizar que ele não era o único a ter esse tipo de preocupação; outros monarcas enfocados por Lopes, o próprio condestável e, provavelmente os grandes senhores do reino, demonstravam bastante rigor no sentido de garantir os padrões estabelecidos pela Igreja. Para exemplificarmos essa preocupação e as atitudes correlatas tomadas em função dela, temos que abrir um espaço especial, pois as relações extraconjugais não se resumiam ao adultério, a prostituição também existia. Lamentavelmente, entretanto, quanto a esse aspecto Lopes nos deixou muito pouco. De qualquer forma, apesar de discreto, não deixa de ser um testemunho ilustrativo.

4. A PROSTITUIÇÃO

Não desconhecemos que a prostituição pode ser tratada de maneiras diversas por estudiosos do assunto que, inclusive, têm enfoques muito diferentes, privilegiando ora o anedotário sobre o tema, ora a sexualidade no que tem de normal e de desvios, a miséria, os valores morais e culturais, enfim, uma gama de aspectos, muitos dos quais fogem aos nossos objetivos. Como já foi dito, Lopes praticamente não abordou o tema mas quando o fez, sempre de maneira parcimoniosa, deixou-nos a nítida impressão de que a considerava um ato espúrio, tanto mais que, nos casos em que a aborda, ela surge associada seja à feitiçaria, seja à má conduta dos homens de guerra. Podemos ainda sustentar que a concepção de Lopes sobre a prostituição era compatível com a doutrina da Igreja que, nessa época, esforçando-se para impor o sacramento do matrimônio, contrapunha-se a quaisquer outras modalidades de relacionamento sexual.
Apesar de poucos, alguns episódios narrados por Lopes nos ensejam a oportunidade de ilustrar adequadamente essas generalizações preliminares. Certa feita, como diz Lopes, o rei D. Pedro mandou matar o almirante Lançarote Pessanha por dormir com uma mulher chamada Violante Vasques. Não se trata, nesse caso, de adultério como o que envolveu o bispo ou a mulher de Afonso André, nem de alguma forma de casamento marginalizada pela Igreja, como no exemplo de Maria Rousada, mas de um relacionamento sexual puramente ocasional. Pela leitura desse episódio, podemos afirmar que havia locais convenientes e adequados para encontros amorosos e mulheres disponíveis para esses relacionamentos esporádicos e inclusive pessoas encarregadas de intermediar tais encontros. Evidentemente que esse caso do almirante não é único; Lopes elegeu-o, com certeza, por ter envolvido pessoa de alta patente. Para ele era mais importante evidenciar as qualidades de justiceiro do rei do que propriamente a prostituição, o que não impede que o próprio Lopes documente a existência da prostituição em Portugal, pois a par do realce dado ao caso do almirante, menciona que: “El-rei Dom Pedro queria grande mal a alcovetas e feiticeiras, de guisa que pelas justiças que nelas fazia muito poucas usavam de tais ofícios”.
Lopes nos esclarece que as alcoviteiras eram perseguidas por D. Pedro, mas com relação às prostitutas não nos oferece muitas informações. Sabemos, entretanto, por intermédio de outras fontes, que as atitudes das autoridades públicas em relação ao assunto sempre foram contraditórias, pois faziam “da organização do prostíbulo uma espécie de serviço público e fonte de receita, em benefício de alguns notáveis”, ao mesmo tempo em que “isolavam as prostitutas e perseguiam os proxenetas”, dados que sugerem que àquela época imaginava-se que, eliminando-se as alcovetas, eliminar-se-ia a prostituição. Ledo engano, pois, embora marginalizadas, as prostitutas faziam parte do cotidiano medieval português, como o prova a sua subsistência, apesar das medidas drásticas de D. Pedro, que as mandava queimar ou do Condestável Nuno Álvares Pereira, que proibia aos homens de seu exército serem acompanhados por mulheres. E para não ficarmos restritos às condutas de pessoas tidas por Lopes como modelares — D. Pedro I no que concerne à aplicação da justiça e Nuno Álvares Pereira no que diz respeito ao ideal de castidade — vejamos como D. João I se preocupava com o assunto, tendo agido, inclusive, com severidade excessiva em pelo menos um caso.
Convém inicialmente ressaltar que uma das providências a que os soberanos recorriam no intuito exatamente de evitar que as mulheres que viviam na corte entrassem para o rol das malfaladas, era casarem-nas quando julgavam conveniente. Lopes é bem explícito sobre esse assunto quando destaca que
“el-Rey [D. João I] com boom dessejo e cuidado das molheres de sua cassa, e asy de as goardar de fea queeda em que muytas sem empacho per seu mao sisso vem a cayr, como dacrecentar em ellas, posto que pouco tempo ouuesse que em cassa da Raynha amdassem, cuydou de cassar algumas dellas que lhe pera esto pareçerão pertençentes.”
Guardar de feia queda as desajuizadas! A preocupação do rei, entretanto, não era suficiente para acertar os pares de acordo com os gostos dos noivos. Assim é que apenas uma das moças demonstrou estar satisfeita com o marido que o rei lhe escolhera. As demais, embora se submetessem, bem demonstraram que não estavam contentes. Quer dizer, ao agirem assim, na melhor das hipóteses, se os reis fechavam o caminho para a prostituição, abriam-no para o adultério.
De qualquer forma, como que para justificar a atitude do rei em mandar casar várias donzelas de sua casa, Lopes nos conta um episódio que presumivelmente seria o caminho para a prostituição. Trata-se de uma história amorosa com final muito infeliz, unindo Beatriz de Castro e Fernando Afonso. Vale a pena resumi-la, como conclusão desse assunto.
D. João I, suspeitando que pudesse estar havendo um caso amoroso entre um camareiro seu, a quem “amaua muyto”, chamado Fernando Afonso, com uma das mais formosas donzelas que freqüentava o paço, Beatriz de Castro, filha do conde D. Álvaro Peres de Castro, falou várias vezes com ele no sentido de preveni-lo para que “nam teuesse geyto de bemquerença, moormente com esta dona Breatiz”. O rapaz, embora prometesse respeitar a vontade do rei, ao que tudo indica continuava a encontrar-se com ela. E, inclusive, para ficar mais tempo com a amada, Fernando Afonso solicitou licença ao rei para ir a pé a Santa Maria de Guadalupe. Evidente que numa época em que as romarias religiosas eram comuns e tidas como salutares aos cristãos, o rei não lhe negou o pedido. Só que o moço ao invés de fazer realmente a sua peregrinação, foi-se para a casa de Beatriz, onde permaneceu pelo número de dias que julgou suficientes para o seu trajeto.
Ora, quem fazia uma romaria na Idade Média, voltava com muitas histórias, o que não ocorreu com Fernando Afonso. E o rei, por conseguinte, foi transformando a sua desconfiança em certeza, na mesma proporção em que crescia o rumor sobre a relação entre os amantes. Colocou então espiões para vigiarem-no e, certo de seus encontros clandestinos, mandou prendê-lo. O rapaz, ao ser conduzido à cadeia pelo corregedor Gil Eanes, fugiu, indo esconder-se na Igreja de Santo Eloi, onde esperava estar protegido. Mas o rei, já descontente com o moço que lhe descumpria as ordens, ficou enfurecido e violando inclusive o costume medieval que protegia os homiziados em igrejas, invadiu-a e mandou que levassem preso o moço que se encontrava abraçado a uma imagem de Nossa Senhora, realçando Lopes a violência dessa cena ao dizer que, ao arrancá-lo da imagem, os encarregados de sua prisão não puderam evitar que ela caísse e se quebrasse.
De nada adiantou o fato de Beatriz, a partir daquele dia, passar a dizer que Fernando Afonso era seu marido, como se tivessem se casado por furto. O rei, impiedoso, apesar do apreço com que distinguia o rapaz, mandou queimá-lo, o que não devia, aliás, ser muito comum, pois Lopes afirma que “tal morte pos gramde espanto em todolos da cassa del-Rey que esto viram”. Quanto a Beatriz, foi-se para Castela, “vyvemdo com ençetada fama”. Eis, portanto, um dos caminhos para a prostituição.
Fica então explicado porque os reis promoviam os casamentos das donzelas que viviam nos paços. Além das questões política e financeira, já abordadas anteriormente, havia também essa preocupação com o destino das moças no que tange a sua reputação moral. Até mesmo a rainha Dona Leonor, pouco recomendada para exemplos de moralidade sexual e de quem Lopes inclusive diz ser “lavrador de venus”, promoveu muitos casamentos com esse objetivo. Claro que não nos passa desapercebido e nem sequer passou a Lopes, os seus interesses em obter apoio da nobreza portuguesa através desse expediente.