CAPÍTULO III
AS CERIMÔNIAS PERTINENTES AOS PILARES DAS RELAÇÕES
SÓCIO-POLÍTICAS DO MEDIEVO EM LOPES
1. AS COROAÇÕES
2. A ARMAÇÃO DO CAVALEIRO
3. A HOMENAGEM E O JURAMENTO DE FIDELIDADE
O CONTRATO VASSÁLICO
DA INEXISTÊNCIA DO CONTRATO VASSÁLICO EM PORTUGAL
A FIDELIDADE NA PRÁTICA COTIDIANA
A FIDELIDADE AO SOBERANO
A FIDELIDADE ENTRE OS SENHORES
A FELONIA
CAPÍTULO III
AS CERIMÔNIAS PERTINENTES AOS PILARES DAS
RELAÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS DO MEDIEVO EM
LOPES
Antes de iniciarmos este capítulo, entendemos não ser
demais esclarecer que Lopes jamais se propôs e nem sequer manifestou
a sua intenção de escrever sobre este assunto, o que,
se não implica em nenhum mérito ou demérito para
o conjunto de sua obra, pois na realidade as estruturas e as relações
sociais de seu tempo não foram alvo específico de seu
enfoque, constituiu-se em dificuldade prática para a consecução
de nosso objetivo. Quer dizer, se não assumiu nenhum compromisso
em escrever sobre este tema, obviamente, foi parco em menções
sobre ele. De qualquer forma os percalços não foram
insuperáveis, apesar de termos sido obrigados a recorrer sempre
a idéias secundárias do texto e eleger as cerimônias
cujas referências aparecem em maior número nas crônicas.
Com essas limitações é que abordaremos, a seguir,
as cerimônias de coroação dos soberanos, de armação
dos cavaleiros e o contrato feudo-vassálico, pilares das relações
sócio-políticas do medievo.
1. AS COROAÇÕES
Conforme já dissemos anteriormente, ao contrário de
outros cronistas medievais, Lopes não era um freqüentador
da Corte. Sua origem fazia dele um conhecedor mais profundo do povo
comum. Isso, evidentemente, teve reflexo em sua obra, como se pode
perceber pela ausência de detalhes na descrição
de cerimônias pomposas, inclusive das coroações,
que agora nos interessam. Todavia, a menor atenção dada
por Lopes a essas solenidades não lhes tira a importância,
porque as coroações constituíam-se numa cerimônia
importante que conferia ao soberano medieval um capital simbólico
muito grande para o início de sua função.
Na Crónica de D. Pedro, não há nenhuma menção
a qualquer solenidade de coroação. Quando narra a ascensão
deste rei ao trono português, Lopes não poderia ser mais
sucinto. Ele apenas relata que, morto D. Afonso IV, assumiu D. Pedro,
na época com trinta e sete anos. Mais adiante transcreve duas
cartas, uma do papa e outra do rei de Aragão, que apenas mencionam
o assunto. Na carta do papa Inocêncio, constam os pêsames
pelo falecimento de D. Afonso IV e, além de algumas palavras
de conforto, conselhos para o novo governante. Na outra carta, além
dos votos de pesar, os cumprimentos pela coroação, uma
espécie de morreu o rei, viva o rei! Veremos a seguir um trecho
desse documento, no qual o rei de Aragão afirma ter recebido
as notícias de falecimento do rei D. Afonso IV e da coroação
de D. Pedro, para nos convencermos da propriedade da afirmação:
“houvemos desprazer e prazer juntamente. Desprazer da morte
do rei [...]. Prazer outrosim houvemos mui grande, rei irmão,
quando soubemos que éreis alçado em rei de Portugal
e Algarve...”
Esses tipos de cartas, carregadas dos topoi usuais nessas circunstâncias,
na maioria das vezes entregues pessoalmente por embaixadores que se
faziam presentes especialmente para essas solenidades, eram documentos
formais através dos quais se reconhecia a legitimidade do novo
rei. Mas passemos, na mesma Crónica de D. Pedro, para outra
referência à coroação, envolvendo dessa
feita D. Henrique I que, aliás, também não é
nada reveladora de como fosse um cerimônia dessa natureza, pois
Lopes conta apenas que ao término da guerra pela posse da coroa
castelhana entre D. Pedro, o Cruel, e o Trastâmara, os habitantes
de Burgos coroaram-no:
“E coroou-se ali por rei; e vieram a ele muitos procuradores
das vilas e cidades do reino e receberam-no por senhor. Em guisa que,
no dia da coroação a vinte e cinco dias, foi todo o
reino a seu mandado. E ele recebia todos graciosamente e a nenhum
era negado cousa que pedisse.”
Mais uma vez nenhuma menção à cerimônia,
mas podemos acrescentar dois dados ao que já sabemos sobre
coroação: a homenagem que se fazia ao novo soberano
e a sua correspondente retribuição. Ao coroamento do
rei era costume apresentarem-se os procuradores das vilas e das cidades
para a homenagem, ou seja, o juramento de fidelidade ao Senhor. Esse
ato, que lamentavelmente Lopes não privilegia em suas crônicas,
revestia-se de um caráter simbólico muito acentuado,
como veremos logo adiante, através do qual os grandes do reino
submetiam-se ao seu mais alto senhorio. O outro dado é que
D. Henrique distribuía generosamente o que lhe pediam, o que
se compreende se considerarmos que o reino foi usurpado pelas armas
ao seu meio-irmão D. Pedro. Afinal, era normal a prodigalidade
dos reis medievais, e se a alguns faltava esse predicado, afastava-se
das expectativas dos súditos que sempre esperavam que assim
fossem. D. Pedro retribuía à nobreza portuguesa não
somente os serviços prestados a ele, mas também os que
haviam sido feitos a seu pai. D. Fernando foi considerado, segundo
Lopes, numa roda de fidalgos que falavam sobre as grandezas dos reis
portugueses, o mais generoso de todos. E D. João I não
lhe ficava atrás, ainda mais que, a exemplo de D. Henrique,
também ganhou o reino pelas armas. Ainda quando era apenas
o Mestre de Avis, D. João foi aconselhado por Álvaro
Paes a ser generoso com os seus seguidores:
“Daae aquello que vosso nom he, e prometee o que nom teemdes,
e perdoaae a quem vos nom errou, e seervos ha mui gramde ajuda pera
tall negoçio em quall sooes posto.”
E, ao que tudo indica, o conselho foi seguido à risca, pois
Lopes o chama de virtuoso Senhor que possuía grande bondade,
agraciando com bens e privilégios todos os que o serviam, inclusive
a cidade de Lisboa e, especialmente, Nuno Álvares Pereira,
seu fiel Condestável.
A generosidade das concessões, como afirmamos, era comum aos
soberanos medievais, uns porque precisavam manter a fidelidade de
seus súditos, outros porque necessitavam angariá-la.
É evidente que manter a fidelidade era muito mais fácil
do que conquistá-la, e os reis desse período bem sabiam
disso, praticando o que mais tarde Maquiavel teorizou. Quer dizer,
a homenagem, a submissão ao rei, o reconhecimento público
de sua proeminência sobre os demais membros da nobreza, implicava
numa contrapartida de concessões as mais diversas, que incluíam
feudos em terra e em dinheiro. E é claro: quanto maior a dignidade
do vassalo que se curvava diante do rei, maior deveria ser a retribuição,
pois a homenagem de um Nuno Álvares, evidentemente, tinha um
peso muito maior do ponto de vista exemplar do que a de um outro nobre
qualquer.
Mas eis-nos a nos desviar de nosso assunto; saiamos do “desvio”
e voltemos às coroações. Assinalamos que na Crônica
de D. Fernando, Lopes também não descreve a cerimônia
de coroação. No prólogo, anuncia que D. Fernando
foi coroado rei no mosteiro de Alcobaça, logo após o
enterro de seu pai, estando na época com vinte e dois anos,
sete meses e dezoito dias, sem fazer nenhuma menção
a festas ou quaisquer solenidades. Na mesma Crónica de D. Fernando,
Lopes registrou outro início de reinado, o de D. João
I de Castela, dizendo que, falecido D. Henrique, assumiu seu filho
primogênito, coroado em julho, num mosteiro de Burgos. Nessa
coroação, onde mais uma vez ressentimo-nos de informações
mais detalhadas, sabemos que houve uma grandiosa festa, pois além
da menção explícita feita por Lopes a grandes
festas, podemos avaliar a sua grandeza em virtude do expressivo número
de cem cavaleiros armados de uma única vez nessa oportunidade
pelo novo monarca.
Mais pródiga em informações revela-se a Crónica
de D. João I quanto a solenidade de coroação
de seu protagonista D. João, Mestre de Avis, eleito rei de
Portugal pelas Cortes realizadas em Coimbra em 1385. Segundo Lopes,
após a decisão das Cortes, os prelados, fidalgos e procuradores
dos Concelhos foram até onde estava o Mestre de Avis e lhe
requereram que aceitasse o resultado da eleição que
haviam promovido, assumindo o título real. D. João,
num primeiro momento, recusou-se, alegando “deffectu de sua
naçença” ? bastardo do rei D. Pedro ? e os votos
que fizera para ingressar na Ordem de Avis ? pobreza, obediência
e castidade. A relutância do Mestre rendeu-lhe a promessa, por
parte daquela embaixada, de que o ajudariam em tudo o que precisasse
para manter o seu estado real, bem como para prosseguir na guerra
contra Castela.
Aceito o título, Nuno Álvares Pereira foi o encarregado
de preparar os Paços onde, em seis de abril de 1385, o Mestre
“...foi alçado por rei; e feito seu offiçio, assi
eclesiastico, como secular, damdolhe aquell poderoso e rreal estado
que ell b mereçia, com gramde festa e prazer; assi de lamçar
a tavollado, come doutros jogos e trebelhos, segumdo husamça
daquell tempo; nom soomente em aquell logar de Coimbra, mas nas outras
villas e çidades que por ell estavom e sua voz mamtiinham.
Espeçiallmente Lixboa, homde foi feita h ua mui homrrada e
soll ne proçissom que partio da See e foi a Sam Domimgos; e
depois de comer com muito prazer e allegria, trouverom bamdeira pella
cidade, com muitos jogos e trebelhos, apregoamdo: Arreall! por elRei
dom Joham! E alçarom emtom na rrua Nova por tavollado, hu gramde
e alto masto de carraqua da parte do mar, de guisa que nom torvava
a rua.”
Quer dizer, havia a celebração religiosa e a secular,
ambas muito importantes para diferenciar a figura do rei em relação
aos demais segmentos da sociedade. Os reis utilizavam-se de um capital
simbólico muito forte para legitimarem-se no poder. A coroação
ensejava, como vimos, a homenagem, que era realizada com a exteriorização
de atos muito concretos de sujeição de todos os grandes
senhores do reino, inclusive prelados, ao soberano. A acumulação
de símbolos em torno do poder, para dar-lhe legitimidade, se
fazia tão mais necessária quanto a distância que
separava o rei da população. Tomemos como marco, para
demonstrar o início da sistematização dessas
práticas, o advento ao poder da dinastia carolíngia.
É sobejamente sabido que a autoridade dos reis bárbaros
estava diretamente relacionada à guerra. Enquanto comandantes
militares os reis eram supremos, portanto, a manutenção
do status real dependia de campanhas militares regulares. Mas à
medida que ampliavam consideravelmente os seus domínios, os
reis precisavam aumentar também o número de intermediários
entre si e a população, de tal forma que os parentes
confiáveis não eram suficientes, precisando-se apelar
para a nobreza em geral. Isso significa que quanto mais alargava os
seus domínios e, conseqüentemente, sua máquina
administrativa, mais aumentava o perigo de pulverização
do seu poder. E, mesmo tomando sob seus cuidados os filhos dessa nobreza,
apadrinhando-os no palácio para aumentar o vínculo de
dependência pessoal, os reis precisaram reforçar o seu
poder simbólico para compensar a sua ausência física
junto ao exército e ao povo em geral. Nesse aspecto contribuiu
consideravelmente a religião, sobretudo porque, aos poucos,
ao longo da Idade Média, a Igreja pretendeu passar a idéia
de que a coroa era uma concessão do papado. Quer dizer, a Igreja,
aproveitando-se do fato de que a coroa já era um símbolo
muito forte, consagrado há séculos como sinônimo
de poder, apropriou-se dele, acrescentando-lhe o seu ritual. Mas,
ao que tudo indica, essa questão não chegava à
população; como reflexo da proeminência da Igreja
sobre o rei, toda a pompa e brilho da cerimônia eram capitalizados
no sentido de conferir ao monarca a condição de mais
alto senhorio do reino.
Além das cerimônias oficiais, cujo brilho irradiava-se
entre todas as camadas da população, cumprindo o seu
papel de conferir ao soberano legitimidade, as comemorações
pela coroação ganhavam as ruas do reino. As cidades
organizavam grandes festas, com banquetes ao ar livre, jogos de azar,
o tavollado e danças, que à época eram chamadas
de trebelhos. Os responsáveis pela manutenção
do status quo procuravam, enfim, associar a coroação
com a alegria e o prazer.
Da mesma forma que a coroação do rei se revestia de
um caráter ritualista que necessitava de uma grande divulgação
entre a população, a armação do cavaleiro,
em menores proporções, também carregava consigo
esses mesmos ingredientes.
Ainda quanto à armação do cavaleiro, não
podemos nos esquecer do apelo simbólico sob o qual se desenrolava
a cerimônia, e onde a fidelidade era ponto fulcral.
2. A ARMAÇÃO DO CAVALEIRO
A cerimônia de armação dos cavaleiros na Idade
Média, parece ter seus antecedentes em épocas bem recuadas,
pois da mesma forma que nas sociedades primitivas e no mundo antigo,
existiam os rituais de iniciação para integrar os rapazes
no grupo social, também passou a realizar-se, na Europa Medieval,
especialmente a partir do século XI, uma cerimônia que
propiciava aos jovens o ingresso à categoria dos guerreiros.
Uma prática relativamente comum se tivermos em conta que os
germanos também possuíam um cerimonial, trazido para
a Europa Meridional com as invasões, para elevar os seus jovens
à condição de guerreiros, com a diferença
de que entre esses povos, chamados de bárbaros, todos os homens
livres eram guerreiros, enquanto que, na sociedade feudal, apenas
eram admitidos os filhos da nobreza ou, eventualmente, algum destacado
jovem que se sobressaísse em práticas tidas como próprias
dessa categoria, tal como a força ou a destreza no uso das
armas.
Armar um cavaleiro podia se constituir num ato simples, sem cerimônias
pomposas. Num cenário bem apropriado, o campo de batalha, momentos
antes de dar-se o combate, poderiam ser armados vários cavaleiros.
Essa era, sem dúvida, uma fórmula empregada com muito
sucesso para estimular os combatentes. O ritual básico de sagração
consistia na entrega das armas ao neófito, normalmente pelo
cavaleiro mais antigo, que lhe cingia a espada e aplicava-lhe o pescoção,
simbolizando, provavelmente, a última ofensa que receberia
sem revide. Longe do campo de batalha, após esses atos, realizavam-se
competições desportivas e festas. Mas a sagração
do cavaleiro nem sempre se limitava à cerimônias laicas.
Como a sociedade feudal viveu muito intensamente o signo do sobrenatural,
incorporou o sagrado nessas cerimônias. Nada de inovador. Numa
época em que se costumava benzer as colheitas, os rebanhos,
o leito conjugal e até o cajado da viagem, não era de
admirar que se benzesse a espada e as armas de guerra em geral. Daí
para que a Igreja fosse assenhoreando-se do ritual foi um passo, chegando-se
ao ponto dos prelados cingirem a espada e darem o pescoção
no aspirante. Com a entrada em cena da Igreja, aumentou muito o simbolismo
da consagração, com o acréscimo, por exemplo,
do banho purificador e da velada de armas. Na verdade a Igreja procurou
com maior ou menor êxito, transformar a antiga entrega de armas
num “sacramento”.
Tudo o que ocorria na sagração de um cavaleiro possuía
um peso simbólico muito forte. A espada, que lhe era entregue,
não era apenas e tão somente um metal frio pronto para
ferir os inimigos. Na Idade Média era considerada o símbolo
do espírito ou da palavra de Deus. Barley observou que em inglês,
espada é sword e palavra é word. Tal observação
leva-nos à dedução de que da mesma forma que
a palavra de Deus iluminava o caminho, a espada era o instrumento
apropriado para o cavaleiro, defensor das forças da luz contra
as trevas. Não é à toa que ao decidir-se pelo
partido do Mestre de Avis, a espada de Nuno Álvares Pereira
entrou para a história. Faltou-lhe um nome, é verdade,
como por exemplo, a Escalibur do Rei Artur, a Balmunga de Siegfried
ou a Durindana de Roland, mas, de qualquer forma, a espada do Condestável
foi personalizada.
Vejamos como desenrolou-se esse acontecimento.
Após a morte do rei D. Fernando, a rainha, Dona Leonor, temendo
pela sua estabilidade no poder, já que era regedora do reino,
enviou uma embaixada ao prior, Pedro Álvares, pedindo-lhe que
estivesse a seu serviço. Entretanto, nem todos os homens do
prior ficaram satisfeitos com essa embaixada, inclusive e, principalmente,
seu irmão Nuno Álvares Pereira, que já manifestava
sua tendência para o partido do Mestre de Avis. Como a embaixada
não surtiu nenhum efeito prático imediato, o prior partiu
para Santarém, e Nuno Álvares aposentou-se em Santa
Maria de Palhaes. Numa tarde, nessa pequena localidade, Nuno Álvares
saiu em passeio e em frente à porta de um alfageme ? oficial
que guarnecia espadas ? viu em exposição uma espada
que lhe chamou a atenção; perguntou ao alfageme se poderia
deixar a sua naquele mesmo estado. Este respondeu-lhe que a deixaria
ainda melhor.
E, ao que tudo indica, de fato a espada de Nuno Álvares ficou
apropriada à sua missão, “muito aa sua voomtade”,
segundo Lopes. Quer dizer, para um cavaleiro retratado como modelo,
a quem num futuro próximo estava reservada a missão
de contribuir decisivamente para libertar o reino da ameaça
castelhana, era necessária uma espada limpa. À pureza
do cavaleiro deveria corresponder sua espada, limpa para iluminar
caminhos, na medida em que promovia a expulsão dos inimigos,
sempre considerados o lado mau. E por falar em mau, devemos ter em
mente que a parte protetora da mão de quem empunha a espada,
sobreposta à lâmina, dá-lhe o formato de cruz,
o que lhe determina um peso simbólico também muito forte,
pois, afinal, da mesma forma que com a cruz se espanta e se combate
males do espírito, com a espada se combatem os adversários,
que, como frisamos, sempre se constituem no mal, ao menos do ponto
de vista de cada facção.
De posse de sua espada, Nuno Álvares quis pagar o alfageme
pelo trabalho, todavia, este se recusou a receber naquele momento,
dizendo que somente receberia quando ele retornasse como Conde de
Ourem. A profecia atribuída ao alfageme, feita em 1383, teria
de fato se realizado em 1385. Nesta data, chegando a Santarém,
Nuno Álvares foi procurado pela mulher do alfageme que pediu
ao agora Conde de Ourem que intercedesse junto ao rei para que lhe
tirasse o marido da prisão e lhe restituísse seus bens,
tirados por suspeita de que ele tivesse ajudado os castelhanos. Nuno
Álvares, lembrando-se do ocorrido há dois anos, cavalgou
até onde encontrava-se D. João, narrou-lhe o episódio
e intercedeu pelo alfageme. O rei mandou soltá-lo e restituir-lhe
os bens. Estava assim pago o trabalho feito na espada. Mas, sublinhemos,
o alfageme não recebeu um pagamento em dinheiro, coisa desprezível,
mas sim a gratidão do cavaleiro cuja espada havia guarnecido
? mpado, amolado, polido ? fim de que ela cumprisse o seu desígnio.
Não encontramos em Lopes nenhuma menção a outros
símbolos reconhecidamente importantes na sagração
de um cavaleiro, como a túnica branca e o manto vermelho que
recebia após o banho purificador, nem a espora e o cinturão.
De qualquer forma, como estamos no assunto não nos custa fazer
uma rápida alusão aos símbolos citados. Cirlot
adverte-nos de que o simbolismo das vestimentas, incluindo as roupas,
os armamentos defensivos, os penteados e enfeites dos mais variados
tipos, poderia ser motivo de uma monografia, devido à complexidade
do assunto. Afinal, um enfeite pode diferenciar-se simbolicamente
em função do local onde é usado ? cabeça,
cintura, punho, etc. ? da matéria com que é feito ?
ramos de agárico, loro, etc. ? do valor estético concernente
a cores, metais, pedras preciosas, etc. Essa advertência, ao
mesmo tempo em que nos conscientiza da pouca importância de
nossa contribuição nesse aspecto, nos dá a certeza
de que ao explicarmos o valor simbólico de determinadas vestes,
não fugiremos do contexto em que elas foram utilizadas.
A túnica simboliza o eu, a alma; o manto é uma espécie
de véu de separação entre a pessoa e o mundo.
Ao dar-se à túnica e ao manto uma determinada cor, dá-se-lhes
um valor simbólico diferente. A túnica branca dada ao
jovem medieval quando de seu ingresso na cavalaria, após o
banho, simbolizava a pureza do cavaleiro, e o manto vermelho, o sangue
que eventualmente derramaria em defesa de princípios consagrados
pelo ideário cavaleiresco: honra e dignidade.
O cinturão e a espora, ao contrário da túnica
e do manto, possuíam uma utilidade prática mais significativa
dentro do contexto medieval. O cinturão servia para segurar
a espada à cintura e a espora para picar o animal de montaria,
excitando-o para que arremetesse contra os adversários, no
caso de uma batalha. Simbolicamente o cinturão representa as
virtudes morais da pessoa e a espora é o símbolo da
força ativa, protege o ponto vulnerável, o tendão
que emprestou o nome do herói legendário Aquiles. Sendo
de ouro, a espora dava ao seu usuário um tom de superioridade,
pois, pela explicação da alquimia, o sol, de tanto girar
em redor da terra, teria fiado nela o ouro. Dessa forma o ouro é
a imagem da luz solar e, conseqüentemente, da inteligência
divina. Portanto, o ouro simboliza todo o superior. Um cavaleiro medieval
era superior dentro da hierarquia de valores estabelecidos na sociedade
de sua época; recebendo uma espora de ouro era superior dentre
os superiores.
Vistas essas generalidades e lembrando que o ritual para armar-se
um cavaleiro variava muito, tanto em função da região
onde se processava como em razão das circunstâncias em
que eram realizadas, passemos em revista, a maneira como Lopes tratou
essa questão, esperando, com isso, contribuir para esclarecer
a forma como se realizava uma sagração de cavaleiro
especificamente em Portugal.
Somente os homens podiam armar cavaleiros, uma mulher, jamais, mesmo
que fosse rainha. Lopes conta que quando Nuno Álvares foi levado
à Corte por seu pai, o prior Álvaro Gonçalves
Pereira, a rainha Dona Leonor deliberou dar-lhe as suas primeiras
armas. Com a aquiescência do rei e para grande satisfação
sua, Nuno Álvares, de fato, foi armado pela rainha, todavia,
não foi feito cavaleiro e sim seu escudeiro. É interessante
abrirmos aqui um parêntesis para dizer que Nuno Álvares
Pereira tinha nessa época apenas treze anos, sendo, portanto,
difícil encontrar armas convenientes para ele. O problema somente
foi resolvido quando alguém se lembrou de que o Mestre de Avis
quando moço tinha um arnes que provavelmente lhe serviria e
a rainha mandou pedi-lo para dar-lho a Nuno Álvares. Muito
mais importante, nesse caso, que a resolução do problema
em si, está o fato de Lopes ter estabelecido aí, diga-se
de passagem, de forma muito sutil, o primeiro elo entre o Mestre e
o futuro Condestável.
Voltando às particularidades portuguesas no procedimento de
armar cavaleiros, tomemos como referência a idade de Nuno Álvares
Pereira, acima mencionada, para discutirmos quando se dava o ingresso
do jovem na cavalaria. Embora encontremos nas Ordenações
Afonsinas que os menores de catorze anos não poderiam ser armados
cavaleiros, isso jamais se constituiu em regra
geral. Não foram os 13 anos de Nuno Álvares que o impediram
de tornar-se cavaleiro, muito embora em sua idade o normal era que
o jovem se tornasse mesmo um escudeiro. Senão, vejamos outros
casos:
Quando vagou o mestrado da Ordem de Avis pelo falecimento de Dom Martim
de Avelal, Dom Nuno Freire, Mestre da Ordem de Cristo e tutor de D.
João, filho bastardo do rei D. Pedro, dirigiu-se ao monarca
pedindo-lhe que preenchesse aquele cargo com a nomeação
desse seu filho. O rei aquiesceu e:
“Então tomou o moço o mestre nos braços,
e tendo-o em eles, lhes cingiu el-rei a espada e o armou cavaleiro.
E beijou-o na boca lançando-lhe a benção...”
D. João tinha sete anos quando foi feito cavaleiro e Mestre
de Avis. Embora se reconheça aqui uma exceção
? pois, além de ser filho de rei, para ser mestre de uma ordem
militar-religiosa era preciso ser cavaleiro ? a idade não era
um fator decisivo na armação do cavaleiro. E, da mesma
forma que uma pessoa podia tornar-se cavaleiro com menos de catorze
anos, também poderia sê-lo em idade mais madura. Na verdade,
a questão da idade era muito relativa e, inclusive, de somenos,
pois é evidente que em agosto de 1385, precedendo a batalha
de Aljubarrota, D. João I, rei de Portugal, não estava
nem um pouco preocupado com esse detalhe e “fazia cavaleiros
a todos que queriam”. Ora, se armava a todos aqueles que queriam
ser cavaleiros fica descartada a exigência de uma idade fixa
para o ingresso na Ordem da Cavalaria. Da mesma forma, é praticamente
certo que tivessem idades diferentes os cem cavaleiros armados por
D. João I, de Castela, quando foi coroado rei. Em resumo, o
que estamos querendo demonstrar é que se tivesse que ser respeitada
uma idade mínima ou máxima para o ingresso na cavalaria,
não poderia haver a armação coletiva de cavaleiros,
ao menos da forma como foram feitas as duas acima citadas.
Mas essas duas últimas menções à armação
coletiva de cavaleiros não se prestam apenas para a demonstração
que fizemos, elas suscitam outros esclarecimentos. Sobre a afirmação
de que D. João I fazia cavaleiros a todos que queriam, devemos
lembrar que a guerra contra Castela motivara um grande desfalque na
nobreza portuguesa, pois muitos, sem consciência de nacionalidade,
mas ainda presos aos laços de vassalagem, bandearam-se para
o lado castelhano. Isso, evidentemente, abriu inúmeras oportunidades
para a constituição de uma nobreza nova, cujos lugares
iam sendo ocupados especialmente através da armação
de cavaleiros. Todavia, a frase: “fazia cavaleiros a todos que
queriam” não deve ser tomada ao pé-da-letra, não
quer dizer que o rei ia armando cavaleiro indiscriminadamente a qualquer
um. Para ser cavaleiro era preciso ter as armas e, principalmente,
um cavalo. Esses requisitos impediam o acesso da grande maioria dos
combatentes e faziam com que apenas aceitassem a honraria aqueles
que reunissem as mínimas condições para tal.
Quer dizer, apesar da grande abertura nem todos os que queriam podiam
se tornar cavaleiros. A outra afirmação, a de que o
rei de Castela, D. João, armara uma centena de cavaleiros no
dia em que foi coroado, também merece algumas considerações.
Em primeiro lugar devemos ter em conta que a sagração
do cavaleiro coincidindo com a coroação do rei, marcava
a cerimônia de forma indelével. Além disso, não
podemos ignorar que armando-se os cavaleiros na mesma oportunidade
em que era coroado o rei, aproveitava-se a festividade, engrandecendo-a
e evitavam-se as enormes despesas decorrentes de cerimônias
isoladas.
Lopes nos oferece um único exemplo em que um cavaleiro foi
armado com grandes festividades. Por ser o caso mais completo, embora,
convenhamos, exagerado em relação ao que conhecemos
através de outras fontes, vamos nos ater a ele mais demoradamente.
Para armar cavaleiro e fazer conde a João Afonso Telo, o rei
D. Pedro I, de Portugal, mandou lavrar seiscentas arrobas de cera
para que delas fossem feitos círios e tochas. Exagero do cronista
à parte, eram aproximadamente nove mil quilos de matéria-prima
que resultaram em cinco mil peças, dadas cada uma a um homem
que as segurava acesas enquanto o rei e seus acompanhantes ? fidalgos
e cavaleiros ? percorriam, dançando alegremente, o trajeto
que ligava o Mosteiro de São Domingos, onde João Afonso
havia velado suas armas, aos paços de Lisboa, dançando
alegremente. O cronista nos informa ainda que o conjunto dos círios
acesos provocava grande claridade, da qual aproveitaram-se os dançarinos
por boa parte da noite. No outro dia a festividade continuou. Nas
proximidades do mosteiro aludido, foram armadas grandes tendas onde
se encontravam em abundância pão cozido e tinas de vinho.
Fora, vacas inteiras eram assadas em espetos para satisfazer a todos
os que desejassem.
Como se pode deduzir, uma festa caríssima, na qual não
se perdeu a oportunidade de armarem-se outros cavaleiros, os quais
Lopes não designou pelos nomes. Por certo, também, deve
ter havido torneio e muitos jogos, usuais nas oportunidades em que
as sagrações eram festivas.
Essas pompas, entretanto, não eram a regra; mesmo alguns reis
foram armados cavaleiros sem cerimônias, através de atos
bem simples, normalmente antecedendo a uma batalha. O rei D. Pedro
I, de Castela, por exemplo, foi feito cavaleiro juntamente com muitos
outros não identificados, pelas mãos do Príncipe
de Gales quando estava prestes a batalhar contra seu meio-irmão,
D. Henrique. E que dizer sobre a sagração de D. Fernando?
Na oportunidade em que se preparava para uma batalha contra o seu
vizinho castelhano, D. Fernando, que contava nessa oportunidade com
a ajuda dos ingleses, armou vários cavaleiros, tanto portugueses
quanto os seus aliados. Tudo normal e até certo ponto comum
- como já referimos, a sagração era um estímulo
aos combatentes - e até mesmo legal do ponto de vista jurídico
se considerarmos que D. Dinis, em 1305, havia limitado ao rei o monopólio
de armar cavaleiros. Mas, embora essa centralização
tenha retirado “à cavalaria todo o carácter de
instituição feudal, para a transformar numa élite
diretamente submetida à vontade do rei”, sua aplicação,
na prática, dependia de outras regras, dentre as quais se destaca
aquela que tornava inadmissível que alguém, não
pertencente à Ordem, armasse um cavaleiro. Então, quando
alguém lembrou esse fato, tudo voltou ao ponto de partida e
o rei foi constrangido a repetir toda a cerimônia após
ele próprio ter sido armado cavaleiro pelas mãos do
conde de Cambridge.
3. A HOMENAGEM E O JURAMENTO DE FIDELIDADE
A homenagem e o juramento de fidelidade constituíam-se em
atos importantes dentro do relacionamento sócio-político
medieval, e estavam mais ou menos generalizados em toda a Europa Ocidental
a partir do século XI. Tal generalização não
representava, todavia, a homogeneidade nem da cerimônia e nem
da sua significação, que, uma e outra, variavam de região
para região. Se tais atos, por exemplo, se formalizassem em
regiões onde houvesse o feudalismo clássico, diríamos
que estava se realizando um contrato vassálico. Ao contrário,
se ocorressem em regiões onde o feudalismo não se estabelecera
em toda a sua plenitude, diríamos que a homenagem e o juramento
de fidelidade constituíam-se simplesmente em atos de submissão,
principalmente ao soberano. Portugal, pelo que averiguamos nas crônicas
de Lopes, enquadrava-se, àquela época, neste último
caso, e é isso o que procuraremos provar a seguir, não
perdendo de vista que ambos os atos revestiam-se de um simbolismo
muito forte.
O CONTRATO VASSÁLICO
Antes de tomarmos a crônica de Lopes como nosso norte para
abordarmos os atos de homenagem e do juramento de fidelidade, desejamos
esclarecer como se processava o contrato vassálico, não
somente porque o enunciamos acima, mas principalmente para que o tenhamos
como paradigma a balizar as diferenças que encontraremos. Para
tanto vejamos trecho de um documento de 1127, em que o conde da Flandres,
Guilherme da Normandia, acolheu os vassalos de seu antecessor:
“Em primeiro lugar, prestaram homenagem da maneira seguinte:
o conde perguntou ao futuro vassalo se queria tornar-se seu homem,
sem reserva, e este respondeu: 'quero'; depois, estando as suas mãos
apertadas pelas do conde, aliaram-se por um beijo. Em segundo lugar,
aquele que havia prestado homenagem fez compromisso da sua fidelidade
ao 'avant parlier” do Conde, nestes termos: 'Prometo, pela minha
fé, ser, a partir deste instante, fiel ao conde Guilherme e
guardar-lhe, contra todos e inteiramente, a minha homenagem, de boa
fé e sem dolo; em terceiro lugar jurou o mesmo sobre as relíquias
dos santos.”
A homenagem precedia ao juramento de fidelidade e consistia, como
se pode verificar no trecho supratranscrito, na auto-entrega de um
homem a outro. Em primeiro lugar o vassalo, normalmente ajoelhado,
colocava suas mãos entre as do senhor e em seguida pronunciava
sua vontade de tornar-se seu homem. As palavras constituíam-se
no elemento de menor importância numa sociedade em que a capacidade
de abstração era pequena e onde prevalecia o ato concreto.
Tão forte era o significado do gesto que as palavras tornavam-se
desnecessárias. Finalmente a homenagem era encerrada com o
beijo, que significava a ligação, a aliança entre
dois homens envolvidos no contrato vassálico, como se pode
verificar pelo texto acima. Feita a homenagem, vinha então
a segunda parte da cerimônia, que consistia no juramento de
fidelidade, muitas vezes feito sobre relíquias, como demonstrado
no exemplo acima.
O contrato vassálico, no dizer de Ganshof, era sinalagmático,
quer dizer, bilateral, criava obrigações para ambas
as partes. Essas obrigações mútuas, embora estivessem
longe de ser isônomas, com o tempo passaram a ser reguladas
quantitativamente, prescreviam compromissos bem caracterizados que
se resumiam, basicamente, no arrendamento de terras e no oferecimento
de proteção da parte do senhor, e na prestação
de serviços, dentre os quais destaca-se o militar, da parte
do vassalo. O arrendamento de terras, quer dizer, a concessão
do feudo era, portanto, a base material de sustentação
do contrato vassálico. A terra, de certa forma, constituía-se
na medida do poder. Sem a distribuição de terras não
havia como estabelecer as relações feudo-vassálicas.
DA INEXISTÊNCIA DO CONTRATO VASSÁLICO EM PORTUGAL
Vistas essas generalidades, podemos voltar às crônicas
de Lopes discutindo, inicialmente, a inexistência, ao menos
em mãos da nobreza portuguesa, da base material que dava sustentação
ao contrato vassálico. Ou seja, aos nobres não era dada
a posse da terra em definitivo de modo que eles pudessem repassá-las
a seus confrades, criando assim as condições básicas
para o desenvolvimento do feudalismo. Em Portugal, mesmo os reis,
que exerciam uma espécie de monopólio na concessão
de dádivas em troca da homenagem, preferiam, ao invés
de terras, distribuir pensões monetárias. D. Pedro I,
por exemplo,
“...foi grande criador de fidalgos de linhagem porque naquele
tempo não se costumava ser vassalo senão filho e neto
ou bisneto de fidalgo de linhagem. E por usança haviam então
a contia, que ora chamam maravedis, dar-se no berço, logo que
o filho do fidalgo nascia; e a outro nenhum não. Este rei acrescentou
muito nas contias dos fidalgos depois da morte del-rei seu pai...”
Grande criador de fidalgos, o rei era o chefe incontestável
da casa senhorial portuguesa; ele estabelecia o número de vassalos
que deveria ter, a importância da pensão e, mais, não
permitia que a sucessão fosse hereditária, como vemos
no exemplo a seguir:
“Acrescentou nas contias aos fidalgos e vassalos, como dissemos,
cá o vassalo não havia antes, de sua contia, mais de
setenta e cinco libras. E el-rei Dom Pedro lhes pôs cem, que
eram quinze dobras cruzadas, dobras mouriscas. E por esta contia havia
de ter o vassalo cavalo recebondo [sic] e loriga com seu almofre;
e à sua morte, ficava o cavalo e loriga a el-rei, de lutuosa.
E dava-o el-rei a quem sua mercê era, em guisa que com aquele
cavalo e armas, posta contia a outro vassalo, ficava sempre o conto
dos vassalos certo e não minguado.”
Esse texto não nos deixa dúvidas sobre o assunto. Em
Portugal, os vassalos eram diretamente dependentes do rei e quando
a instituição da vassalagem tomava o caminho da hereditariedade,
era logo corrigida. Também quando havia alguma desorganização
na instituição, era sanada, tão logo fossem sanadas
as causas geradoras do problema, tanto assim que Lopes conta que,
no início do reinado de D. João I, tendo em vista o
acúmulo de suas atribuições em virtude da guerra
contra Castela, os combatentes portugueses sem contias não
se constituíam em vassalos del-Rey. Os comandantes recebiam
soldo de acordo com as lanças que possuíam. Mas tão
logo pôde, D. João I restabeleceu as pensões,
alterando, inclusive, algumas regras antigas. Vejamos primeiramente
como eram dadas as contias antes de D. João I, para depois
vermos as mudanças que em seu tempo se processaram:
“E em tempo dos outros reis nom era assy; mas os fidalgos auyam
as contias, e a estes chamauom vassallos del-Rey; e a cada huum fidalgo
el-Rey ordenaua que seruisse com çertas lamças, quando
mester ouuese; e segundo que cada huum era de fidalgo ou estado, assy
lhe hordenaua el-Rey as lanças que ouuesse, e pera tantas l(h)e
dauom cada ano contya, e elle podia tijrar e poer qualquer lança
que quysesse ata aquell conto, afora a contya que el auya pera seu
corpo; e sse alguum leuasse mais lanças das que lhe eram hordenadas,
nom lhe dauom soldo pela ellas. E a todos os filhos lidemos dos fidalgos,
como lhe nacyam, logo o escrivyam das contijas - que chamauom marauidijs
- se o soubesse ou lho sseu pay mandasse dizer, logo lhe mandaua a
casa a carta da contya que auya dauer pella taxa da que seu pay auya,
sem mais emmenta nem outro sinal del-Rey, dizendo o que lha leuaua:
Manda-uos aquy Foaão, escriuam dos marauidis, a carta da contia
pera o filho que uos naçeo, e manda-uos pedir aluisera. Emtam
poinha a ca(r)ta nos peitos do menino (...) e quamtos filhos naçiam
ao fidalgo tamtas cartas lhe mandauom daquella guissa. E quando el-Rey
depois tomaua alguuns destes fidalgos, acreçentaua-lhe na contia
aquello que sua me(r)çee era, e se moria o padre, ficaua o
mayor filho na sua conthia...”
Agora, para efeito de comparação, vejamos como D. João
I estabeleceu as contias:
“E entam hordenou el-Rey de poer contias aos fidalgos, nam como
os outros reix, segumdo disemos, que a dauam ao pay e ao fylho, como
lhe nasçia; mas a llança do corpo do fidalgo do mais
pequeno estado, escryta no liuro del-Rey, mamdou que ouuesse myl lyuras,
e aquel (que) o acompanhaua avia seteçemtas; e asy pos aos
fidalgos poucas ou muytas, segumdo que cada huum era. E nam que a
ouuese o filho como naçesse, saluo depois que ouuese hidade
que podesse servir; e entam lhe assentauam sua contya segundo aquella
que o pay avya, porem sempre mays pequena”
As diferenças, como podemos notar, não são estruturais,
dizem respeito tão somente a adaptações que davam
à organização um tom mais profissional. Afinal,
para que pagar pensões a recém-nascidos, inaptos à
prestação de serviços? Quer dizer, as modificações
introduzidas não passavam de aperfeiçoamentos na organização
da instituição vassálica que, como se pode verificar,
não se processava a esmo. Lopes inclusive faz menção,
como consta acima, ao escrivyam das contijas, cargo ao qual estavam
vinculados, evidentemente, os assuntos dessa natureza. Sabemos também,
através de Lopes, da existência de livros onde estavam
devidamente relacionados todos os vassalos do reino, segundo as comarcas
onde habitavam. Tanto é verdade que quando o Mestre de Avis
foi nomeado pela rainha Dona Leonor, logo no início de sua
regência, para servir na fronteira de Castela, em Ribas de Odiana,
pediu-lhe mais gente para cumprir satisfatoriamente a sua missão,
ela mandou que lhe trouxessem o livro de vassalos daquela comarca,
para que fossem dados ao mestre “quamtos e quaaes o Meestre
rrequeresse”.
Finalmente, para concluirmos essa nossa demonstração
de que a vassalagem era uma espécie de monopólio real,
queremos lembrar a desavença ocorrida em 1396, entre D. João
I e o seu condestável Nuno Álvares Pereira, por razão
da posse da terra que, como temos enfatizado, era a base material
dos laços de dependência de homem para homem.
Durante o período de guerra com Castela, D. João I parece
ter assumido à risca a máxima de Álvaro Paes,
já mencionada por nós, de que para ser bem sucedido
deveria dar aquilo que não lhe pertencia e prometer o que não
tinha. Tanto é verdade que somente ao condestável, dizia-se
àquela época, teria dado a metade do reino. Exageros
à parte, a verdade é que Nuno Álvares tornou-se
possuidor de muitas terras; tantas, que assim que vislumbrou a possibilidade
de paz duradoura entre os dois reinos beligerantes, resolveu dividir
parte do que havia recebido do rei com aqueles que estiveram consigo
na guerra contra Castela. E assim de fato procedeu, concedendo a vinte
de seus companheiros boa parte das terras que havia ganho, com as
rendas de cada localidade. Ora, Nuno Álvares se tornaria, sem
dúvida, com essa divisão, um grande suserano, e se a
relação de dependência que estava criando assegurava
fidelidade ao rei enquanto vivesse, nada se poderia dizer a respeito
após a sua morte. É inquestionável que Nuno Álvares
Pereira, na medida em que estabeleceu como recíproca que cada
um, de acordo com as terras recebidas, “avia de ter çertos
escudeiros pera seruyço de el-rei e seu”, estava rompendo
a tradição de que os vassalos eram diretamente ligados
ao rei e instituindo uma nova relação de dependência
que estaria muito bem identificada com o feudalismo puro. Isso, evidentemente
trouxe à tona a discussão de problemas inerentes ao
assunto, o que, aliás, Lopes interpretou anacronicamente, porque
atribuiu-os à inveja de algumas pessoas.
Na realidade Lopes parece não ter compreendido que estava em
pauta uma nova concepção de Estado e que o conflito
entre Nuno Álvares e João das Regras era, portanto,
fundado em princípios de organização social e
não no deletério sentimento da inveja. Victor Deodato
da Silva, embora reconhecendo que o conflito entre os dois esteja
ainda obscuro, ofereceu uma explicação que ele admite
provisória, mas que julgamos muito convincente: o legista João
das Regras não teria sido o porta-voz de uma classe mas teria
agido como funcionário régio, defendendo os interesses
da Coroa. Nuno Álvares, por sua vez, imbuído dos valores
cavaleirescos assimilados provavelmente graças ao longo contato
com os ingleses, seria o defensor de procedimentos feudais, de certa
forma reacionários, porque os procedimentos feudo-vassálicos,
naquela época, encontravam-se em decadência por toda
a Europa. Nuno Álvares e João das Regras, portanto,
poderiam até não representar os interesses de grupos,
mas encarnavam, cada qual, concepções que, embora naquele
tempo passassem desapercebidas pelos coevos, inclusive Lopes, os identificavam
muito bem: o primeiro com a nobreza senhorial, defensora obviamente
das relações feudo-vassálicas; o segundo com
os legistas, que em toda a Europa assumiam posição francamente
favorável ao fortalecimento do poder real.
Essa crise resultou na derrota de Nuno Álvares e conseqüentemente
de toda a nobreza portuguesa com pretensões de estabelecer
em Portugal relações feudo-vassálicas. D. João
I convocou a Corte para deliberar sobre essa importante questão.
Nuno Álvares, principal beneficiário das concessões
de terras, defendeu na oportunidade que o rei não poderia tirá-las,
porque aqueles que a receberam a mereciam por serviços prestados
e pelos que prestariam se necessário fosse. Do outro lado,
defendendo posição contrária, estavam os que,
segundo Lopes, tinham inveja do Condestável ou eram bajuladores
do rei. Vendo-se derrotado, Nuno Álvares retirou-se e pretendeu
até abandonar o reino, não fosse o acordo que o beneficiou:
“...foy hordenado que el-Rey tomasse pera sy todollos vassallos
que o Comde e outros fidalgos tynhaão, e que outrem nam teuese
vassalos nenam elle; e que o Comde tomasse pera sy as terras que ja
dissemos que dera, o que elle fez contra sua voantade, mas nam pode
hy al fazer. E como as terras foram tiradas, el-Rey pos a todos suas
contias; e asy ficou o Comdestabre asessegado naquellas que tinha
de juro e derdade, mas as que eram daprestemo lhe foy forçado
de leixar.”
Quer dizer que a perspectiva criada pela crise dinástica portuguesa
de 1383-1385, de se estabelecer relações feudo-vassálicas
em Portugal, foi logo abortada por iniciativa do rei e do grupo que
o assessorava em questões administrativas. O doutor João
das Regras, formado em Bolonha, grande centro irradiador do Direito
Romano, conseqüentemente das idéias de fortalecimento
do poder real, sem dúvida alguma foi o expoente desse grupo,
mas com certeza não esteve só. Trabalhou ao longo de
todo o reinado de D. João I com bons oficiais da administração,
além de contar também com a colaboração
de mestres e alunos da Universidade de Lisboa. Aqueles que haviam
recebido terras passaram a receber, como todos os vassalos do rei,
as contias, ou seja, uma pensão estipulada de acordo, como
vimos, com a importância hierárquica do beneficiário.
Essa era a regra geral em Portugal, a concessão de uma pensão
em dinheiro, o que não quer dizer que não houvesse a
doação de terras como retribuição, mas
essa última hipótese constituía-se na exceção.
De qualquer forma, mesmo desconsiderando a existência do contrato-vassálico
em Portugal com todas as suas implicações jurídicas,
não podemos deixar de admitir que a concessão das pensões
levava à constituição de uma clientela muito
ciente dos compromissos de fidelidade ao senhor.
A existência dessa clientela foi por certo largamente responsável
para sustentar a teoria recentemente defendida por José Mattoso
de que o feudalismo teria existido efetivamente em Portugal. Contrariando
praticamente todos os medievalistas portugueses, historiadores da
envergadura de Herculano, Paulo Merêa, Gama Barros, Torquato
de Souza Soares, Marcelo Caetano, Armando Castro, entre outros, Mattoso
defende que a utilização do conceito de feudalismo é
mais correta do que a sua negação para caracterizar
as estruturas mentais, políticas, sociais e econômicas
portuguesas. Para tanto, nega-se a tomar o feudalismo francês
como protótipo e, em conseqüência, alegando que
as modalidades feudais podem ser muito diversas, admite que num lugar
o feudo pode ser uma terra e em outros uma compensação
periódica em bens móveis (como as contias em Portugal);
em certas regiões a hereditariedade é fundamental e
em outros é precária; em certos reinos o juramento feudal
constitui-se em um ritual pormenorizado com acentuada forma sagrada
e em outros num simples beija-mão; em certas partes o contrato
vassálico materializa-se num documento escrito, noutras num
acordo verbal. Finalmente, admite que nem mesmo a hierarquização
das relações, a chamada “pirâmide feudal”,
é necessária para caracterizar a existência do
contrato feudal. Nessas condições o próprio Mattoso
reconhece que sua interpretação de feudalismo não
pode referir-se às instituições, mas como mostrou
Georges Duby, a “uma forma de ver e de pensar a realidade particularmente
nos seus aspectos sociais”.
A partir do exposto acima podemos inferir que somente forçando
um pouco alguns conceitos é que se pode admitir a existência
do feudalismo em Portugal. Foi o que fez Mattoso, justificando sua
atitude com a argumentação de que em termos estritamente
jurídicos, a área do feudalismo propriamente dito, isto
é, aquela onde vigorou no seu pleno rigor o contrato feudo-vassálico,
torna-se extremamente reduzida. Mesmo que admitíssemos a existência
desse tipo de feudalismo postulado por Mattoso, não haveríamos
de mudar a opinião que defendemos acerca da inexistência
do contrato-vassálico em Portugal, pois entendemos que a sua
contribuição, tenha apenas endossado a posição
há muito assumida pelo professor Merêa, ao afirmar que
o assunto sobre a existência ou não do feudalismo em
Portugal está encerrada, a não ser que se queira dar
ao termo “um sentido demasiadamente vago”. Ao longo de
nossa pesquisa não nos ficaram dúvidas sobre a existência
de vínculos de vassalagem entre os nobres, mas “ao contrário
do que sucedeu nos países caracteristicamente feudais, a instituição
da vassalagem conservou sempre o seu carácter essencialmente
pessoal...”.
Para encerrarmos queremos tomar um dialogo narrado por Lopes que nos
vem à propósito. Um escudeiro português, que levara
uma mensagem de desafio formulada por Nuno Álvares Pereira
ao Mestre da Ordem de Santiago, passou por uma espécie de interrogatório
enquanto desfrutava da hospitalidade normalmente oferecida pelos adversários
aos mensageiros: perguntado inicialmente “que homem soees?,
ele respondeu: “Saão vassalo del-rey de Portugal (...)
e criado do Comdestabre”. Quer dizer, se um escudeiro considerava-se
vassalo direto do rei e apenas criado do condestável, que dizer
de senhores hierarquicamente melhor situados?
A FIDELIDADE NA PRÁTICA COTIDIANA
Os compromissos de fidelidade na prática cotidiana que aparecem
nas crônicas de Lopes referem-se, em sua esmagadora maioria,
aos casos de submissão ao soberano. São raros os exemplos
de exceção a essa regra, ou seja, a submissão
de um senhor a outro, como no feudalismo puro. De qualquer forma,
trataremos ambos os casos separadamente, embora o espírito
virtuoso emprestado ao termo seja o mesmo. Basta-nos lembrar, para
comprovação do enunciado, que mesmo no tempo de D. Duarte,
quando o reino português já se encontrava em situação
bem diferente daqueles abrangidos pelas crônicas de Lopes, tendo
a cavalaria se tornado uma “categoria social puramente honorífica”,
esse rei escreveu um livro ao qual denominou “Leal Conselheiro”,
classificado por ele próprio como um “ABC da Lealdade”.
Quer dizer que esse princípio, apesar da inexistência
do contrato vassálico em Portugal, era levado muito a sério.
Iniciemos a nossa abordagem pela prática da fidelidade ao soberano
para depois abordarmos a fidelidade de um senhor a outro.
A FIDELIDADE AO SOBERANO
Para começar, evoquemos as circunstâncias nas quais
Nuno Álvares Pereira tornou-se vassalo do rei D. João
I, não por uma mera coincidência, mas por ser o mais
poderoso homem do reino português que aparece nas crônicas
de Lopes, depois dos reis, evidentemente. A narração
a seguir reporta ao início da crise sucessória aberta
em Portugal com a morte de D. Fernando, em 1383:
“Senhor, gramdes dias ha que eu muito desegei e desejo de vos
servir, e nom foi minha vemtuira de o ataa este tempo poder fazer;
e porque hora vos sooes em tall pomto e estado, que cuido que poderei
cobrar o que tamto desejava, eu vos offereço mim e meu prove
serviço com mui booa voomtade; e vos peço por merçee,
que daqui em deamte me ajaaes por todo vosso quite, servimdo-vos de
mim em todallas cousas, come dhomem que pera ello seerei mui prestes.”
Vos peço por mercê, disse Nuno Álvares, que daqui
em diante me tenhas por vosso, quer dizer, ele entrega-se de livre
e espontânea vontade. E o Mestre, segundo a continuidade da
narração, de muito boa vontade o recebeu por seu, como
se propunha o futuro condestável. Lopes não fez referência
aos atos concretos das mãos do novo vassalo entre as do suserano
e nem do beijo, que tendo se verificado ou não, neste caso,
pouca implicação traria em relação à
consumação do compromisso. Presumimos até mesmo
que as palavras proferidas no momento poderiam ser um pouco diferentes,
mas que o cronista as tenha colocado como melhor entendeu. De qualquer
forma o que fica patente é que o condestável prestou
a homenagem, não constando no texto que teria feito o juramento
de fidelidade. Mas se Lopes nos privou dessa informação,
por outro lado colocou na boca de Eyrea Gonçalves, mãe
do condestável, palavras que denotam a expectativa de uma fidelidade
que extrapola a própria noção de serviço
feudal:
“Filho, eu vos rrogo e vos emcomemdo por a minha bemçõ,
que pois vos escolhestes o Meestre pera o servir e ficar com elle,
que vos o sirvaaes sempre b e verdadeiramente, e vos nom partaaes
delle em nenh ua guisa, por cousa que av ir possa...”
Essas palavras da mãe do condestável, que aliás
no princípio era contrária à decisão do
filho, abre-nos a possibilidade de comentar que o juramento de fidelidade,
realizado desde a segunda metade do século VIII, consagrou-se
em virtude da necessidade que o senhor sentia em obter do vassalo
uma garantia ainda mais firme que a proporcionada pela homenagem.
O juramento constituía-se no coroamento da promessa formal
que o vassalo fazia de cumprir com todas as obrigações
inerentes à posição que ocupava na hierarquia
social. De pé, com as mãos sobre o evangelho ou sobre
uma relíquia qualquer, o novo vassalo comprometia-se não
somente perante os homens, mas perante Deus, em ser fiel ao seu suserano.
E é nesse particular que reside a importância maior do
ato: o juramento pressupunha um compromisso com a própria divindade.
O desrespeito significava cair em pecado mortal, o que, sem a menor
dúvida, representava, para a mentalidade coeva, uma ameaça
concreta de penar no inferno. Isso quer dizer que um juramento na
Idade Média tinha uma força muito grande, compreensível
apenas se tivermos em conta o imaginário religioso que impregnou
o período.
Ora, não era esse, evidentemente, o sentido da homenagem prestada
por Nuno Álvares a D. João, não se tratava da
realização de um compromisso feudal formal. Na verdade
o ato refletia o compromisso de adesão política. E assim
como ocorriam adesões ao partido do Mestre, formalizavam-se
também compromissos com a sua virtual adversária, a
Rainha Dona Leonor. No início da crise sucessória, a
Rainha, ao partir de Alenquer para Santarém, proferiu as seguintes
palavras aos homens bons da localidade que estava deixando:
“...'Amigos, bem sab es como esta villa he minha, e vos outros
todos sooes meus desi veedes bem ho alvoroço de Lixboa como
sse levamtarom com ho Meestre, que nom ssei, disse ella, se he meestre
de troos, sse de bombardas. E maravilhome qual foi a sanha ou samdiçe
que os fez demover a tall cousa. Porem vos nom curees da samdice delles,
nem do levamto que fezerom, mas seede boõs e leaaes como sempre
fostes, e farees muito de vossa proll e homrra, e a mim serviço
por que vos sempre farei muitas merçees quamdo me per vos forem
rrequeridas'. Responderom estomçe todos, e disserom que a villa
e elles todos eram seus e pera seu serviço; e que outra voz
nom tomariam salvo a sua, nem fariam outro mamdado se nom o seu, come
sua senhora era.”
Quem afinal eram esses seus homens? A referência que Lopes faz
a homens bons, apesar de não ser suficientemente esclarecedora,
pois tanto poderiam ser fidalgos como cidadãos não nobilitados,
leva-nos a crer que incluía essas duas categorias. Quer dizer,
no meio dos homens bons que assumiram o compromisso de serem fiéis
à rainha, poderiam estar muitos fidalgos, seus vassalos, mas
não porque a categoria de homem de, isto é, homem dependente
de outrem, significasse necessariamente vassalo de. Portanto, seus
homens poderiam ser simplesmente aqueles que se comprometeram em servi-la
em caso de guerra, da mesma forma que se tornaram do mestre os habitantes
de Almada quando este lá esteve com o objetivo de recebê-los
como tal.
Tomemos agora um outro exemplo: após o término da guerra
civil castelhana, quando D. Henrique de Trastâmara matou o seu
meio-irmão D. Pedro e usurpou o trono, muitos nobres recusaram-se
a prestar homenagem ao vencedor, preferindo optar por tornarem-se
vassalos do rei português D. Fernando que, em virtude do parentesco
com o rei falecido, poderia, como o fez, reclamar para si a coroa
castelhana. Iniciava-se por esse motivo uma guerra entre Castela e
Portugal, e D. Henrique, juntamente com sua mulher, a rainha Dona
Joana, esforçavam-se para manter a antiga unidade do reino,
cercando as cidades cujos alcaides haviam se declarado favoráveis
ao rei português. E da mesma forma procediam os ocupantes dessas
localidades, defendendo-se a todo o custo. Nesse afã é
que a rainha, como vimos, cercou a cidade de Çamora. O alcaide
Afonso Lopes de Texeda, após alguns dias de cerco fez um acordo
com a rainha, D. Joana, estabelecendo que se dentro de determinados
dias D. Fernando não o socorresse, ele lhe entregaria a cidade
e por segurança dessa avença entregou seus dois filhos
como reféns.
Passado o prazo delimitado, como não tivesse vindo nenhum socorro,
a rainha reclamou a cidade, mas Afonso Lopes negou-se a entregá-la.
Então trouxeram seus filhos para as proximidades dos muros,
num local de onde podiam ser avistados pelos de dentro da cidade,
dizendo que os matariam se ele realmente continuasse se recusando
à entrega. Passa-se então uma cena dramática
retratada com muito vigor pela pena de Lopes: os filhos, chorando,
apelam para que o pai tivesse pena deles e que não os deixasse
morrer:
“Oo padre, por Deus e por mercee avee de nós doo, e nom
nos leixees assi matar! Oo padre senhor, daae esse logar, pois vos
nom veo acorro, e nom moiramos assi sem porque!”
A aflição dos filhos provocou uma intensa reação
dos presentes que, em altos brados, clamavam que o pai se compadecesse
dos filhos e não permitisse que fossem mortos. Mas tudo foi
em vão. Em resposta, Afonso Lopes, disse que se a rainha lhe
mandasse degolar os filhos que “ainda ell tiinha a forja e o
martello com que fezera aquelles, e que assi faria outros”.
Os rapazes foram mortos, aliás inutilmente, pois Afonso Lopes
não conseguiu manter o lugar para D. Fernando e acabou entregando-o
a D. Henrique.
Tal procedimento comportaria, com certeza, vários tipos de
análise. Poderíamos, inclusive, atribuir a teimosia
de Afonso Lopes em não entregar a cidade ao fato de ter sido
sitiado por uma mulher. Mas tal circunstância, de fato incomum,
não é sustentada por nenhuma evidência de ter
sido o elemento provocador da decisão de Afonso Lopes e, em
todo caso, não mereceu nenhum destaque especial por parte de
Lopes. Também poderíamos aproveitar o quadro para enfatizar
o poder do pater familias ou o teor violento da vida predominante
naquela época, para nos aproveitarmos de uma expressão
de Huizinga. A nossa conclusão sobre esse episódio,
porém, é a de que tal atitude estava relacionada com
a manifestação de fidelidade devida ao rei; do nosso
ponto de vista uma fidelidade esdrúxula, provocada provavelmente
pela interiorização deformada do conceito de lealdade
vigente por algum desvio psicológico e que, inclusive, nem
se enquadrava aos padrões da época, pois o próprio
Lopes, conhecedor evidentemente de muitos casos de manifestações
de atos lealdade, exacerbou-se com tal procedimento, dizendo que Afonso
Lopes utilizou-se de um “modo mui estranho, o quall nom he de
louvar come virtude mas façanha sem proveito, comprida de toda
cruelldade...”. De qualquer forma, fica patente a demonstração
de lealdade.
Vejamos agora um outro exemplo de fidelidade ao soberano, ocorrido
na mesma contenda entre D. Fernando, de Portugal e D. Henrique, de
Castela, envolvendo Nuno Gonçalves, que tinha sob sua guarda
o castelo de Faria e que se tornou prisioneiro dos castelhanos. Nuno
Gonçalves arquitetou um plano para impedir que seu filho, que
ficara com a guarda do castelo o entregasse aos inimigos: pediu a
Pero Rodrigues Sarmento, que o havia aprisionado, que o levasse diante
do castelo e ele pediria ao filho que lho entregasse em troca de sua
liberdade. Pedro Rodrigues não teve dúvidas em atender
ao pedido, mas, para surpresa de todos, ao invés de cumprir
o prometido, assim se pronunciou, no dizer de Lopes:
“Filho, bem sabes como este castello me foi dado por el-rrei
dom Fernando meu senhor, que o tevesse por elle, e lhe fiz por ell
menagem; e por minha desaventura eu sahi d'elle, cuidando de o servir,
e som ora preso em poder de sus emmiigos, os quaaes me trazem aqui
pera te mandar que lh'o entregues. E porque esto he cousa que eu fazer
nom devo, guardando minha lealldade, porém te mando, so pena
de minha b ençom, que o nom faças nem ho dees a nenh
ua pessoa se nom a el-rrei meu senhor que m'o deu, ca por te perceber
d'isto me fize aqui trazer; e por tormentos nem morte que me vejas
dar nom ho entregues a outrem, se nom a el-rrei meu senhor, ou a quem
t'o el mandar entregar per seu certo rrecado.”
Nuno Gonçalves, pelo seu atrevimento, foi morto ali mesmo,
na presença do filho, todavia, neste caso, o sacrifício
em nome da fidelidade ao soberano, não foi em vão pois
o castelo foi mantido. Tempos depois, tendo o moço optado pela
vida clerical, o castelo foi restituído a D. Fernando que,
na oportunidade, em retribuição à lealdade demonstrada
pelo seu pai o compensou com um “mui honrrado beneficio”.
Para não passarmos a idéia de que as manifestações
de lealdade ao soberano somente aconteciam no reinado de D. Fernando,
mencionemos ao menos um exemplo significativo, dentre os muitos, que
constam na Crônica de D. João I. Ele presta-se para demonstrar
a fidelidade de um nobre português, Airas Gomes, para com o
rei castelhano e é significativo, como dissemos acima, porque
além de reforçar a idéia que estamos defendendo
de que o vínculo vassálico se dava, especialmente, de
maneira direta com o soberano, demonstra também que o sentimento
nacionalista português estava muito longe de ser consensual.
Airas Gomes era bem idoso em 1385, quando o episódio se passou,
tanto é que faleceu logo em seguida ao seu desfecho e, assim
como a maior parte da nobre portuguesa antiga, defendia que o legítimo
rei de Portugal deveria ser D. João I, de Castela, em virtude
de seu casamento com Dona Beatriz, filha do falecido soberano D. Fernando.
O recém-eleito e coroado D. João I, de Portugal, por
sua vez, estava tenazmente envolvido na campanha que lhe garantiria
a posse do reino e decidiu tomar a cidade de Guimarães, cujo
alcaide era Airas Gomes. Antes porém de combatê-lo o
soberano português tentou aliciá-lo, propondo-lhe que
entregasse o castelo e se viesse para ele [se tornasse seu vassalo],
oferecendo-lhe algumas concessões, como veremos a seguir:
“El-Rey asesseguado, teue comselho de mandar dizer a Airas Gomez
que lhe quisesse dar o castello, e esto pera todallas razoões
que o a tal feito podiam demouer, dezemdo que bem sabia como era limdo
portugues el e todo seu linhagem, e que por homra e bem da terra dhu
era naturall deuia trabalhar de ajudar a defemder, posto que em ella
nenhuuma cousa teuesse, moormente seer nella herdado; como bem sabia
que trabalhar de seer comtra ella, e seer em ajuda de sua destruiçam
lhe pareçia cousa estranha, que porem lhe rogaua que da temçam
que tinha se quissse partir, e se ueesse pera ella com sua gemte;
e que lhe prometia dacreçentar tanto em elle em homra e estado
e acreçentamento de b ens que ele se ouuesse por bem comtemte,
ou que nomeasse quaaes cousas prazia de lhe outorgar, e que era ledo
de o fazer.”
D. João I, portanto, em troca da homenagem que lhe prestaria
Airas Gomes, oferecia-lhe mais honra e mais bens materiais, chegando
mesmo a propor-lhe que escolhesse aquilo que bem entendesse e ele
lhe daria. Quer dizer, mesmo sem excluirmos a possibilidade de um
blefe, podemos inferir que o contrato vassálico pressupunha
um troca mútua de favorecimentos. Mas isso tudo já foi
mencionado, o que realmente o texto traz de novo é o apelo
à nacionalidade. Quando D. João diz que bem sabia como
Airas Gomes era lindo português, ele queria dizer em linguagem
hodierna, puro, limpo. Todavia, o apelo à nacionalidade ainda
não encontrava eco, principalmente entre os membros da nobreza
mais antiga, como o idoso Airas Gomes, que conservava a noção
da honra e da dignidade, próprias da cavalaria.
E, justamente por isso, Airas Gomes, apesar de lindo português,
não aceitou nenhuma proposta de D. João I e defendeu
o castelo até que, percebendo que não poderia mantê-lo
sem ajuda, negociou nos seguintes termos: se o rei castelhano não
lhe viesse socorrer dentro de trinta dias, ele entregaria o castelo
e se iria com os seus para Castela e, no decorrer desse lapso de tempo,
os acastelados não poderiam sair para combater os portugueses
e nem para providenciar alimentos. Decorridos alguns dias da celebração
do acordo “leuamtou-se huum dia voz antre os portugueses, dizemdo
que os do castello metiam cabras e outros gaados dentro e quebrantauom
a preitesia...”. Foi o suficiente para que os portugueses atacassem,
colocassem fogo às portas e penetrassem na vila. D. João
I, que sesteava, acordou com o barulho, correu ao local, ordenou que
a ação fosse interrompida, mas mesmo assim não
convenceu Airas Gomes a desculpá-lo. Depois desse incidente
- relatado para mostrarmos a preocupação dos contemporâneos
com os seus compromissos - e vencido o prazo de trinta dias, estipulado
no acordo, sem que o rei castelhano o socorresse, Airas Gomes entregou
o local a D. João I, permanecendo todavia fiel ao seu soberano,
o rei D. João I, de Castela.
A FIDELIDADE ENTRE OS SENHORES
Para completarmos o quadro que estamos traçando, sem ficarmos
limitados aos exemplos de manifestação de lealdade ao
soberano enquanto símbolo da nação, tomaremos
agora alguns casos através dos quais verificaremos que a fidelidade
poderia também ser dedicada por um senhor a outro. Mas não
nos iludamos, os casos que conseguimos reunir nas crônicas são
poucos e as suas peculiaridades, como veremos, prestam-se mais para
demonstrar justamente o contrário, ou seja, que as relações
de dependência no reino português se davam, na realidade,
entre o senhor e o rei. De qualquer forma, mesmo não se caracterizando
nem a pirâmide feudal nem o entrecruzamento de homenagens, essenciais
para caracterizar um feudalismo típico, veremos que existia
a possibilidade de alguns pouquíssimos potentados possuírem
os seus vassalos.
Logo no início da triunfante campanha do Mestre de Avis, Martim
Afonso Valente, alcaide do castelo de Lisboa, negava-se a entregá-lo
ao mestre, alegando que prestara homenagem ao conde João Afonso,
irmão da rainha. Cercado o castelo, D. João mandou construir
um artifício de guerra, ao qual chamavam gata, e os lisboetas
juravam que colocariam nele, as respectivas mulheres daqueles que
se encontravam no castelo, caso ele continuasse se negando a entregá-lo.
Nesse clima de ameaça Nuno Álvares Pereira pediu licença
ao Mestre para ir conversar com Martim Afonso, objetivando convencê-lo
a entregar o castelo. E nesta conversa, embora sem nenhuma possibilidade
real de manter o castelo, Martim Afonso conseguiu realizar a convencional
preitesia com Nuno Álvares, da seguinte forma: se no prazo
de quarenta horas o conde João Afonso não o socorresse,
então ele entregaria o castelo. De fato, somente após
o mensageiro ter ido ao conde e voltado com a ordem de que poderia
entregar o castelo é que Martim Afonso sentiu-se desvinculado
do compromisso assumido e o entregou ao Mestre, num gesto paradigmal
de como devia ser o procedimento daqueles que estavam ligados a outrem
pelos laços da homenagem. Laços de homenagem que, se
nesse exemplo estão próximos da conduta feudo-vassálica,
não significavam exatamente que essas relações
desenvolviam-se em toda a sua plenitude em Portugal, pois mesmo nesse
caso cabem algumas ressalvas: o compromisso de Martim Afonso poderia
ser um ato restrito à guarda do dito castelo, sem outras implicações;
a fidelidade aqui parece-nos estar mais afeta ao partido político
que se formava em torno da rainha ? assim como concomitantemente havia
o partido do mestre ? do que propriamente em torno de qualquer tipo
de contrato vassálico; ademais João Afonso era irmão
da rainha, o que pode configurar que fosse seu representante e não
um mero senhor feudal.
Quando da guerra civil castelhana entre D. Pedro, o Cruel e Henrique
de Trastâmara, este último contava, em seu exército,
com uma companhia inglesa que, a soldo, combatia a seu lado. Ocorreu,
entretanto, que D. Pedro, praticamente batido, foi à Inglaterra
onde conseguiu reavivar sua esperança de reconquistar o trono,
graças a uma aliança que firmou com o rei inglês.
Voltou então à Castela, na companhia do Príncipe
de Gales, que comandava a força inglesa que arregimentara.
O comandante da companhia inglesa, Hugo de Carnaboi, ao saber da aproximação
do príncipe foi-se para ele, abandonando ao seu contratante,
D. Henrique. Traição? Não. O Príncipe
de Gales era o Senhor de Hugo Caverley, portanto, o seu procedimento
foi de respeito para com as suas responsabilidades de vassalo. E a
reação de D. Henrique também foi compatível
com a de um perfeito cavaleiro medieval, conhecedor das regras, pois
embora pudesse ter reprimido a tropa mercenária inglesa, não
o fez, deixando-a que partisse. A Lopes essa atitude não deixou
de parecer estranha, mas não devemos nos esquecer que, do episódio
participaram mercenários transpirenaicos e o futuro rei castelhano
D. Henrique, todos mais acostumados ao feudalismo puro que o próprio
cronista, os primeiros pela nacionalidade e o segundo por ter participado
de campanhas militares no reino da França.
Finalmente para demonstrarmos, sem restrições, que ao
menos os grandes potentados portugueses podiam ter sob o seu comando
homens que lhe deviam fidelidade, tomemos como exemplo a manifestação
de indignação de Fernão Lopes quando narra como
os servidores de Nuno Álvares foram acusados, injustamente,
de o terem abandonado. Diante da acusação Lopes afirmou
que os homens do Condestável eram
“... tam leaaes e tam fieeis e prouados por boons e ardidos
homeens darmas, que ja ajnda que vehera todo o poderjo de Castella,
ante sse leixarom todos morrer ante seu senhor que o desemparar per
nenhuma guysa. E se dizem que o deyxarom, pois contassem pera hu se
forom e que se fez delles, ou se tornarom pela el-Rey que os recebera
muy bem por tal cousa! Porem tam maa e tam errada opinyom, defamador
de sseus boons e leaaes vasallos, com o geolhos em terra peça
perdom aa verdade, a qual se passou desta maneyra.”
Na seqüência Lopes justifica que os servidores de Nuno
Álvares jamais o abandonaram e que a acusação
não passava de um equívoco. Os homens que supostamente
o teriam abandonado quando deixou o rei em Alenquer e foi-se para
Alentejo, não eram os seus, mas uma escolta especial que lhe
dera D. João I para acompanhá-lo até que atravessasse
o Tejo. Esse fato prestou-se para nos mostrar, especialmente em virtude
da indignação do cronista, que se a fidelidade era a
regra entre um senhor e outro, muito mais o era na relação
do súdito para com o seu rei.
Todavia, existiam as exceções, constatando-se no período
vários casos de felonia, que, inclusive, na maioria das vezes
não eram propriamente traições injustificáveis,
mas até mais complicado que isso, representavam mudanças
de senhor por motivos variados, decorrentes de fatores circunstanciais,
especialmente de ordem política. Passemos em revista alguns
desses casos.
A FELONIA
A caracterização da felonia, ou seja, a quebra do compromisso
vassálico, em Portugal é uma tarefa problemática,
principalmente porque neste reino as relações feudo-vassálicas
jamais se estabeleceram em sua plenitude, conforme temos visto. Seria
menos difícil se estivéssemos lidando com esse tipo
de relações no feudalismo puro, onde as obrigações
mútuas eram previamente estabelecidas, ficando ambas as partes
cientes dos dias de serviço militar devidos ao ano, das taxas
que seriam cobradas e dos outros serviços que deveriam ser
prestados. Quer dizer, depois das obrigações estarem
estabelecidas quantitativamente e tendo-se em conta que essas normas
não se subordinavam a questões de mérito, ou
seja, se a causa das partes envolvidas era ou não justa, seria
mais fácil estabelecermos quem estaria desrespeitando ou não
o trato. No caso português, onde os contratos feudo-vassálicos
do tipo francês não se constituíam em regra e
prevaleciam, nas relações vassálicas, o vínculo
direto com o soberano, temos que enveredar para a análise do
mérito de cada caso em particular, se quisermos proceder a
um balanço sobre essa questão. Partiremos, no entanto
de algumas hipóteses para tentarmos demonstrar que os desvios
dos princípios éticos eram muito raros e que, portanto,
as razões do rompimento do compromisso de fidelidade eram outras,
tais como a falta de dinheiro para a manutenção da casa
senhorial, a desgraça do senhor e, principalmente a confusão
na mente da nobreza que, diante da crise sucessória em virtude
da morte de D. Fernando, dividiu-se entre o apoio ao Mestre de Avis
e ao Rei Castelhano, D. João I. Tomemos, portanto, alguns casos
dentre os que aparecem nas crônicas de Lopes.
Durante a guerra pelo poder entre os meio-irmãos castelhanos,
Pedro, o Cruel e Henrique de Trastâmara, um tal Pero Carrilho,
vassalo deste último, passou-se para D. Pedro, com quem ficou
apenas alguns dias, abandonando-o tão logo cumpriu o seu real
intento que era o de libertar a condessa Dona Joana, mulher de D.
Henrique que estava prisioneira em Castela. Neste caso, não
adianta pretendermos tornar Pero Carrilho um herói, por ter
libertado uma dama, nem atribuir ao seu feito a dignidade de façanha
[no sentido de ato cavalheiresco] pois, segundo Lopes, ele fez “suas
avenças com el-rei Dom Pedro: que o herdasse em seu reino e
que se viria para ele”. Portanto, havia firmado um compromisso
de vassalagem, cujo desrespeito, do ponto de vista ético, somente
pode ser considerado traição, sem quaisquer justificativas
desta qualificação.
Os grandes senhores dificilmente deixaram de ter algum caso, no mínimo
controverso, nas suas relações com os vassalos. O Mestre
de Avis não foi diferente e teve também que se deparar
com alguns casos de infidelidade. Lopes cita literalmente o Conde
D. Pedro, D. Pedro de Castro, João Afonso de Beça e
Garcia Gonçalves de Valdes que, tendo recebido proposta do
rei castelhano, de serem colocados em maior estado do que o de que
desfrutavam, propuseram-se a matar o Avis. Para tanto planejaram pegá-lo
de surpresa, quando fosse inspecionar os engenhos de guerra com pouca
segurança, ou, se calhasse, de forma que hoje nos parece mais
pitoresca: João Afonso de Beça, hábil cavaleiro,
quando andava com o mestre, tomava-lhe a dianteira e depois, com sua
lança arremessava-se sobre ele, desviando-se um pouco antes
de atingi-lo com a pretensão, segundo Lopes, de tornar esta
ação tão corriqueira que um dia o mataria sem
que ninguém interviesse à tempo. Entretanto esta tática
falhou porque Fernão Álvares, um fiel vassalo do Mestre
certa vez pôs-se à frente de João Afonso desviando
com a sua lança a do mal-intencionado cavaleiro que a partir
de então foi proibido dessa prática. Em seguida todo
o plano foi descoberto, mas a maioria dos envolvidos conseguiu fugir,
menos Garcia Gonçalves que foi queimado. E o Mestre, como que
para seu consolo dizia não ser “o primeiro que fui emganado
per falssos vassallos, nem ei de seer o derradeiro”.
Neste caso também, em nossa maneira de entender, fica configurada
a traição, não pelo fato de que se o plano desse
certo alguns nobres passariam para o lado castelhano, mas porque havia
uma morte premeditada. Afinal, a mudança de um lado para o
outro, em casos como esse, em que se vivia um período de guerra
entre pretendentes ao mesmo trono, era relativamente comum. O próprio
Lopes reconhece isso, dizendo que os senhores prudentes se precaviam
em relação a essas mudanças de vassalos, mas
que o Mestre não recusava àqueles que se ofereciam para
ajudá-lo, devido a necessidade que tinha do serviço
de bons fidalgos. Portanto, ao que parece, os casos de felonia eram
relativamente comuns na Península como, ademais, o eram também
em outras partes da Europa, como Lopes bem nos demonstra ao narrar
conversa que teria se passado entre o Duque da Bretanha e seus fidalgos,
na qual aparecem algumas posições sobre o assunto;
“hu s diziam que amte queriam seer cornudos que cahirem em maao
caso; outros cativos e presos por sempre; e assi cada hu nomeava pera
ssi o mall que amte queria que lhe avehesse, que cometer tam grave
exçesso, ell veemdo as temçoões de todos, começou
de sorriir e disse: nõ sab es que vos dizees; ca por mais pequena
cousa dessas, cahairia cada hu de vos em ell, e eu convosco, quamdo
me a maão vehesse. E elles pregumtamdo por que rrazom seria
aquello; respõndeo elle estomçe e disse: Por vimgar
h a pouca de sanha, ou por cobiiça dacreçemtar em homrra.”
Cornudos e prisioneiros para sempre, são expressões
que, se por um lado demonstram um verdadeiro pavor dos fidalgos medievais
em caírem em casos de felonia, refletem por outro, uma certa
ingenuidade. As coisas àquela época não se passavam
bem assim, e o Duque, percebendo que as traições eram
bem mais comuns do que imaginavam os seus, tentou explicar-lhes a
causa, atribuindo à vingança e à cobiça
a culpa pela existência de traições. Sua síntese
entretanto foi parcial, pois, na verdade, se estes dois sentimentos
moviam alguns ao desrespeito dos compromissos vassálicos, essa
não era a regra geral. Muitos outros motivos podem ser apontados,
como ilustraremos com os exemplos a seguir.
Iniciemos com a história do Condestável, que por ter
mudado de Senhor, bem que poderia ser considerado traidor, ao menos
se tivermos em conta o ponto de vista de seus adversários.
Não tinha, afinal, Nuno Álvares recebido as primeiras
armas das mãos da rainha Dona Leonor, que o tomou por seu escudeiro?
E, no entanto, não foram suas as palavras que nos serviram
de exemplo para mostrarmos como um homem se entregava a outro, quando
tornou-se vassalo do Mestre de Avis? Portanto, não foi à
toa que quando Nuno Álvares deixou seus irmãos e tomou
o caminho de Lisboa para colocar-se a serviço do Mestre, a
rainha Dona Leonor, demonstrou que se sentia traída, ao dizer
aos presentes: “Vistes tall samdiçe de Nuno que eu criei
tamanino; que leixou o Prior seu irmaão cõ que hia,
e agora vaisse a Lixboa pera o Meestre?”. E tão indignada
ficou que pretendeu até mesmo mandar prendê-lo e só
não o fez porque as pessoas que consigo estavam a desaconselharam,
dizendo que talvez a sua intenção fosse outra. Traidor
para um lado, herói para o outro, essa é a nossa conclusão,
não nos parece existir outra forma de tomarmos um partido sem
incorrermos em algum tipo de parcialidade. Nuno Álvares, afinal,
deveria ter boas razões para deixar os seus irmãos e
passar-se para o lado do Mestre. O vigor de sua juventude e a busca
de honra, tão peculiar aos jovens segundogênitos de seu
tempo, não podem ser descartados, todavia não podemos
deixar de ao menos insinuar que o nascente apego à nacionalidade
por certo também já se manifestava nele.
E que dizer de Diogo Lopes Pacheco que, ao longo de sua vida, mudou
cinco vezes de lado, tendo sido vassalo de quatro reis? Todas essas
mudanças teriam se constituído em traições?
Vejamos resumidamente a sua história, para ao final tirarmos
a nossa conclusão.
Quando conhecemos Diogo Lopes Pacheco, através de Lopes, ele
era vassalo de D. Afonso IV. Este rei, em seu leito de morte, lembrando-se
de que mandara matar em Coimbra, a bela Inês de Castro, amante
de seu filho D. Pedro, mandou chamá-lo, bem como aos outros
envolvidos no assassinato e aconselhou-os a abandonarem o reino, pois
bem sabia que, após o seu falecimento, o seu herdeiro procuraria
vingar-se. Foram-se então Pero Coelho, Álvaro Gonçalves
e Diogo Lopes, para Castela, onde tornaram-se vassalos do rei D. Pedro,
o Cruel. Nenhuma traição portanto nessa mudança
de senhor. Sobre Diogo Lopes pesava apenas a suspeita, aliás
jamais esclarecida, de que participara da morte de Dona Inês.
Atendeu ao conselho de D. Afonso por certo por conhecer o gênio
vingativo de seu herdeiro e sucessor, D. Pedro I.
Entretanto, para o seu infortúnio, depois que D. Pedro ascendeu
ao trono português, ocorreu de virem para a sua mercê,
Nunes de Gusman, Mem Rodrigues Tenório, Fernan Godiel de Toledo
e Fernam Sanches Caldeirom, todos ameaçados de morte pelo rei
castelhano, por motivos políticos. E o novo rei português,
sedento de vingança pela morte da amada, propôs ao seu
homônimo castelhano, a troca de homiziados, o que de fato ocorreu,
culminando com a execução de todos, com exceção
de Diogo Lopes. Este, no dia em que era para ter sido preso, havia
saído à caça e um pobre aleijado, a quem sempre
ajudava com esmolas, conseguiu sair da cidade e avisou-o sobre o que
estava se passando. Diogo, conseguiu fugir atravessando todo o reino
disfarçado com as roupas do mendigo que o auxiliara, passou
por Aragão e foi-se para a França, onde colocou-se sob
a proteção de D. Henrique de Trastâmara. Mais
tarde, este D. Henrique, assumiu a coroa Castelhana, após matar
o seu meio-irmão, Pedro, o Cruel, enquanto que, em Portugal,
dada a morte natural do outro Pedro, este cognominado Justiceiro,
assumiu D. Fernando. O novo monarca português, certa feita recebeu
Diogo Lopes como embaixador de D. Henrique e, na oportunidade, após
ouvir a sua história, recebeu-o por vassalo, restituindo-lhe
todos os seus bens. Mas não durou muito esse novo contrato
vassálico, pois Diogo Lopes, por se opor tenazmente ao casamento
entre D. Fernando e Dona Leonor Teles, temeu alguma represália
e foi-se, com seus filhos, novamente para Castela, colocando-se sob
a proteção de D. Henrique. Diogo Lopes foi, portanto,
consecutivamente, vassalo de D. Afonso, D. Pedro de Castela, D. Henrique
de Castela, D. Fernando e novamente de D. Henrique.
Portanto, Diogo Lopes sempre foi vassalo de reis, o que nos leva a
dar à palavra vassalo, ao menos em Portugal e Castela, a conotação
de súdito juramentado. Nem herói, nem traidor, apenas
um homem desestabilizado por um serviço sujo que teria prestado
ao seu senhor, o rei D. Afonso. De qualquer forma, não deixa
de ser um caso interessante, pois um herói não precisaria
recorrer a tantos senhores e um traidor não teria tantos senhores
a aceitá-lo. De qualquer forma cabe perguntar: com reis tão
traiçoeiramente caprichosos podemos condenar tais condutas?
Alfim, como conclusão, devemos admitir que a troca de senhores
funcionava como que uma espécie de válvula de escape
das tensões e dos conflitos medievais, uma fórmula que
propiciava a manutenção do sistema.
Na quebra do contrato vassálico, o mais comum, como temos visto
até agora, era que o vassalo trocassse de senhor, todavia,
podia ocorrer também o contrário, o senhor abandonar
os seus vassalos à sua própria sorte. Foi o que ocorreu
com o infante D. João, amante [marido por juras?] de dona Maria,
irmã da rainha Dona Leonor Teles, que, após assassiná-la,
mesmo perdoado pelo rei e pela rainha, deixou Portugal e foi-se para
Castela, temendo a vingança dos familiares da vítima.
Os vassalos do infante ficaram desamparados. E aqui convém
ressaltarmos que a relação vassálica não
era inócua, havia uma dependência real em relação
ao senhor. O abandono significava o desemprego, com todas as suas
conseqüências, pois, afinal, a vassalidade, em Portugal,
quando não real, correspondia a uma clientela que, na ausência
do feudo, redundava no recebimento de pensões. E, por isso
é que, ao saberem da fuga do senhor, os vassalos do infante,
causavam piedade a quantos o viam, pois:
“Os braados e choro era muito, despenando-sse e dando grandes
punhadas no rrostro e fazendo suas faces taaes, que todas eram tornadas
em sangue. Durou esto per grande espaço, como quem nom tiinha
que os estorvasse, e canssaço e mingoa de falla os fez cessar
de suas dooridas vozes. Duas grandes pressas os movia a fazer isto:
a primeira, suidade e bem-querença que aviam de seu senhor,
por lhe seer graado e liberall e muito prazível companheiro;
a outra, quando ell fugia com tall rreceo de seer preso ou morto,
que he de cuidar que fariam elles ou que esperança teeriam
de sua vida.”
De qualquer forma, essa história tem um final mais ou menos
idêntico a outras já mencionadas, podendo servir como
padrão de comportamento no mundo medieval. Houve uma reacomodação
dentro do sistema: o infante D. João tornou-se vassalo do rei
de Castela, de quem recebeu terras, dinheiro e fortalezas; seus vassalos,
no momento em que o infante estava com a sua vida reorganizada, foram
chamados a irem-se para ele, o que de fato ocorreu àqueles
que ainda não tinham, por sua vez, “acertado outros modos
de viver”.
Convém sublinhar, embora já possa estar implícito
nos casos relatados, que essa acomodação, a qual estamos
nos referindo ao longo desse capítulo, acontecia, na grande
maioria das vezes, independentemente da vontade das pessoas envolvidas,
mas ao gosto das circunstâncias. Para termos uma idéia,
vejamos o próprio caso desse infante D. João que, após
assassinar a amante, como dissemos, foi-se para Castela, onde foi
bem recebido. Ocorreu todavia que, com a morte de D. Fernando, a sua
situação em Castela ficou muito delicada, pois sendo
meio-irmão do falecido rei, filho que era de D. Pedro, poderia
ser lembrado para ocupar o trono, o que inviabilizaria o projeto do
rei castelhano, D. João, que tinha pretensões ao trono
português, na condição de genro. Para evitar tal
eventualidade, o infante foi preso por ordem do rei. Na prisão,
ao receber o recado que o seu meio-irmão, o Mestre de Avis,
havia se tornado regedor e defensor do reino, o infante tomou a seguinte
decisão: mandou dizer ao Mestre de Avis que tomasse o título
de Rei de Portugal, pois somente assim poderia ser libertado da prisão
em que se encontrava e pediu a todos os seus vassalos que fossem servir
o Mestre. Dessa forma, aqueles vassalos, que ele abandonara e que
depois os mandara chamar, voltaram para Portugal, pondo-se ao serviço
do mestre que “os rreçebeo mui bem, e follgou muito com
elles”.
Poderíamos continuar citando outros exemplos, entretanto eles
nos parecem desnecessários já que os mencionados se
nos afiguram suficientes para a demonstração, em que
estamos empenhados, de que a troca de vassalos e senhores no medievo
português era mais ou menos comum, não se tratando apenas
e simplesmente de casos de felonia, mas prestavam-se para acomodações
dentro de uma sociedade em que os laços de dependência
de homem para homem eram necessários para a manutenção
do equilíbrio social. E a questão não se limitava
ao medievo português, toda a Europa Ocidental participava de
“uma mesma atmosfera religiosa, cultural e política,
e cuja unidade profunda não escapava aos homens dos séculos
XIV e XV, que falavam de Cristandade, de Latinidade, de Europa e de
Ocidente”
e, afinal, o imaginário cavaleiresco era demasiadamente forte
e espetacular para ficar circunscrito na área geográfica
de um reino. E o romance do Graal, ajudava em muito na difusão
do ideal da cavalaria.
Lopes, que conhecia a demanda, colocou nas bocas do rei D. João
I e de Mem Rodrigues Vasconcelos, um diálogo esclarecedor sobre
essa questão. Estando cercada a localidade de Coira, o Condestável
recusou-se a colocar os seus homens em combate, o que contribuiu para
que ela não fosse tomada. Descontente, evidentemente, com o
resultado, o Rei disse, como quem graceja:
“Gram mjngua nos fezerom oge este dia aquy os boons caualleiros
da tauolla Redomda, ca çertamente se elles aquy forom, nos
tomaramos este logar.” [Ao que respondeu Mem Rodrigues] “Senhor,
nom fezerom aquy myngua os caualleiros da Tauolla Redomda; ca aquy
estaa Martym Vaasquez da Cunha que he tam boom come dom Galluaam,
e Gomçallo Vasquez Coutinho que he tam boom come dom Tristam,
e ex aquy Joham Ffernandez Pacheco que he tam bom come Lançarote,
- e assy doutros que uio estar açerca, - e ex-me eu aquy que
valho tamto como dom Quea; assy que nom fezerom aquy myngua esses
caualleiros que dizees. Mas fez-nos a nos aquy gram mynguoa o boom
Rey Artur, senhor delles, que conheçia os boons seruidores,
fazemdo-lhes muyutas merçees, per que auyam desejo de o bem
seruir.”
Portanto, além de mostrarmos, com o diálogo supratranscrito,
que o trato sobre as coisas de cavalaria era generalizado na Europa,
esperamos ter deixado claro que as personagens da demanda do Santo
Graal eram como que um espelho da cavalaria. Lopes colocou com muita
propriedade na boca de Mem Rodrigues a máxima das relações
vassálicas: somente possuía vassalos desejosos de o
servir, o senhor que concedesse muitas mercês. Em Portugal o
único senhor capaz de generosidade de tal monta era o rei e
se alguém, porventura, como o Condestável Nuno Álvares
Pereira, ameaçasse atingir tais predicados era logo tolhido
em suas pretensões.