CAPÍTULO III

AS CERIMÔNIAS PERTINENTES AOS PILARES DAS RELAÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS DO MEDIEVO EM LOPES


1. AS COROAÇÕES

2. A ARMAÇÃO DO CAVALEIRO

3. A HOMENAGEM E O JURAMENTO DE FIDELIDADE
O CONTRATO VASSÁLICO
DA INEXISTÊNCIA DO CONTRATO VASSÁLICO EM PORTUGAL
A FIDELIDADE NA PRÁTICA COTIDIANA
A FIDELIDADE AO SOBERANO
A FIDELIDADE ENTRE OS SENHORES
A FELONIA

CAPÍTULO III


AS CERIMÔNIAS PERTINENTES AOS PILARES DAS RELAÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS DO MEDIEVO EM LOPES

Antes de iniciarmos este capítulo, entendemos não ser demais esclarecer que Lopes jamais se propôs e nem sequer manifestou a sua intenção de escrever sobre este assunto, o que, se não implica em nenhum mérito ou demérito para o conjunto de sua obra, pois na realidade as estruturas e as relações sociais de seu tempo não foram alvo específico de seu enfoque, constituiu-se em dificuldade prática para a consecução de nosso objetivo. Quer dizer, se não assumiu nenhum compromisso em escrever sobre este tema, obviamente, foi parco em menções sobre ele. De qualquer forma os percalços não foram insuperáveis, apesar de termos sido obrigados a recorrer sempre a idéias secundárias do texto e eleger as cerimônias cujas referências aparecem em maior número nas crônicas. Com essas limitações é que abordaremos, a seguir, as cerimônias de coroação dos soberanos, de armação dos cavaleiros e o contrato feudo-vassálico, pilares das relações sócio-políticas do medievo.

1. AS COROAÇÕES

Conforme já dissemos anteriormente, ao contrário de outros cronistas medievais, Lopes não era um freqüentador da Corte. Sua origem fazia dele um conhecedor mais profundo do povo comum. Isso, evidentemente, teve reflexo em sua obra, como se pode perceber pela ausência de detalhes na descrição de cerimônias pomposas, inclusive das coroações, que agora nos interessam. Todavia, a menor atenção dada por Lopes a essas solenidades não lhes tira a importância, porque as coroações constituíam-se numa cerimônia importante que conferia ao soberano medieval um capital simbólico muito grande para o início de sua função.
Na Crónica de D. Pedro, não há nenhuma menção a qualquer solenidade de coroação. Quando narra a ascensão deste rei ao trono português, Lopes não poderia ser mais sucinto. Ele apenas relata que, morto D. Afonso IV, assumiu D. Pedro, na época com trinta e sete anos. Mais adiante transcreve duas cartas, uma do papa e outra do rei de Aragão, que apenas mencionam o assunto. Na carta do papa Inocêncio, constam os pêsames pelo falecimento de D. Afonso IV e, além de algumas palavras de conforto, conselhos para o novo governante. Na outra carta, além dos votos de pesar, os cumprimentos pela coroação, uma espécie de morreu o rei, viva o rei! Veremos a seguir um trecho desse documento, no qual o rei de Aragão afirma ter recebido as notícias de falecimento do rei D. Afonso IV e da coroação de D. Pedro, para nos convencermos da propriedade da afirmação:
“houvemos desprazer e prazer juntamente. Desprazer da morte do rei [...]. Prazer outrosim houvemos mui grande, rei irmão, quando soubemos que éreis alçado em rei de Portugal e Algarve...”
Esses tipos de cartas, carregadas dos topoi usuais nessas circunstâncias, na maioria das vezes entregues pessoalmente por embaixadores que se faziam presentes especialmente para essas solenidades, eram documentos formais através dos quais se reconhecia a legitimidade do novo rei. Mas passemos, na mesma Crónica de D. Pedro, para outra referência à coroação, envolvendo dessa feita D. Henrique I que, aliás, também não é nada reveladora de como fosse um cerimônia dessa natureza, pois Lopes conta apenas que ao término da guerra pela posse da coroa castelhana entre D. Pedro, o Cruel, e o Trastâmara, os habitantes de Burgos coroaram-no:
“E coroou-se ali por rei; e vieram a ele muitos procuradores das vilas e cidades do reino e receberam-no por senhor. Em guisa que, no dia da coroação a vinte e cinco dias, foi todo o reino a seu mandado. E ele recebia todos graciosamente e a nenhum era negado cousa que pedisse.”
Mais uma vez nenhuma menção à cerimônia, mas podemos acrescentar dois dados ao que já sabemos sobre coroação: a homenagem que se fazia ao novo soberano e a sua correspondente retribuição. Ao coroamento do rei era costume apresentarem-se os procuradores das vilas e das cidades para a homenagem, ou seja, o juramento de fidelidade ao Senhor. Esse ato, que lamentavelmente Lopes não privilegia em suas crônicas, revestia-se de um caráter simbólico muito acentuado, como veremos logo adiante, através do qual os grandes do reino submetiam-se ao seu mais alto senhorio. O outro dado é que D. Henrique distribuía generosamente o que lhe pediam, o que se compreende se considerarmos que o reino foi usurpado pelas armas ao seu meio-irmão D. Pedro. Afinal, era normal a prodigalidade dos reis medievais, e se a alguns faltava esse predicado, afastava-se das expectativas dos súditos que sempre esperavam que assim fossem. D. Pedro retribuía à nobreza portuguesa não somente os serviços prestados a ele, mas também os que haviam sido feitos a seu pai. D. Fernando foi considerado, segundo Lopes, numa roda de fidalgos que falavam sobre as grandezas dos reis portugueses, o mais generoso de todos. E D. João I não lhe ficava atrás, ainda mais que, a exemplo de D. Henrique, também ganhou o reino pelas armas. Ainda quando era apenas o Mestre de Avis, D. João foi aconselhado por Álvaro Paes a ser generoso com os seus seguidores:
“Daae aquello que vosso nom he, e prometee o que nom teemdes, e perdoaae a quem vos nom errou, e seervos ha mui gramde ajuda pera tall negoçio em quall sooes posto.”
E, ao que tudo indica, o conselho foi seguido à risca, pois Lopes o chama de virtuoso Senhor que possuía grande bondade, agraciando com bens e privilégios todos os que o serviam, inclusive a cidade de Lisboa e, especialmente, Nuno Álvares Pereira, seu fiel Condestável.
A generosidade das concessões, como afirmamos, era comum aos soberanos medievais, uns porque precisavam manter a fidelidade de seus súditos, outros porque necessitavam angariá-la. É evidente que manter a fidelidade era muito mais fácil do que conquistá-la, e os reis desse período bem sabiam disso, praticando o que mais tarde Maquiavel teorizou. Quer dizer, a homenagem, a submissão ao rei, o reconhecimento público de sua proeminência sobre os demais membros da nobreza, implicava numa contrapartida de concessões as mais diversas, que incluíam feudos em terra e em dinheiro. E é claro: quanto maior a dignidade do vassalo que se curvava diante do rei, maior deveria ser a retribuição, pois a homenagem de um Nuno Álvares, evidentemente, tinha um peso muito maior do ponto de vista exemplar do que a de um outro nobre qualquer.
Mas eis-nos a nos desviar de nosso assunto; saiamos do “desvio” e voltemos às coroações. Assinalamos que na Crônica de D. Fernando, Lopes também não descreve a cerimônia de coroação. No prólogo, anuncia que D. Fernando foi coroado rei no mosteiro de Alcobaça, logo após o enterro de seu pai, estando na época com vinte e dois anos, sete meses e dezoito dias, sem fazer nenhuma menção a festas ou quaisquer solenidades. Na mesma Crónica de D. Fernando, Lopes registrou outro início de reinado, o de D. João I de Castela, dizendo que, falecido D. Henrique, assumiu seu filho primogênito, coroado em julho, num mosteiro de Burgos. Nessa coroação, onde mais uma vez ressentimo-nos de informações mais detalhadas, sabemos que houve uma grandiosa festa, pois além da menção explícita feita por Lopes a grandes festas, podemos avaliar a sua grandeza em virtude do expressivo número de cem cavaleiros armados de uma única vez nessa oportunidade pelo novo monarca.
Mais pródiga em informações revela-se a Crónica de D. João I quanto a solenidade de coroação de seu protagonista D. João, Mestre de Avis, eleito rei de Portugal pelas Cortes realizadas em Coimbra em 1385. Segundo Lopes, após a decisão das Cortes, os prelados, fidalgos e procuradores dos Concelhos foram até onde estava o Mestre de Avis e lhe requereram que aceitasse o resultado da eleição que haviam promovido, assumindo o título real. D. João, num primeiro momento, recusou-se, alegando “deffectu de sua naçença” ? bastardo do rei D. Pedro ? e os votos que fizera para ingressar na Ordem de Avis ? pobreza, obediência e castidade. A relutância do Mestre rendeu-lhe a promessa, por parte daquela embaixada, de que o ajudariam em tudo o que precisasse para manter o seu estado real, bem como para prosseguir na guerra contra Castela.
Aceito o título, Nuno Álvares Pereira foi o encarregado de preparar os Paços onde, em seis de abril de 1385, o Mestre
“...foi alçado por rei; e feito seu offiçio, assi eclesiastico, como secular, damdolhe aquell poderoso e rreal estado que ell b mereçia, com gramde festa e prazer; assi de lamçar a tavollado, come doutros jogos e trebelhos, segumdo husamça daquell tempo; nom soomente em aquell logar de Coimbra, mas nas outras villas e çidades que por ell estavom e sua voz mamtiinham.
Espeçiallmente Lixboa, homde foi feita h ua mui homrrada e soll ne proçissom que partio da See e foi a Sam Domimgos; e depois de comer com muito prazer e allegria, trouverom bamdeira pella cidade, com muitos jogos e trebelhos, apregoamdo: Arreall! por elRei dom Joham! E alçarom emtom na rrua Nova por tavollado, hu gramde e alto masto de carraqua da parte do mar, de guisa que nom torvava a rua.”
Quer dizer, havia a celebração religiosa e a secular, ambas muito importantes para diferenciar a figura do rei em relação aos demais segmentos da sociedade. Os reis utilizavam-se de um capital simbólico muito forte para legitimarem-se no poder. A coroação ensejava, como vimos, a homenagem, que era realizada com a exteriorização de atos muito concretos de sujeição de todos os grandes senhores do reino, inclusive prelados, ao soberano. A acumulação de símbolos em torno do poder, para dar-lhe legitimidade, se fazia tão mais necessária quanto a distância que separava o rei da população. Tomemos como marco, para demonstrar o início da sistematização dessas práticas, o advento ao poder da dinastia carolíngia.
É sobejamente sabido que a autoridade dos reis bárbaros estava diretamente relacionada à guerra. Enquanto comandantes militares os reis eram supremos, portanto, a manutenção do status real dependia de campanhas militares regulares. Mas à medida que ampliavam consideravelmente os seus domínios, os reis precisavam aumentar também o número de intermediários entre si e a população, de tal forma que os parentes confiáveis não eram suficientes, precisando-se apelar para a nobreza em geral. Isso significa que quanto mais alargava os seus domínios e, conseqüentemente, sua máquina administrativa, mais aumentava o perigo de pulverização do seu poder. E, mesmo tomando sob seus cuidados os filhos dessa nobreza, apadrinhando-os no palácio para aumentar o vínculo de dependência pessoal, os reis precisaram reforçar o seu poder simbólico para compensar a sua ausência física junto ao exército e ao povo em geral. Nesse aspecto contribuiu consideravelmente a religião, sobretudo porque, aos poucos, ao longo da Idade Média, a Igreja pretendeu passar a idéia de que a coroa era uma concessão do papado. Quer dizer, a Igreja, aproveitando-se do fato de que a coroa já era um símbolo muito forte, consagrado há séculos como sinônimo de poder, apropriou-se dele, acrescentando-lhe o seu ritual. Mas, ao que tudo indica, essa questão não chegava à população; como reflexo da proeminência da Igreja sobre o rei, toda a pompa e brilho da cerimônia eram capitalizados no sentido de conferir ao monarca a condição de mais alto senhorio do reino.
Além das cerimônias oficiais, cujo brilho irradiava-se entre todas as camadas da população, cumprindo o seu papel de conferir ao soberano legitimidade, as comemorações pela coroação ganhavam as ruas do reino. As cidades organizavam grandes festas, com banquetes ao ar livre, jogos de azar, o tavollado e danças, que à época eram chamadas de trebelhos. Os responsáveis pela manutenção do status quo procuravam, enfim, associar a coroação com a alegria e o prazer.
Da mesma forma que a coroação do rei se revestia de um caráter ritualista que necessitava de uma grande divulgação entre a população, a armação do cavaleiro, em menores proporções, também carregava consigo esses mesmos ingredientes.
Ainda quanto à armação do cavaleiro, não podemos nos esquecer do apelo simbólico sob o qual se desenrolava a cerimônia, e onde a fidelidade era ponto fulcral.

2. A ARMAÇÃO DO CAVALEIRO

A cerimônia de armação dos cavaleiros na Idade Média, parece ter seus antecedentes em épocas bem recuadas, pois da mesma forma que nas sociedades primitivas e no mundo antigo, existiam os rituais de iniciação para integrar os rapazes no grupo social, também passou a realizar-se, na Europa Medieval, especialmente a partir do século XI, uma cerimônia que propiciava aos jovens o ingresso à categoria dos guerreiros. Uma prática relativamente comum se tivermos em conta que os germanos também possuíam um cerimonial, trazido para a Europa Meridional com as invasões, para elevar os seus jovens à condição de guerreiros, com a diferença de que entre esses povos, chamados de bárbaros, todos os homens livres eram guerreiros, enquanto que, na sociedade feudal, apenas eram admitidos os filhos da nobreza ou, eventualmente, algum destacado jovem que se sobressaísse em práticas tidas como próprias dessa categoria, tal como a força ou a destreza no uso das armas.
Armar um cavaleiro podia se constituir num ato simples, sem cerimônias pomposas. Num cenário bem apropriado, o campo de batalha, momentos antes de dar-se o combate, poderiam ser armados vários cavaleiros. Essa era, sem dúvida, uma fórmula empregada com muito sucesso para estimular os combatentes. O ritual básico de sagração consistia na entrega das armas ao neófito, normalmente pelo cavaleiro mais antigo, que lhe cingia a espada e aplicava-lhe o pescoção, simbolizando, provavelmente, a última ofensa que receberia sem revide. Longe do campo de batalha, após esses atos, realizavam-se competições desportivas e festas. Mas a sagração do cavaleiro nem sempre se limitava à cerimônias laicas. Como a sociedade feudal viveu muito intensamente o signo do sobrenatural, incorporou o sagrado nessas cerimônias. Nada de inovador. Numa época em que se costumava benzer as colheitas, os rebanhos, o leito conjugal e até o cajado da viagem, não era de admirar que se benzesse a espada e as armas de guerra em geral. Daí para que a Igreja fosse assenhoreando-se do ritual foi um passo, chegando-se ao ponto dos prelados cingirem a espada e darem o pescoção no aspirante. Com a entrada em cena da Igreja, aumentou muito o simbolismo da consagração, com o acréscimo, por exemplo, do banho purificador e da velada de armas. Na verdade a Igreja procurou com maior ou menor êxito, transformar a antiga entrega de armas num “sacramento”.
Tudo o que ocorria na sagração de um cavaleiro possuía um peso simbólico muito forte. A espada, que lhe era entregue, não era apenas e tão somente um metal frio pronto para ferir os inimigos. Na Idade Média era considerada o símbolo do espírito ou da palavra de Deus. Barley observou que em inglês, espada é sword e palavra é word. Tal observação leva-nos à dedução de que da mesma forma que a palavra de Deus iluminava o caminho, a espada era o instrumento apropriado para o cavaleiro, defensor das forças da luz contra as trevas. Não é à toa que ao decidir-se pelo partido do Mestre de Avis, a espada de Nuno Álvares Pereira entrou para a história. Faltou-lhe um nome, é verdade, como por exemplo, a Escalibur do Rei Artur, a Balmunga de Siegfried ou a Durindana de Roland, mas, de qualquer forma, a espada do Condestável foi personalizada.
Vejamos como desenrolou-se esse acontecimento.
Após a morte do rei D. Fernando, a rainha, Dona Leonor, temendo pela sua estabilidade no poder, já que era regedora do reino, enviou uma embaixada ao prior, Pedro Álvares, pedindo-lhe que estivesse a seu serviço. Entretanto, nem todos os homens do prior ficaram satisfeitos com essa embaixada, inclusive e, principalmente, seu irmão Nuno Álvares Pereira, que já manifestava sua tendência para o partido do Mestre de Avis. Como a embaixada não surtiu nenhum efeito prático imediato, o prior partiu para Santarém, e Nuno Álvares aposentou-se em Santa Maria de Palhaes. Numa tarde, nessa pequena localidade, Nuno Álvares saiu em passeio e em frente à porta de um alfageme ? oficial que guarnecia espadas ? viu em exposição uma espada que lhe chamou a atenção; perguntou ao alfageme se poderia deixar a sua naquele mesmo estado. Este respondeu-lhe que a deixaria ainda melhor.
E, ao que tudo indica, de fato a espada de Nuno Álvares ficou apropriada à sua missão, “muito aa sua voomtade”, segundo Lopes. Quer dizer, para um cavaleiro retratado como modelo, a quem num futuro próximo estava reservada a missão de contribuir decisivamente para libertar o reino da ameaça castelhana, era necessária uma espada limpa. À pureza do cavaleiro deveria corresponder sua espada, limpa para iluminar caminhos, na medida em que promovia a expulsão dos inimigos, sempre considerados o lado mau. E por falar em mau, devemos ter em mente que a parte protetora da mão de quem empunha a espada, sobreposta à lâmina, dá-lhe o formato de cruz, o que lhe determina um peso simbólico também muito forte, pois, afinal, da mesma forma que com a cruz se espanta e se combate males do espírito, com a espada se combatem os adversários, que, como frisamos, sempre se constituem no mal, ao menos do ponto de vista de cada facção.
De posse de sua espada, Nuno Álvares quis pagar o alfageme pelo trabalho, todavia, este se recusou a receber naquele momento, dizendo que somente receberia quando ele retornasse como Conde de Ourem. A profecia atribuída ao alfageme, feita em 1383, teria de fato se realizado em 1385. Nesta data, chegando a Santarém, Nuno Álvares foi procurado pela mulher do alfageme que pediu ao agora Conde de Ourem que intercedesse junto ao rei para que lhe tirasse o marido da prisão e lhe restituísse seus bens, tirados por suspeita de que ele tivesse ajudado os castelhanos. Nuno Álvares, lembrando-se do ocorrido há dois anos, cavalgou até onde encontrava-se D. João, narrou-lhe o episódio e intercedeu pelo alfageme. O rei mandou soltá-lo e restituir-lhe os bens. Estava assim pago o trabalho feito na espada. Mas, sublinhemos, o alfageme não recebeu um pagamento em dinheiro, coisa desprezível, mas sim a gratidão do cavaleiro cuja espada havia guarnecido ? mpado, amolado, polido ? fim de que ela cumprisse o seu desígnio.
Não encontramos em Lopes nenhuma menção a outros símbolos reconhecidamente importantes na sagração de um cavaleiro, como a túnica branca e o manto vermelho que recebia após o banho purificador, nem a espora e o cinturão.
De qualquer forma, como estamos no assunto não nos custa fazer uma rápida alusão aos símbolos citados. Cirlot adverte-nos de que o simbolismo das vestimentas, incluindo as roupas, os armamentos defensivos, os penteados e enfeites dos mais variados tipos, poderia ser motivo de uma monografia, devido à complexidade do assunto. Afinal, um enfeite pode diferenciar-se simbolicamente em função do local onde é usado ? cabeça, cintura, punho, etc. ? da matéria com que é feito ? ramos de agárico, loro, etc. ? do valor estético concernente a cores, metais, pedras preciosas, etc. Essa advertência, ao mesmo tempo em que nos conscientiza da pouca importância de nossa contribuição nesse aspecto, nos dá a certeza de que ao explicarmos o valor simbólico de determinadas vestes, não fugiremos do contexto em que elas foram utilizadas.
A túnica simboliza o eu, a alma; o manto é uma espécie de véu de separação entre a pessoa e o mundo. Ao dar-se à túnica e ao manto uma determinada cor, dá-se-lhes um valor simbólico diferente. A túnica branca dada ao jovem medieval quando de seu ingresso na cavalaria, após o banho, simbolizava a pureza do cavaleiro, e o manto vermelho, o sangue que eventualmente derramaria em defesa de princípios consagrados pelo ideário cavaleiresco: honra e dignidade.
O cinturão e a espora, ao contrário da túnica e do manto, possuíam uma utilidade prática mais significativa dentro do contexto medieval. O cinturão servia para segurar a espada à cintura e a espora para picar o animal de montaria, excitando-o para que arremetesse contra os adversários, no caso de uma batalha. Simbolicamente o cinturão representa as virtudes morais da pessoa e a espora é o símbolo da força ativa, protege o ponto vulnerável, o tendão que emprestou o nome do herói legendário Aquiles. Sendo de ouro, a espora dava ao seu usuário um tom de superioridade, pois, pela explicação da alquimia, o sol, de tanto girar em redor da terra, teria fiado nela o ouro. Dessa forma o ouro é a imagem da luz solar e, conseqüentemente, da inteligência divina. Portanto, o ouro simboliza todo o superior. Um cavaleiro medieval era superior dentro da hierarquia de valores estabelecidos na sociedade de sua época; recebendo uma espora de ouro era superior dentre os superiores.
Vistas essas generalidades e lembrando que o ritual para armar-se um cavaleiro variava muito, tanto em função da região onde se processava como em razão das circunstâncias em que eram realizadas, passemos em revista, a maneira como Lopes tratou essa questão, esperando, com isso, contribuir para esclarecer a forma como se realizava uma sagração de cavaleiro especificamente em Portugal.
Somente os homens podiam armar cavaleiros, uma mulher, jamais, mesmo que fosse rainha. Lopes conta que quando Nuno Álvares foi levado à Corte por seu pai, o prior Álvaro Gonçalves Pereira, a rainha Dona Leonor deliberou dar-lhe as suas primeiras armas. Com a aquiescência do rei e para grande satisfação sua, Nuno Álvares, de fato, foi armado pela rainha, todavia, não foi feito cavaleiro e sim seu escudeiro. É interessante abrirmos aqui um parêntesis para dizer que Nuno Álvares Pereira tinha nessa época apenas treze anos, sendo, portanto, difícil encontrar armas convenientes para ele. O problema somente foi resolvido quando alguém se lembrou de que o Mestre de Avis quando moço tinha um arnes que provavelmente lhe serviria e a rainha mandou pedi-lo para dar-lho a Nuno Álvares. Muito mais importante, nesse caso, que a resolução do problema em si, está o fato de Lopes ter estabelecido aí, diga-se de passagem, de forma muito sutil, o primeiro elo entre o Mestre e o futuro Condestável.
Voltando às particularidades portuguesas no procedimento de armar cavaleiros, tomemos como referência a idade de Nuno Álvares Pereira, acima mencionada, para discutirmos quando se dava o ingresso do jovem na cavalaria. Embora encontremos nas Ordenações Afonsinas que os menores de catorze anos não poderiam ser armados cavaleiros, isso jamais se constituiu em regra
geral. Não foram os 13 anos de Nuno Álvares que o impediram de tornar-se cavaleiro, muito embora em sua idade o normal era que o jovem se tornasse mesmo um escudeiro. Senão, vejamos outros casos:
Quando vagou o mestrado da Ordem de Avis pelo falecimento de Dom Martim de Avelal, Dom Nuno Freire, Mestre da Ordem de Cristo e tutor de D. João, filho bastardo do rei D. Pedro, dirigiu-se ao monarca pedindo-lhe que preenchesse aquele cargo com a nomeação desse seu filho. O rei aquiesceu e:
“Então tomou o moço o mestre nos braços, e tendo-o em eles, lhes cingiu el-rei a espada e o armou cavaleiro. E beijou-o na boca lançando-lhe a benção...”
D. João tinha sete anos quando foi feito cavaleiro e Mestre de Avis. Embora se reconheça aqui uma exceção ? pois, além de ser filho de rei, para ser mestre de uma ordem militar-religiosa era preciso ser cavaleiro ? a idade não era um fator decisivo na armação do cavaleiro. E, da mesma forma que uma pessoa podia tornar-se cavaleiro com menos de catorze anos, também poderia sê-lo em idade mais madura. Na verdade, a questão da idade era muito relativa e, inclusive, de somenos, pois é evidente que em agosto de 1385, precedendo a batalha de Aljubarrota, D. João I, rei de Portugal, não estava nem um pouco preocupado com esse detalhe e “fazia cavaleiros a todos que queriam”. Ora, se armava a todos aqueles que queriam ser cavaleiros fica descartada a exigência de uma idade fixa para o ingresso na Ordem da Cavalaria. Da mesma forma, é praticamente certo que tivessem idades diferentes os cem cavaleiros armados por D. João I, de Castela, quando foi coroado rei. Em resumo, o que estamos querendo demonstrar é que se tivesse que ser respeitada uma idade mínima ou máxima para o ingresso na cavalaria, não poderia haver a armação coletiva de cavaleiros, ao menos da forma como foram feitas as duas acima citadas.
Mas essas duas últimas menções à armação coletiva de cavaleiros não se prestam apenas para a demonstração que fizemos, elas suscitam outros esclarecimentos. Sobre a afirmação de que D. João I fazia cavaleiros a todos que queriam, devemos lembrar que a guerra contra Castela motivara um grande desfalque na nobreza portuguesa, pois muitos, sem consciência de nacionalidade, mas ainda presos aos laços de vassalagem, bandearam-se para o lado castelhano. Isso, evidentemente, abriu inúmeras oportunidades para a constituição de uma nobreza nova, cujos lugares iam sendo ocupados especialmente através da armação de cavaleiros. Todavia, a frase: “fazia cavaleiros a todos que queriam” não deve ser tomada ao pé-da-letra, não quer dizer que o rei ia armando cavaleiro indiscriminadamente a qualquer um. Para ser cavaleiro era preciso ter as armas e, principalmente, um cavalo. Esses requisitos impediam o acesso da grande maioria dos combatentes e faziam com que apenas aceitassem a honraria aqueles que reunissem as mínimas condições para tal. Quer dizer, apesar da grande abertura nem todos os que queriam podiam se tornar cavaleiros. A outra afirmação, a de que o rei de Castela, D. João, armara uma centena de cavaleiros no dia em que foi coroado, também merece algumas considerações. Em primeiro lugar devemos ter em conta que a sagração do cavaleiro coincidindo com a coroação do rei, marcava a cerimônia de forma indelével. Além disso, não podemos ignorar que armando-se os cavaleiros na mesma oportunidade em que era coroado o rei, aproveitava-se a festividade, engrandecendo-a e evitavam-se as enormes despesas decorrentes de cerimônias isoladas.
Lopes nos oferece um único exemplo em que um cavaleiro foi armado com grandes festividades. Por ser o caso mais completo, embora, convenhamos, exagerado em relação ao que conhecemos através de outras fontes, vamos nos ater a ele mais demoradamente. Para armar cavaleiro e fazer conde a João Afonso Telo, o rei D. Pedro I, de Portugal, mandou lavrar seiscentas arrobas de cera para que delas fossem feitos círios e tochas. Exagero do cronista à parte, eram aproximadamente nove mil quilos de matéria-prima que resultaram em cinco mil peças, dadas cada uma a um homem que as segurava acesas enquanto o rei e seus acompanhantes ? fidalgos e cavaleiros ? percorriam, dançando alegremente, o trajeto que ligava o Mosteiro de São Domingos, onde João Afonso havia velado suas armas, aos paços de Lisboa, dançando alegremente. O cronista nos informa ainda que o conjunto dos círios acesos provocava grande claridade, da qual aproveitaram-se os dançarinos por boa parte da noite. No outro dia a festividade continuou. Nas proximidades do mosteiro aludido, foram armadas grandes tendas onde se encontravam em abundância pão cozido e tinas de vinho. Fora, vacas inteiras eram assadas em espetos para satisfazer a todos os que desejassem.
Como se pode deduzir, uma festa caríssima, na qual não se perdeu a oportunidade de armarem-se outros cavaleiros, os quais Lopes não designou pelos nomes. Por certo, também, deve ter havido torneio e muitos jogos, usuais nas oportunidades em que as sagrações eram festivas.
Essas pompas, entretanto, não eram a regra; mesmo alguns reis foram armados cavaleiros sem cerimônias, através de atos bem simples, normalmente antecedendo a uma batalha. O rei D. Pedro I, de Castela, por exemplo, foi feito cavaleiro juntamente com muitos outros não identificados, pelas mãos do Príncipe de Gales quando estava prestes a batalhar contra seu meio-irmão, D. Henrique. E que dizer sobre a sagração de D. Fernando? Na oportunidade em que se preparava para uma batalha contra o seu vizinho castelhano, D. Fernando, que contava nessa oportunidade com a ajuda dos ingleses, armou vários cavaleiros, tanto portugueses quanto os seus aliados. Tudo normal e até certo ponto comum - como já referimos, a sagração era um estímulo aos combatentes - e até mesmo legal do ponto de vista jurídico se considerarmos que D. Dinis, em 1305, havia limitado ao rei o monopólio de armar cavaleiros. Mas, embora essa centralização tenha retirado “à cavalaria todo o carácter de instituição feudal, para a transformar numa élite diretamente submetida à vontade do rei”, sua aplicação, na prática, dependia de outras regras, dentre as quais se destaca aquela que tornava inadmissível que alguém, não pertencente à Ordem, armasse um cavaleiro. Então, quando alguém lembrou esse fato, tudo voltou ao ponto de partida e o rei foi constrangido a repetir toda a cerimônia após ele próprio ter sido armado cavaleiro pelas mãos do conde de Cambridge.

3. A HOMENAGEM E O JURAMENTO DE FIDELIDADE

A homenagem e o juramento de fidelidade constituíam-se em atos importantes dentro do relacionamento sócio-político medieval, e estavam mais ou menos generalizados em toda a Europa Ocidental a partir do século XI. Tal generalização não representava, todavia, a homogeneidade nem da cerimônia e nem da sua significação, que, uma e outra, variavam de região para região. Se tais atos, por exemplo, se formalizassem em regiões onde houvesse o feudalismo clássico, diríamos que estava se realizando um contrato vassálico. Ao contrário, se ocorressem em regiões onde o feudalismo não se estabelecera em toda a sua plenitude, diríamos que a homenagem e o juramento de fidelidade constituíam-se simplesmente em atos de submissão, principalmente ao soberano. Portugal, pelo que averiguamos nas crônicas de Lopes, enquadrava-se, àquela época, neste último caso, e é isso o que procuraremos provar a seguir, não perdendo de vista que ambos os atos revestiam-se de um simbolismo muito forte.

O CONTRATO VASSÁLICO

Antes de tomarmos a crônica de Lopes como nosso norte para abordarmos os atos de homenagem e do juramento de fidelidade, desejamos esclarecer como se processava o contrato vassálico, não somente porque o enunciamos acima, mas principalmente para que o tenhamos como paradigma a balizar as diferenças que encontraremos. Para tanto vejamos trecho de um documento de 1127, em que o conde da Flandres, Guilherme da Normandia, acolheu os vassalos de seu antecessor:
“Em primeiro lugar, prestaram homenagem da maneira seguinte: o conde perguntou ao futuro vassalo se queria tornar-se seu homem, sem reserva, e este respondeu: 'quero'; depois, estando as suas mãos apertadas pelas do conde, aliaram-se por um beijo. Em segundo lugar, aquele que havia prestado homenagem fez compromisso da sua fidelidade ao 'avant parlier” do Conde, nestes termos: 'Prometo, pela minha fé, ser, a partir deste instante, fiel ao conde Guilherme e guardar-lhe, contra todos e inteiramente, a minha homenagem, de boa fé e sem dolo; em terceiro lugar jurou o mesmo sobre as relíquias dos santos.”
A homenagem precedia ao juramento de fidelidade e consistia, como se pode verificar no trecho supratranscrito, na auto-entrega de um homem a outro. Em primeiro lugar o vassalo, normalmente ajoelhado, colocava suas mãos entre as do senhor e em seguida pronunciava sua vontade de tornar-se seu homem. As palavras constituíam-se no elemento de menor importância numa sociedade em que a capacidade de abstração era pequena e onde prevalecia o ato concreto. Tão forte era o significado do gesto que as palavras tornavam-se desnecessárias. Finalmente a homenagem era encerrada com o beijo, que significava a ligação, a aliança entre dois homens envolvidos no contrato vassálico, como se pode verificar pelo texto acima. Feita a homenagem, vinha então a segunda parte da cerimônia, que consistia no juramento de fidelidade, muitas vezes feito sobre relíquias, como demonstrado no exemplo acima.
O contrato vassálico, no dizer de Ganshof, era sinalagmático, quer dizer, bilateral, criava obrigações para ambas as partes. Essas obrigações mútuas, embora estivessem longe de ser isônomas, com o tempo passaram a ser reguladas quantitativamente, prescreviam compromissos bem caracterizados que se resumiam, basicamente, no arrendamento de terras e no oferecimento de proteção da parte do senhor, e na prestação de serviços, dentre os quais destaca-se o militar, da parte do vassalo. O arrendamento de terras, quer dizer, a concessão do feudo era, portanto, a base material de sustentação do contrato vassálico. A terra, de certa forma, constituía-se na medida do poder. Sem a distribuição de terras não havia como estabelecer as relações feudo-vassálicas.

DA INEXISTÊNCIA DO CONTRATO VASSÁLICO EM PORTUGAL

Vistas essas generalidades, podemos voltar às crônicas de Lopes discutindo, inicialmente, a inexistência, ao menos em mãos da nobreza portuguesa, da base material que dava sustentação ao contrato vassálico. Ou seja, aos nobres não era dada a posse da terra em definitivo de modo que eles pudessem repassá-las a seus confrades, criando assim as condições básicas para o desenvolvimento do feudalismo. Em Portugal, mesmo os reis, que exerciam uma espécie de monopólio na concessão de dádivas em troca da homenagem, preferiam, ao invés de terras, distribuir pensões monetárias. D. Pedro I, por exemplo,
“...foi grande criador de fidalgos de linhagem porque naquele tempo não se costumava ser vassalo senão filho e neto ou bisneto de fidalgo de linhagem. E por usança haviam então a contia, que ora chamam maravedis, dar-se no berço, logo que o filho do fidalgo nascia; e a outro nenhum não. Este rei acrescentou muito nas contias dos fidalgos depois da morte del-rei seu pai...”
Grande criador de fidalgos, o rei era o chefe incontestável da casa senhorial portuguesa; ele estabelecia o número de vassalos que deveria ter, a importância da pensão e, mais, não permitia que a sucessão fosse hereditária, como vemos no exemplo a seguir:
“Acrescentou nas contias aos fidalgos e vassalos, como dissemos, cá o vassalo não havia antes, de sua contia, mais de setenta e cinco libras. E el-rei Dom Pedro lhes pôs cem, que eram quinze dobras cruzadas, dobras mouriscas. E por esta contia havia de ter o vassalo cavalo recebondo [sic] e loriga com seu almofre; e à sua morte, ficava o cavalo e loriga a el-rei, de lutuosa. E dava-o el-rei a quem sua mercê era, em guisa que com aquele cavalo e armas, posta contia a outro vassalo, ficava sempre o conto dos vassalos certo e não minguado.”
Esse texto não nos deixa dúvidas sobre o assunto. Em Portugal, os vassalos eram diretamente dependentes do rei e quando a instituição da vassalagem tomava o caminho da hereditariedade, era logo corrigida. Também quando havia alguma desorganização na instituição, era sanada, tão logo fossem sanadas as causas geradoras do problema, tanto assim que Lopes conta que, no início do reinado de D. João I, tendo em vista o acúmulo de suas atribuições em virtude da guerra contra Castela, os combatentes portugueses sem contias não se constituíam em vassalos del-Rey. Os comandantes recebiam soldo de acordo com as lanças que possuíam. Mas tão logo pôde, D. João I restabeleceu as pensões, alterando, inclusive, algumas regras antigas. Vejamos primeiramente como eram dadas as contias antes de D. João I, para depois vermos as mudanças que em seu tempo se processaram:
“E em tempo dos outros reis nom era assy; mas os fidalgos auyam as contias, e a estes chamauom vassallos del-Rey; e a cada huum fidalgo el-Rey ordenaua que seruisse com çertas lamças, quando mester ouuese; e segundo que cada huum era de fidalgo ou estado, assy lhe hordenaua el-Rey as lanças que ouuesse, e pera tantas l(h)e dauom cada ano contya, e elle podia tijrar e poer qualquer lança que quysesse ata aquell conto, afora a contya que el auya pera seu corpo; e sse alguum leuasse mais lanças das que lhe eram hordenadas, nom lhe dauom soldo pela ellas. E a todos os filhos lidemos dos fidalgos, como lhe nacyam, logo o escrivyam das contijas - que chamauom marauidijs - se o soubesse ou lho sseu pay mandasse dizer, logo lhe mandaua a casa a carta da contya que auya dauer pella taxa da que seu pay auya, sem mais emmenta nem outro sinal del-Rey, dizendo o que lha leuaua: Manda-uos aquy Foaão, escriuam dos marauidis, a carta da contia pera o filho que uos naçeo, e manda-uos pedir aluisera. Emtam poinha a ca(r)ta nos peitos do menino (...) e quamtos filhos naçiam ao fidalgo tamtas cartas lhe mandauom daquella guissa. E quando el-Rey depois tomaua alguuns destes fidalgos, acreçentaua-lhe na contia aquello que sua me(r)çee era, e se moria o padre, ficaua o mayor filho na sua conthia...”
Agora, para efeito de comparação, vejamos como D. João I estabeleceu as contias:
“E entam hordenou el-Rey de poer contias aos fidalgos, nam como os outros reix, segumdo disemos, que a dauam ao pay e ao fylho, como lhe nasçia; mas a llança do corpo do fidalgo do mais pequeno estado, escryta no liuro del-Rey, mamdou que ouuesse myl lyuras, e aquel (que) o acompanhaua avia seteçemtas; e asy pos aos fidalgos poucas ou muytas, segumdo que cada huum era. E nam que a ouuese o filho como naçesse, saluo depois que ouuese hidade que podesse servir; e entam lhe assentauam sua contya segundo aquella que o pay avya, porem sempre mays pequena”
As diferenças, como podemos notar, não são estruturais, dizem respeito tão somente a adaptações que davam à organização um tom mais profissional. Afinal, para que pagar pensões a recém-nascidos, inaptos à prestação de serviços? Quer dizer, as modificações introduzidas não passavam de aperfeiçoamentos na organização da instituição vassálica que, como se pode verificar, não se processava a esmo. Lopes inclusive faz menção, como consta acima, ao escrivyam das contijas, cargo ao qual estavam vinculados, evidentemente, os assuntos dessa natureza. Sabemos também, através de Lopes, da existência de livros onde estavam devidamente relacionados todos os vassalos do reino, segundo as comarcas onde habitavam. Tanto é verdade que quando o Mestre de Avis foi nomeado pela rainha Dona Leonor, logo no início de sua regência, para servir na fronteira de Castela, em Ribas de Odiana, pediu-lhe mais gente para cumprir satisfatoriamente a sua missão, ela mandou que lhe trouxessem o livro de vassalos daquela comarca, para que fossem dados ao mestre “quamtos e quaaes o Meestre rrequeresse”.
Finalmente, para concluirmos essa nossa demonstração de que a vassalagem era uma espécie de monopólio real, queremos lembrar a desavença ocorrida em 1396, entre D. João I e o seu condestável Nuno Álvares Pereira, por razão da posse da terra que, como temos enfatizado, era a base material dos laços de dependência de homem para homem.
Durante o período de guerra com Castela, D. João I parece ter assumido à risca a máxima de Álvaro Paes, já mencionada por nós, de que para ser bem sucedido deveria dar aquilo que não lhe pertencia e prometer o que não tinha. Tanto é verdade que somente ao condestável, dizia-se àquela época, teria dado a metade do reino. Exageros à parte, a verdade é que Nuno Álvares tornou-se possuidor de muitas terras; tantas, que assim que vislumbrou a possibilidade de paz duradoura entre os dois reinos beligerantes, resolveu dividir parte do que havia recebido do rei com aqueles que estiveram consigo na guerra contra Castela. E assim de fato procedeu, concedendo a vinte de seus companheiros boa parte das terras que havia ganho, com as rendas de cada localidade. Ora, Nuno Álvares se tornaria, sem dúvida, com essa divisão, um grande suserano, e se a relação de dependência que estava criando assegurava fidelidade ao rei enquanto vivesse, nada se poderia dizer a respeito após a sua morte. É inquestionável que Nuno Álvares Pereira, na medida em que estabeleceu como recíproca que cada um, de acordo com as terras recebidas, “avia de ter çertos escudeiros pera seruyço de el-rei e seu”, estava rompendo a tradição de que os vassalos eram diretamente ligados ao rei e instituindo uma nova relação de dependência que estaria muito bem identificada com o feudalismo puro. Isso, evidentemente trouxe à tona a discussão de problemas inerentes ao assunto, o que, aliás, Lopes interpretou anacronicamente, porque atribuiu-os à inveja de algumas pessoas.
Na realidade Lopes parece não ter compreendido que estava em pauta uma nova concepção de Estado e que o conflito entre Nuno Álvares e João das Regras era, portanto, fundado em princípios de organização social e não no deletério sentimento da inveja. Victor Deodato da Silva, embora reconhecendo que o conflito entre os dois esteja ainda obscuro, ofereceu uma explicação que ele admite provisória, mas que julgamos muito convincente: o legista João das Regras não teria sido o porta-voz de uma classe mas teria agido como funcionário régio, defendendo os interesses da Coroa. Nuno Álvares, por sua vez, imbuído dos valores cavaleirescos assimilados provavelmente graças ao longo contato com os ingleses, seria o defensor de procedimentos feudais, de certa forma reacionários, porque os procedimentos feudo-vassálicos, naquela época, encontravam-se em decadência por toda a Europa. Nuno Álvares e João das Regras, portanto, poderiam até não representar os interesses de grupos, mas encarnavam, cada qual, concepções que, embora naquele tempo passassem desapercebidas pelos coevos, inclusive Lopes, os identificavam muito bem: o primeiro com a nobreza senhorial, defensora obviamente das relações feudo-vassálicas; o segundo com os legistas, que em toda a Europa assumiam posição francamente favorável ao fortalecimento do poder real.
Essa crise resultou na derrota de Nuno Álvares e conseqüentemente de toda a nobreza portuguesa com pretensões de estabelecer em Portugal relações feudo-vassálicas. D. João I convocou a Corte para deliberar sobre essa importante questão. Nuno Álvares, principal beneficiário das concessões de terras, defendeu na oportunidade que o rei não poderia tirá-las, porque aqueles que a receberam a mereciam por serviços prestados e pelos que prestariam se necessário fosse. Do outro lado, defendendo posição contrária, estavam os que, segundo Lopes, tinham inveja do Condestável ou eram bajuladores do rei. Vendo-se derrotado, Nuno Álvares retirou-se e pretendeu até abandonar o reino, não fosse o acordo que o beneficiou:
“...foy hordenado que el-Rey tomasse pera sy todollos vassallos que o Comde e outros fidalgos tynhaão, e que outrem nam teuese vassalos nenam elle; e que o Comde tomasse pera sy as terras que ja dissemos que dera, o que elle fez contra sua voantade, mas nam pode hy al fazer. E como as terras foram tiradas, el-Rey pos a todos suas contias; e asy ficou o Comdestabre asessegado naquellas que tinha de juro e derdade, mas as que eram daprestemo lhe foy forçado de leixar.”
Quer dizer que a perspectiva criada pela crise dinástica portuguesa de 1383-1385, de se estabelecer relações feudo-vassálicas em Portugal, foi logo abortada por iniciativa do rei e do grupo que o assessorava em questões administrativas. O doutor João das Regras, formado em Bolonha, grande centro irradiador do Direito Romano, conseqüentemente das idéias de fortalecimento do poder real, sem dúvida alguma foi o expoente desse grupo, mas com certeza não esteve só. Trabalhou ao longo de todo o reinado de D. João I com bons oficiais da administração, além de contar também com a colaboração de mestres e alunos da Universidade de Lisboa. Aqueles que haviam recebido terras passaram a receber, como todos os vassalos do rei, as contias, ou seja, uma pensão estipulada de acordo, como vimos, com a importância hierárquica do beneficiário. Essa era a regra geral em Portugal, a concessão de uma pensão em dinheiro, o que não quer dizer que não houvesse a doação de terras como retribuição, mas essa última hipótese constituía-se na exceção. De qualquer forma, mesmo desconsiderando a existência do contrato-vassálico em Portugal com todas as suas implicações jurídicas, não podemos deixar de admitir que a concessão das pensões levava à constituição de uma clientela muito ciente dos compromissos de fidelidade ao senhor.
A existência dessa clientela foi por certo largamente responsável para sustentar a teoria recentemente defendida por José Mattoso de que o feudalismo teria existido efetivamente em Portugal. Contrariando praticamente todos os medievalistas portugueses, historiadores da envergadura de Herculano, Paulo Merêa, Gama Barros, Torquato de Souza Soares, Marcelo Caetano, Armando Castro, entre outros, Mattoso defende que a utilização do conceito de feudalismo é mais correta do que a sua negação para caracterizar as estruturas mentais, políticas, sociais e econômicas portuguesas. Para tanto, nega-se a tomar o feudalismo francês como protótipo e, em conseqüência, alegando que as modalidades feudais podem ser muito diversas, admite que num lugar o feudo pode ser uma terra e em outros uma compensação periódica em bens móveis (como as contias em Portugal); em certas regiões a hereditariedade é fundamental e em outros é precária; em certos reinos o juramento feudal constitui-se em um ritual pormenorizado com acentuada forma sagrada e em outros num simples beija-mão; em certas partes o contrato vassálico materializa-se num documento escrito, noutras num acordo verbal. Finalmente, admite que nem mesmo a hierarquização das relações, a chamada “pirâmide feudal”, é necessária para caracterizar a existência do contrato feudal. Nessas condições o próprio Mattoso reconhece que sua interpretação de feudalismo não pode referir-se às instituições, mas como mostrou Georges Duby, a “uma forma de ver e de pensar a realidade particularmente nos seus aspectos sociais”.
A partir do exposto acima podemos inferir que somente forçando um pouco alguns conceitos é que se pode admitir a existência do feudalismo em Portugal. Foi o que fez Mattoso, justificando sua atitude com a argumentação de que em termos estritamente jurídicos, a área do feudalismo propriamente dito, isto é, aquela onde vigorou no seu pleno rigor o contrato feudo-vassálico, torna-se extremamente reduzida. Mesmo que admitíssemos a existência desse tipo de feudalismo postulado por Mattoso, não haveríamos de mudar a opinião que defendemos acerca da inexistência do contrato-vassálico em Portugal, pois entendemos que a sua contribuição, tenha apenas endossado a posição há muito assumida pelo professor Merêa, ao afirmar que o assunto sobre a existência ou não do feudalismo em Portugal está encerrada, a não ser que se queira dar ao termo “um sentido demasiadamente vago”. Ao longo de nossa pesquisa não nos ficaram dúvidas sobre a existência de vínculos de vassalagem entre os nobres, mas “ao contrário do que sucedeu nos países caracteristicamente feudais, a instituição da vassalagem conservou sempre o seu carácter essencialmente pessoal...”.
Para encerrarmos queremos tomar um dialogo narrado por Lopes que nos vem à propósito. Um escudeiro português, que levara uma mensagem de desafio formulada por Nuno Álvares Pereira ao Mestre da Ordem de Santiago, passou por uma espécie de interrogatório enquanto desfrutava da hospitalidade normalmente oferecida pelos adversários aos mensageiros: perguntado inicialmente “que homem soees?, ele respondeu: “Saão vassalo del-rey de Portugal (...) e criado do Comdestabre”. Quer dizer, se um escudeiro considerava-se vassalo direto do rei e apenas criado do condestável, que dizer de senhores hierarquicamente melhor situados?

A FIDELIDADE NA PRÁTICA COTIDIANA

Os compromissos de fidelidade na prática cotidiana que aparecem nas crônicas de Lopes referem-se, em sua esmagadora maioria, aos casos de submissão ao soberano. São raros os exemplos de exceção a essa regra, ou seja, a submissão de um senhor a outro, como no feudalismo puro. De qualquer forma, trataremos ambos os casos separadamente, embora o espírito virtuoso emprestado ao termo seja o mesmo. Basta-nos lembrar, para comprovação do enunciado, que mesmo no tempo de D. Duarte, quando o reino português já se encontrava em situação bem diferente daqueles abrangidos pelas crônicas de Lopes, tendo a cavalaria se tornado uma “categoria social puramente honorífica”, esse rei escreveu um livro ao qual denominou “Leal Conselheiro”, classificado por ele próprio como um “ABC da Lealdade”. Quer dizer que esse princípio, apesar da inexistência do contrato vassálico em Portugal, era levado muito a sério. Iniciemos a nossa abordagem pela prática da fidelidade ao soberano para depois abordarmos a fidelidade de um senhor a outro.

A FIDELIDADE AO SOBERANO

Para começar, evoquemos as circunstâncias nas quais Nuno Álvares Pereira tornou-se vassalo do rei D. João I, não por uma mera coincidência, mas por ser o mais poderoso homem do reino português que aparece nas crônicas de Lopes, depois dos reis, evidentemente. A narração a seguir reporta ao início da crise sucessória aberta em Portugal com a morte de D. Fernando, em 1383:
“Senhor, gramdes dias ha que eu muito desegei e desejo de vos servir, e nom foi minha vemtuira de o ataa este tempo poder fazer; e porque hora vos sooes em tall pomto e estado, que cuido que poderei cobrar o que tamto desejava, eu vos offereço mim e meu prove serviço com mui booa voomtade; e vos peço por merçee, que daqui em deamte me ajaaes por todo vosso quite, servimdo-vos de mim em todallas cousas, come dhomem que pera ello seerei mui prestes.”
Vos peço por mercê, disse Nuno Álvares, que daqui em diante me tenhas por vosso, quer dizer, ele entrega-se de livre e espontânea vontade. E o Mestre, segundo a continuidade da narração, de muito boa vontade o recebeu por seu, como se propunha o futuro condestável. Lopes não fez referência aos atos concretos das mãos do novo vassalo entre as do suserano e nem do beijo, que tendo se verificado ou não, neste caso, pouca implicação traria em relação à consumação do compromisso. Presumimos até mesmo que as palavras proferidas no momento poderiam ser um pouco diferentes, mas que o cronista as tenha colocado como melhor entendeu. De qualquer forma o que fica patente é que o condestável prestou a homenagem, não constando no texto que teria feito o juramento de fidelidade. Mas se Lopes nos privou dessa informação, por outro lado colocou na boca de Eyrea Gonçalves, mãe do condestável, palavras que denotam a expectativa de uma fidelidade que extrapola a própria noção de serviço feudal:
“Filho, eu vos rrogo e vos emcomemdo por a minha bemçõ, que pois vos escolhestes o Meestre pera o servir e ficar com elle, que vos o sirvaaes sempre b e verdadeiramente, e vos nom partaaes delle em nenh ua guisa, por cousa que av ir possa...”
Essas palavras da mãe do condestável, que aliás no princípio era contrária à decisão do filho, abre-nos a possibilidade de comentar que o juramento de fidelidade, realizado desde a segunda metade do século VIII, consagrou-se em virtude da necessidade que o senhor sentia em obter do vassalo uma garantia ainda mais firme que a proporcionada pela homenagem. O juramento constituía-se no coroamento da promessa formal que o vassalo fazia de cumprir com todas as obrigações inerentes à posição que ocupava na hierarquia social. De pé, com as mãos sobre o evangelho ou sobre uma relíquia qualquer, o novo vassalo comprometia-se não somente perante os homens, mas perante Deus, em ser fiel ao seu suserano. E é nesse particular que reside a importância maior do ato: o juramento pressupunha um compromisso com a própria divindade. O desrespeito significava cair em pecado mortal, o que, sem a menor dúvida, representava, para a mentalidade coeva, uma ameaça concreta de penar no inferno. Isso quer dizer que um juramento na Idade Média tinha uma força muito grande, compreensível apenas se tivermos em conta o imaginário religioso que impregnou o período.
Ora, não era esse, evidentemente, o sentido da homenagem prestada por Nuno Álvares a D. João, não se tratava da realização de um compromisso feudal formal. Na verdade o ato refletia o compromisso de adesão política. E assim como ocorriam adesões ao partido do Mestre, formalizavam-se também compromissos com a sua virtual adversária, a Rainha Dona Leonor. No início da crise sucessória, a Rainha, ao partir de Alenquer para Santarém, proferiu as seguintes palavras aos homens bons da localidade que estava deixando:
“...'Amigos, bem sab es como esta villa he minha, e vos outros todos sooes meus desi veedes bem ho alvoroço de Lixboa como sse levamtarom com ho Meestre, que nom ssei, disse ella, se he meestre de troos, sse de bombardas. E maravilhome qual foi a sanha ou samdiçe que os fez demover a tall cousa. Porem vos nom curees da samdice delles, nem do levamto que fezerom, mas seede boõs e leaaes como sempre fostes, e farees muito de vossa proll e homrra, e a mim serviço por que vos sempre farei muitas merçees quamdo me per vos forem rrequeridas'. Responderom estomçe todos, e disserom que a villa e elles todos eram seus e pera seu serviço; e que outra voz nom tomariam salvo a sua, nem fariam outro mamdado se nom o seu, come sua senhora era.”
Quem afinal eram esses seus homens? A referência que Lopes faz a homens bons, apesar de não ser suficientemente esclarecedora, pois tanto poderiam ser fidalgos como cidadãos não nobilitados, leva-nos a crer que incluía essas duas categorias. Quer dizer, no meio dos homens bons que assumiram o compromisso de serem fiéis à rainha, poderiam estar muitos fidalgos, seus vassalos, mas não porque a categoria de homem de, isto é, homem dependente de outrem, significasse necessariamente vassalo de. Portanto, seus homens poderiam ser simplesmente aqueles que se comprometeram em servi-la em caso de guerra, da mesma forma que se tornaram do mestre os habitantes de Almada quando este lá esteve com o objetivo de recebê-los como tal.
Tomemos agora um outro exemplo: após o término da guerra civil castelhana, quando D. Henrique de Trastâmara matou o seu meio-irmão D. Pedro e usurpou o trono, muitos nobres recusaram-se a prestar homenagem ao vencedor, preferindo optar por tornarem-se vassalos do rei português D. Fernando que, em virtude do parentesco com o rei falecido, poderia, como o fez, reclamar para si a coroa castelhana. Iniciava-se por esse motivo uma guerra entre Castela e Portugal, e D. Henrique, juntamente com sua mulher, a rainha Dona Joana, esforçavam-se para manter a antiga unidade do reino, cercando as cidades cujos alcaides haviam se declarado favoráveis ao rei português. E da mesma forma procediam os ocupantes dessas localidades, defendendo-se a todo o custo. Nesse afã é que a rainha, como vimos, cercou a cidade de Çamora. O alcaide Afonso Lopes de Texeda, após alguns dias de cerco fez um acordo com a rainha, D. Joana, estabelecendo que se dentro de determinados dias D. Fernando não o socorresse, ele lhe entregaria a cidade e por segurança dessa avença entregou seus dois filhos como reféns.
Passado o prazo delimitado, como não tivesse vindo nenhum socorro, a rainha reclamou a cidade, mas Afonso Lopes negou-se a entregá-la. Então trouxeram seus filhos para as proximidades dos muros, num local de onde podiam ser avistados pelos de dentro da cidade, dizendo que os matariam se ele realmente continuasse se recusando à entrega. Passa-se então uma cena dramática retratada com muito vigor pela pena de Lopes: os filhos, chorando, apelam para que o pai tivesse pena deles e que não os deixasse morrer:
“Oo padre, por Deus e por mercee avee de nós doo, e nom nos leixees assi matar! Oo padre senhor, daae esse logar, pois vos nom veo acorro, e nom moiramos assi sem porque!”
A aflição dos filhos provocou uma intensa reação dos presentes que, em altos brados, clamavam que o pai se compadecesse dos filhos e não permitisse que fossem mortos. Mas tudo foi em vão. Em resposta, Afonso Lopes, disse que se a rainha lhe mandasse degolar os filhos que “ainda ell tiinha a forja e o martello com que fezera aquelles, e que assi faria outros”. Os rapazes foram mortos, aliás inutilmente, pois Afonso Lopes não conseguiu manter o lugar para D. Fernando e acabou entregando-o a D. Henrique.
Tal procedimento comportaria, com certeza, vários tipos de análise. Poderíamos, inclusive, atribuir a teimosia de Afonso Lopes em não entregar a cidade ao fato de ter sido sitiado por uma mulher. Mas tal circunstância, de fato incomum, não é sustentada por nenhuma evidência de ter sido o elemento provocador da decisão de Afonso Lopes e, em todo caso, não mereceu nenhum destaque especial por parte de Lopes. Também poderíamos aproveitar o quadro para enfatizar o poder do pater familias ou o teor violento da vida predominante naquela época, para nos aproveitarmos de uma expressão de Huizinga. A nossa conclusão sobre esse episódio, porém, é a de que tal atitude estava relacionada com a manifestação de fidelidade devida ao rei; do nosso ponto de vista uma fidelidade esdrúxula, provocada provavelmente pela interiorização deformada do conceito de lealdade vigente por algum desvio psicológico e que, inclusive, nem se enquadrava aos padrões da época, pois o próprio Lopes, conhecedor evidentemente de muitos casos de manifestações de atos lealdade, exacerbou-se com tal procedimento, dizendo que Afonso Lopes utilizou-se de um “modo mui estranho, o quall nom he de louvar come virtude mas façanha sem proveito, comprida de toda cruelldade...”. De qualquer forma, fica patente a demonstração de lealdade.
Vejamos agora um outro exemplo de fidelidade ao soberano, ocorrido na mesma contenda entre D. Fernando, de Portugal e D. Henrique, de Castela, envolvendo Nuno Gonçalves, que tinha sob sua guarda o castelo de Faria e que se tornou prisioneiro dos castelhanos. Nuno Gonçalves arquitetou um plano para impedir que seu filho, que ficara com a guarda do castelo o entregasse aos inimigos: pediu a Pero Rodrigues Sarmento, que o havia aprisionado, que o levasse diante do castelo e ele pediria ao filho que lho entregasse em troca de sua liberdade. Pedro Rodrigues não teve dúvidas em atender ao pedido, mas, para surpresa de todos, ao invés de cumprir o prometido, assim se pronunciou, no dizer de Lopes:
“Filho, bem sabes como este castello me foi dado por el-rrei dom Fernando meu senhor, que o tevesse por elle, e lhe fiz por ell menagem; e por minha desaventura eu sahi d'elle, cuidando de o servir, e som ora preso em poder de sus emmiigos, os quaaes me trazem aqui pera te mandar que lh'o entregues. E porque esto he cousa que eu fazer nom devo, guardando minha lealldade, porém te mando, so pena de minha b ençom, que o nom faças nem ho dees a nenh ua pessoa se nom a el-rrei meu senhor que m'o deu, ca por te perceber d'isto me fize aqui trazer; e por tormentos nem morte que me vejas dar nom ho entregues a outrem, se nom a el-rrei meu senhor, ou a quem t'o el mandar entregar per seu certo rrecado.”
Nuno Gonçalves, pelo seu atrevimento, foi morto ali mesmo, na presença do filho, todavia, neste caso, o sacrifício em nome da fidelidade ao soberano, não foi em vão pois o castelo foi mantido. Tempos depois, tendo o moço optado pela vida clerical, o castelo foi restituído a D. Fernando que, na oportunidade, em retribuição à lealdade demonstrada pelo seu pai o compensou com um “mui honrrado beneficio”.
Para não passarmos a idéia de que as manifestações de lealdade ao soberano somente aconteciam no reinado de D. Fernando, mencionemos ao menos um exemplo significativo, dentre os muitos, que constam na Crônica de D. João I. Ele presta-se para demonstrar a fidelidade de um nobre português, Airas Gomes, para com o rei castelhano e é significativo, como dissemos acima, porque além de reforçar a idéia que estamos defendendo de que o vínculo vassálico se dava, especialmente, de maneira direta com o soberano, demonstra também que o sentimento nacionalista português estava muito longe de ser consensual. Airas Gomes era bem idoso em 1385, quando o episódio se passou, tanto é que faleceu logo em seguida ao seu desfecho e, assim como a maior parte da nobre portuguesa antiga, defendia que o legítimo rei de Portugal deveria ser D. João I, de Castela, em virtude de seu casamento com Dona Beatriz, filha do falecido soberano D. Fernando. O recém-eleito e coroado D. João I, de Portugal, por sua vez, estava tenazmente envolvido na campanha que lhe garantiria a posse do reino e decidiu tomar a cidade de Guimarães, cujo alcaide era Airas Gomes. Antes porém de combatê-lo o soberano português tentou aliciá-lo, propondo-lhe que entregasse o castelo e se viesse para ele [se tornasse seu vassalo], oferecendo-lhe algumas concessões, como veremos a seguir:
“El-Rey asesseguado, teue comselho de mandar dizer a Airas Gomez que lhe quisesse dar o castello, e esto pera todallas razoões que o a tal feito podiam demouer, dezemdo que bem sabia como era limdo portugues el e todo seu linhagem, e que por homra e bem da terra dhu era naturall deuia trabalhar de ajudar a defemder, posto que em ella nenhuuma cousa teuesse, moormente seer nella herdado; como bem sabia que trabalhar de seer comtra ella, e seer em ajuda de sua destruiçam lhe pareçia cousa estranha, que porem lhe rogaua que da temçam que tinha se quissse partir, e se ueesse pera ella com sua gemte; e que lhe prometia dacreçentar tanto em elle em homra e estado e acreçentamento de b ens que ele se ouuesse por bem comtemte, ou que nomeasse quaaes cousas prazia de lhe outorgar, e que era ledo de o fazer.”
D. João I, portanto, em troca da homenagem que lhe prestaria Airas Gomes, oferecia-lhe mais honra e mais bens materiais, chegando mesmo a propor-lhe que escolhesse aquilo que bem entendesse e ele lhe daria. Quer dizer, mesmo sem excluirmos a possibilidade de um blefe, podemos inferir que o contrato vassálico pressupunha um troca mútua de favorecimentos. Mas isso tudo já foi mencionado, o que realmente o texto traz de novo é o apelo à nacionalidade. Quando D. João diz que bem sabia como Airas Gomes era lindo português, ele queria dizer em linguagem hodierna, puro, limpo. Todavia, o apelo à nacionalidade ainda não encontrava eco, principalmente entre os membros da nobreza mais antiga, como o idoso Airas Gomes, que conservava a noção da honra e da dignidade, próprias da cavalaria.
E, justamente por isso, Airas Gomes, apesar de lindo português, não aceitou nenhuma proposta de D. João I e defendeu o castelo até que, percebendo que não poderia mantê-lo sem ajuda, negociou nos seguintes termos: se o rei castelhano não lhe viesse socorrer dentro de trinta dias, ele entregaria o castelo e se iria com os seus para Castela e, no decorrer desse lapso de tempo, os acastelados não poderiam sair para combater os portugueses e nem para providenciar alimentos. Decorridos alguns dias da celebração do acordo “leuamtou-se huum dia voz antre os portugueses, dizemdo que os do castello metiam cabras e outros gaados dentro e quebrantauom a preitesia...”. Foi o suficiente para que os portugueses atacassem, colocassem fogo às portas e penetrassem na vila. D. João I, que sesteava, acordou com o barulho, correu ao local, ordenou que a ação fosse interrompida, mas mesmo assim não convenceu Airas Gomes a desculpá-lo. Depois desse incidente - relatado para mostrarmos a preocupação dos contemporâneos com os seus compromissos - e vencido o prazo de trinta dias, estipulado no acordo, sem que o rei castelhano o socorresse, Airas Gomes entregou o local a D. João I, permanecendo todavia fiel ao seu soberano, o rei D. João I, de Castela.

A FIDELIDADE ENTRE OS SENHORES

Para completarmos o quadro que estamos traçando, sem ficarmos limitados aos exemplos de manifestação de lealdade ao soberano enquanto símbolo da nação, tomaremos agora alguns casos através dos quais verificaremos que a fidelidade poderia também ser dedicada por um senhor a outro. Mas não nos iludamos, os casos que conseguimos reunir nas crônicas são poucos e as suas peculiaridades, como veremos, prestam-se mais para demonstrar justamente o contrário, ou seja, que as relações de dependência no reino português se davam, na realidade, entre o senhor e o rei. De qualquer forma, mesmo não se caracterizando nem a pirâmide feudal nem o entrecruzamento de homenagens, essenciais para caracterizar um feudalismo típico, veremos que existia a possibilidade de alguns pouquíssimos potentados possuírem os seus vassalos.
Logo no início da triunfante campanha do Mestre de Avis, Martim Afonso Valente, alcaide do castelo de Lisboa, negava-se a entregá-lo ao mestre, alegando que prestara homenagem ao conde João Afonso, irmão da rainha. Cercado o castelo, D. João mandou construir um artifício de guerra, ao qual chamavam gata, e os lisboetas juravam que colocariam nele, as respectivas mulheres daqueles que se encontravam no castelo, caso ele continuasse se negando a entregá-lo. Nesse clima de ameaça Nuno Álvares Pereira pediu licença ao Mestre para ir conversar com Martim Afonso, objetivando convencê-lo a entregar o castelo. E nesta conversa, embora sem nenhuma possibilidade real de manter o castelo, Martim Afonso conseguiu realizar a convencional preitesia com Nuno Álvares, da seguinte forma: se no prazo de quarenta horas o conde João Afonso não o socorresse, então ele entregaria o castelo. De fato, somente após o mensageiro ter ido ao conde e voltado com a ordem de que poderia entregar o castelo é que Martim Afonso sentiu-se desvinculado do compromisso assumido e o entregou ao Mestre, num gesto paradigmal de como devia ser o procedimento daqueles que estavam ligados a outrem pelos laços da homenagem. Laços de homenagem que, se nesse exemplo estão próximos da conduta feudo-vassálica, não significavam exatamente que essas relações desenvolviam-se em toda a sua plenitude em Portugal, pois mesmo nesse caso cabem algumas ressalvas: o compromisso de Martim Afonso poderia ser um ato restrito à guarda do dito castelo, sem outras implicações; a fidelidade aqui parece-nos estar mais afeta ao partido político que se formava em torno da rainha ? assim como concomitantemente havia o partido do mestre ? do que propriamente em torno de qualquer tipo de contrato vassálico; ademais João Afonso era irmão da rainha, o que pode configurar que fosse seu representante e não um mero senhor feudal.
Quando da guerra civil castelhana entre D. Pedro, o Cruel e Henrique de Trastâmara, este último contava, em seu exército, com uma companhia inglesa que, a soldo, combatia a seu lado. Ocorreu, entretanto, que D. Pedro, praticamente batido, foi à Inglaterra onde conseguiu reavivar sua esperança de reconquistar o trono, graças a uma aliança que firmou com o rei inglês. Voltou então à Castela, na companhia do Príncipe de Gales, que comandava a força inglesa que arregimentara. O comandante da companhia inglesa, Hugo de Carnaboi, ao saber da aproximação do príncipe foi-se para ele, abandonando ao seu contratante, D. Henrique. Traição? Não. O Príncipe de Gales era o Senhor de Hugo Caverley, portanto, o seu procedimento foi de respeito para com as suas responsabilidades de vassalo. E a reação de D. Henrique também foi compatível com a de um perfeito cavaleiro medieval, conhecedor das regras, pois embora pudesse ter reprimido a tropa mercenária inglesa, não o fez, deixando-a que partisse. A Lopes essa atitude não deixou de parecer estranha, mas não devemos nos esquecer que, do episódio participaram mercenários transpirenaicos e o futuro rei castelhano D. Henrique, todos mais acostumados ao feudalismo puro que o próprio cronista, os primeiros pela nacionalidade e o segundo por ter participado de campanhas militares no reino da França.
Finalmente para demonstrarmos, sem restrições, que ao menos os grandes potentados portugueses podiam ter sob o seu comando homens que lhe deviam fidelidade, tomemos como exemplo a manifestação de indignação de Fernão Lopes quando narra como os servidores de Nuno Álvares foram acusados, injustamente, de o terem abandonado. Diante da acusação Lopes afirmou que os homens do Condestável eram
“... tam leaaes e tam fieeis e prouados por boons e ardidos homeens darmas, que ja ajnda que vehera todo o poderjo de Castella, ante sse leixarom todos morrer ante seu senhor que o desemparar per nenhuma guysa. E se dizem que o deyxarom, pois contassem pera hu se forom e que se fez delles, ou se tornarom pela el-Rey que os recebera muy bem por tal cousa! Porem tam maa e tam errada opinyom, defamador de sseus boons e leaaes vasallos, com o geolhos em terra peça perdom aa verdade, a qual se passou desta maneyra.”
Na seqüência Lopes justifica que os servidores de Nuno Álvares jamais o abandonaram e que a acusação não passava de um equívoco. Os homens que supostamente o teriam abandonado quando deixou o rei em Alenquer e foi-se para Alentejo, não eram os seus, mas uma escolta especial que lhe dera D. João I para acompanhá-lo até que atravessasse o Tejo. Esse fato prestou-se para nos mostrar, especialmente em virtude da indignação do cronista, que se a fidelidade era a regra entre um senhor e outro, muito mais o era na relação do súdito para com o seu rei.
Todavia, existiam as exceções, constatando-se no período vários casos de felonia, que, inclusive, na maioria das vezes não eram propriamente traições injustificáveis, mas até mais complicado que isso, representavam mudanças de senhor por motivos variados, decorrentes de fatores circunstanciais, especialmente de ordem política. Passemos em revista alguns desses casos.

A FELONIA

A caracterização da felonia, ou seja, a quebra do compromisso vassálico, em Portugal é uma tarefa problemática, principalmente porque neste reino as relações feudo-vassálicas jamais se estabeleceram em sua plenitude, conforme temos visto. Seria menos difícil se estivéssemos lidando com esse tipo de relações no feudalismo puro, onde as obrigações mútuas eram previamente estabelecidas, ficando ambas as partes cientes dos dias de serviço militar devidos ao ano, das taxas que seriam cobradas e dos outros serviços que deveriam ser prestados. Quer dizer, depois das obrigações estarem estabelecidas quantitativamente e tendo-se em conta que essas normas não se subordinavam a questões de mérito, ou seja, se a causa das partes envolvidas era ou não justa, seria mais fácil estabelecermos quem estaria desrespeitando ou não o trato. No caso português, onde os contratos feudo-vassálicos do tipo francês não se constituíam em regra e prevaleciam, nas relações vassálicas, o vínculo direto com o soberano, temos que enveredar para a análise do mérito de cada caso em particular, se quisermos proceder a um balanço sobre essa questão. Partiremos, no entanto de algumas hipóteses para tentarmos demonstrar que os desvios dos princípios éticos eram muito raros e que, portanto, as razões do rompimento do compromisso de fidelidade eram outras, tais como a falta de dinheiro para a manutenção da casa senhorial, a desgraça do senhor e, principalmente a confusão na mente da nobreza que, diante da crise sucessória em virtude da morte de D. Fernando, dividiu-se entre o apoio ao Mestre de Avis e ao Rei Castelhano, D. João I. Tomemos, portanto, alguns casos dentre os que aparecem nas crônicas de Lopes.
Durante a guerra pelo poder entre os meio-irmãos castelhanos, Pedro, o Cruel e Henrique de Trastâmara, um tal Pero Carrilho, vassalo deste último, passou-se para D. Pedro, com quem ficou apenas alguns dias, abandonando-o tão logo cumpriu o seu real intento que era o de libertar a condessa Dona Joana, mulher de D. Henrique que estava prisioneira em Castela. Neste caso, não adianta pretendermos tornar Pero Carrilho um herói, por ter libertado uma dama, nem atribuir ao seu feito a dignidade de façanha [no sentido de ato cavalheiresco] pois, segundo Lopes, ele fez “suas avenças com el-rei Dom Pedro: que o herdasse em seu reino e que se viria para ele”. Portanto, havia firmado um compromisso de vassalagem, cujo desrespeito, do ponto de vista ético, somente pode ser considerado traição, sem quaisquer justificativas desta qualificação.
Os grandes senhores dificilmente deixaram de ter algum caso, no mínimo controverso, nas suas relações com os vassalos. O Mestre de Avis não foi diferente e teve também que se deparar com alguns casos de infidelidade. Lopes cita literalmente o Conde D. Pedro, D. Pedro de Castro, João Afonso de Beça e Garcia Gonçalves de Valdes que, tendo recebido proposta do rei castelhano, de serem colocados em maior estado do que o de que desfrutavam, propuseram-se a matar o Avis. Para tanto planejaram pegá-lo de surpresa, quando fosse inspecionar os engenhos de guerra com pouca segurança, ou, se calhasse, de forma que hoje nos parece mais pitoresca: João Afonso de Beça, hábil cavaleiro, quando andava com o mestre, tomava-lhe a dianteira e depois, com sua lança arremessava-se sobre ele, desviando-se um pouco antes de atingi-lo com a pretensão, segundo Lopes, de tornar esta ação tão corriqueira que um dia o mataria sem que ninguém interviesse à tempo. Entretanto esta tática falhou porque Fernão Álvares, um fiel vassalo do Mestre certa vez pôs-se à frente de João Afonso desviando com a sua lança a do mal-intencionado cavaleiro que a partir de então foi proibido dessa prática. Em seguida todo o plano foi descoberto, mas a maioria dos envolvidos conseguiu fugir, menos Garcia Gonçalves que foi queimado. E o Mestre, como que para seu consolo dizia não ser “o primeiro que fui emganado per falssos vassallos, nem ei de seer o derradeiro”.
Neste caso também, em nossa maneira de entender, fica configurada a traição, não pelo fato de que se o plano desse certo alguns nobres passariam para o lado castelhano, mas porque havia uma morte premeditada. Afinal, a mudança de um lado para o outro, em casos como esse, em que se vivia um período de guerra entre pretendentes ao mesmo trono, era relativamente comum. O próprio Lopes reconhece isso, dizendo que os senhores prudentes se precaviam em relação a essas mudanças de vassalos, mas que o Mestre não recusava àqueles que se ofereciam para ajudá-lo, devido a necessidade que tinha do serviço de bons fidalgos. Portanto, ao que parece, os casos de felonia eram relativamente comuns na Península como, ademais, o eram também em outras partes da Europa, como Lopes bem nos demonstra ao narrar conversa que teria se passado entre o Duque da Bretanha e seus fidalgos, na qual aparecem algumas posições sobre o assunto;
“hu s diziam que amte queriam seer cornudos que cahirem em maao caso; outros cativos e presos por sempre; e assi cada hu nomeava pera ssi o mall que amte queria que lhe avehesse, que cometer tam grave exçesso, ell veemdo as temçoões de todos, começou de sorriir e disse: nõ sab es que vos dizees; ca por mais pequena cousa dessas, cahairia cada hu de vos em ell, e eu convosco, quamdo me a maão vehesse. E elles pregumtamdo por que rrazom seria aquello; respõndeo elle estomçe e disse: Por vimgar h a pouca de sanha, ou por cobiiça dacreçemtar em homrra.”
Cornudos e prisioneiros para sempre, são expressões que, se por um lado demonstram um verdadeiro pavor dos fidalgos medievais em caírem em casos de felonia, refletem por outro, uma certa ingenuidade. As coisas àquela época não se passavam bem assim, e o Duque, percebendo que as traições eram bem mais comuns do que imaginavam os seus, tentou explicar-lhes a causa, atribuindo à vingança e à cobiça a culpa pela existência de traições. Sua síntese entretanto foi parcial, pois, na verdade, se estes dois sentimentos moviam alguns ao desrespeito dos compromissos vassálicos, essa não era a regra geral. Muitos outros motivos podem ser apontados, como ilustraremos com os exemplos a seguir.
Iniciemos com a história do Condestável, que por ter mudado de Senhor, bem que poderia ser considerado traidor, ao menos se tivermos em conta o ponto de vista de seus adversários. Não tinha, afinal, Nuno Álvares recebido as primeiras armas das mãos da rainha Dona Leonor, que o tomou por seu escudeiro? E, no entanto, não foram suas as palavras que nos serviram de exemplo para mostrarmos como um homem se entregava a outro, quando tornou-se vassalo do Mestre de Avis? Portanto, não foi à toa que quando Nuno Álvares deixou seus irmãos e tomou o caminho de Lisboa para colocar-se a serviço do Mestre, a rainha Dona Leonor, demonstrou que se sentia traída, ao dizer aos presentes: “Vistes tall samdiçe de Nuno que eu criei tamanino; que leixou o Prior seu irmaão cõ que hia, e agora vaisse a Lixboa pera o Meestre?”. E tão indignada ficou que pretendeu até mesmo mandar prendê-lo e só não o fez porque as pessoas que consigo estavam a desaconselharam, dizendo que talvez a sua intenção fosse outra. Traidor para um lado, herói para o outro, essa é a nossa conclusão, não nos parece existir outra forma de tomarmos um partido sem incorrermos em algum tipo de parcialidade. Nuno Álvares, afinal, deveria ter boas razões para deixar os seus irmãos e passar-se para o lado do Mestre. O vigor de sua juventude e a busca de honra, tão peculiar aos jovens segundogênitos de seu tempo, não podem ser descartados, todavia não podemos deixar de ao menos insinuar que o nascente apego à nacionalidade por certo também já se manifestava nele.
E que dizer de Diogo Lopes Pacheco que, ao longo de sua vida, mudou cinco vezes de lado, tendo sido vassalo de quatro reis? Todas essas mudanças teriam se constituído em traições? Vejamos resumidamente a sua história, para ao final tirarmos a nossa conclusão.
Quando conhecemos Diogo Lopes Pacheco, através de Lopes, ele era vassalo de D. Afonso IV. Este rei, em seu leito de morte, lembrando-se de que mandara matar em Coimbra, a bela Inês de Castro, amante de seu filho D. Pedro, mandou chamá-lo, bem como aos outros envolvidos no assassinato e aconselhou-os a abandonarem o reino, pois bem sabia que, após o seu falecimento, o seu herdeiro procuraria vingar-se. Foram-se então Pero Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes, para Castela, onde tornaram-se vassalos do rei D. Pedro, o Cruel. Nenhuma traição portanto nessa mudança de senhor. Sobre Diogo Lopes pesava apenas a suspeita, aliás jamais esclarecida, de que participara da morte de Dona Inês. Atendeu ao conselho de D. Afonso por certo por conhecer o gênio vingativo de seu herdeiro e sucessor, D. Pedro I.
Entretanto, para o seu infortúnio, depois que D. Pedro ascendeu ao trono português, ocorreu de virem para a sua mercê, Nunes de Gusman, Mem Rodrigues Tenório, Fernan Godiel de Toledo e Fernam Sanches Caldeirom, todos ameaçados de morte pelo rei castelhano, por motivos políticos. E o novo rei português, sedento de vingança pela morte da amada, propôs ao seu homônimo castelhano, a troca de homiziados, o que de fato ocorreu, culminando com a execução de todos, com exceção de Diogo Lopes. Este, no dia em que era para ter sido preso, havia saído à caça e um pobre aleijado, a quem sempre ajudava com esmolas, conseguiu sair da cidade e avisou-o sobre o que estava se passando. Diogo, conseguiu fugir atravessando todo o reino disfarçado com as roupas do mendigo que o auxiliara, passou por Aragão e foi-se para a França, onde colocou-se sob a proteção de D. Henrique de Trastâmara. Mais tarde, este D. Henrique, assumiu a coroa Castelhana, após matar o seu meio-irmão, Pedro, o Cruel, enquanto que, em Portugal, dada a morte natural do outro Pedro, este cognominado Justiceiro, assumiu D. Fernando. O novo monarca português, certa feita recebeu Diogo Lopes como embaixador de D. Henrique e, na oportunidade, após ouvir a sua história, recebeu-o por vassalo, restituindo-lhe todos os seus bens. Mas não durou muito esse novo contrato vassálico, pois Diogo Lopes, por se opor tenazmente ao casamento entre D. Fernando e Dona Leonor Teles, temeu alguma represália e foi-se, com seus filhos, novamente para Castela, colocando-se sob a proteção de D. Henrique. Diogo Lopes foi, portanto, consecutivamente, vassalo de D. Afonso, D. Pedro de Castela, D. Henrique de Castela, D. Fernando e novamente de D. Henrique.
Portanto, Diogo Lopes sempre foi vassalo de reis, o que nos leva a dar à palavra vassalo, ao menos em Portugal e Castela, a conotação de súdito juramentado. Nem herói, nem traidor, apenas um homem desestabilizado por um serviço sujo que teria prestado ao seu senhor, o rei D. Afonso. De qualquer forma, não deixa de ser um caso interessante, pois um herói não precisaria recorrer a tantos senhores e um traidor não teria tantos senhores a aceitá-lo. De qualquer forma cabe perguntar: com reis tão traiçoeiramente caprichosos podemos condenar tais condutas? Alfim, como conclusão, devemos admitir que a troca de senhores funcionava como que uma espécie de válvula de escape das tensões e dos conflitos medievais, uma fórmula que propiciava a manutenção do sistema.
Na quebra do contrato vassálico, o mais comum, como temos visto até agora, era que o vassalo trocassse de senhor, todavia, podia ocorrer também o contrário, o senhor abandonar os seus vassalos à sua própria sorte. Foi o que ocorreu com o infante D. João, amante [marido por juras?] de dona Maria, irmã da rainha Dona Leonor Teles, que, após assassiná-la, mesmo perdoado pelo rei e pela rainha, deixou Portugal e foi-se para Castela, temendo a vingança dos familiares da vítima. Os vassalos do infante ficaram desamparados. E aqui convém ressaltarmos que a relação vassálica não era inócua, havia uma dependência real em relação ao senhor. O abandono significava o desemprego, com todas as suas conseqüências, pois, afinal, a vassalidade, em Portugal, quando não real, correspondia a uma clientela que, na ausência do feudo, redundava no recebimento de pensões. E, por isso é que, ao saberem da fuga do senhor, os vassalos do infante, causavam piedade a quantos o viam, pois:
“Os braados e choro era muito, despenando-sse e dando grandes punhadas no rrostro e fazendo suas faces taaes, que todas eram tornadas em sangue. Durou esto per grande espaço, como quem nom tiinha que os estorvasse, e canssaço e mingoa de falla os fez cessar de suas dooridas vozes. Duas grandes pressas os movia a fazer isto: a primeira, suidade e bem-querença que aviam de seu senhor, por lhe seer graado e liberall e muito prazível companheiro; a outra, quando ell fugia com tall rreceo de seer preso ou morto, que he de cuidar que fariam elles ou que esperança teeriam de sua vida.”
De qualquer forma, essa história tem um final mais ou menos idêntico a outras já mencionadas, podendo servir como padrão de comportamento no mundo medieval. Houve uma reacomodação dentro do sistema: o infante D. João tornou-se vassalo do rei de Castela, de quem recebeu terras, dinheiro e fortalezas; seus vassalos, no momento em que o infante estava com a sua vida reorganizada, foram chamados a irem-se para ele, o que de fato ocorreu àqueles que ainda não tinham, por sua vez, “acertado outros modos de viver”.
Convém sublinhar, embora já possa estar implícito nos casos relatados, que essa acomodação, a qual estamos nos referindo ao longo desse capítulo, acontecia, na grande maioria das vezes, independentemente da vontade das pessoas envolvidas, mas ao gosto das circunstâncias. Para termos uma idéia, vejamos o próprio caso desse infante D. João que, após assassinar a amante, como dissemos, foi-se para Castela, onde foi bem recebido. Ocorreu todavia que, com a morte de D. Fernando, a sua situação em Castela ficou muito delicada, pois sendo meio-irmão do falecido rei, filho que era de D. Pedro, poderia ser lembrado para ocupar o trono, o que inviabilizaria o projeto do rei castelhano, D. João, que tinha pretensões ao trono português, na condição de genro. Para evitar tal eventualidade, o infante foi preso por ordem do rei. Na prisão, ao receber o recado que o seu meio-irmão, o Mestre de Avis, havia se tornado regedor e defensor do reino, o infante tomou a seguinte decisão: mandou dizer ao Mestre de Avis que tomasse o título de Rei de Portugal, pois somente assim poderia ser libertado da prisão em que se encontrava e pediu a todos os seus vassalos que fossem servir o Mestre. Dessa forma, aqueles vassalos, que ele abandonara e que depois os mandara chamar, voltaram para Portugal, pondo-se ao serviço do mestre que “os rreçebeo mui bem, e follgou muito com elles”.
Poderíamos continuar citando outros exemplos, entretanto eles nos parecem desnecessários já que os mencionados se nos afiguram suficientes para a demonstração, em que estamos empenhados, de que a troca de vassalos e senhores no medievo português era mais ou menos comum, não se tratando apenas e simplesmente de casos de felonia, mas prestavam-se para acomodações dentro de uma sociedade em que os laços de dependência de homem para homem eram necessários para a manutenção do equilíbrio social. E a questão não se limitava ao medievo português, toda a Europa Ocidental participava de
“uma mesma atmosfera religiosa, cultural e política, e cuja unidade profunda não escapava aos homens dos séculos XIV e XV, que falavam de Cristandade, de Latinidade, de Europa e de Ocidente”
e, afinal, o imaginário cavaleiresco era demasiadamente forte e espetacular para ficar circunscrito na área geográfica de um reino. E o romance do Graal, ajudava em muito na difusão do ideal da cavalaria.
Lopes, que conhecia a demanda, colocou nas bocas do rei D. João I e de Mem Rodrigues Vasconcelos, um diálogo esclarecedor sobre essa questão. Estando cercada a localidade de Coira, o Condestável recusou-se a colocar os seus homens em combate, o que contribuiu para que ela não fosse tomada. Descontente, evidentemente, com o resultado, o Rei disse, como quem graceja:
“Gram mjngua nos fezerom oge este dia aquy os boons caualleiros da tauolla Redomda, ca çertamente se elles aquy forom, nos tomaramos este logar.” [Ao que respondeu Mem Rodrigues] “Senhor, nom fezerom aquy myngua os caualleiros da Tauolla Redomda; ca aquy estaa Martym Vaasquez da Cunha que he tam boom come dom Galluaam, e Gomçallo Vasquez Coutinho que he tam boom come dom Tristam, e ex aquy Joham Ffernandez Pacheco que he tam bom come Lançarote, - e assy doutros que uio estar açerca, - e ex-me eu aquy que valho tamto como dom Quea; assy que nom fezerom aquy myngua esses caualleiros que dizees. Mas fez-nos a nos aquy gram mynguoa o boom Rey Artur, senhor delles, que conheçia os boons seruidores, fazemdo-lhes muyutas merçees, per que auyam desejo de o bem seruir.”
Portanto, além de mostrarmos, com o diálogo supratranscrito, que o trato sobre as coisas de cavalaria era generalizado na Europa, esperamos ter deixado claro que as personagens da demanda do Santo Graal eram como que um espelho da cavalaria. Lopes colocou com muita propriedade na boca de Mem Rodrigues a máxima das relações vassálicas: somente possuía vassalos desejosos de o servir, o senhor que concedesse muitas mercês. Em Portugal o único senhor capaz de generosidade de tal monta era o rei e se alguém, porventura, como o Condestável Nuno Álvares Pereira, ameaçasse atingir tais predicados era logo tolhido em suas pretensões.