CAPÍTULO II

O USO DO NOME DE DEUS E AS MANIFESTAÇÕES DA PRESENÇA DIVINA NA OBRA DE FERNÃO LOPES

1. DEUS GUERREIRO
2. DEUS IRADO
3. A DEUS PRAZ
4. DEUS JUIZ
5. DEUS NOS TÍTULOS ECLESIÁSTICOS E REAIS
6. DEUS PROVIDENTE
7. DEUS CONSOLADOR
8. EM TEMOR A DEUS
9. DEUS PROTETOR
10. MERCÊS A DEUS
11. POR SERVIÇO DE DEUS
12. DEUS TESTEMUNHA
13. REQUERIMENTOS A DEUS
14. ENCOMENDAÇÕES A DEUS
15. AS LEIS DE DEUS
16. OUTRAS FORMAS EM QUE SE USAVA O NOME DE DEUS
17. FILHO DE DEUS
18. MÃE DE DEUS
19. APELO AOS SANTOS DE DEUS


CAPÍTULO II

O USO DO NOME DE DEUS E AS MANIFESTAÇÕES DA PRESENÇA DIVINA NA OBRA DE FERNÃO LOPES

Reconhecendo que poderíamos ter sido mais breves ao abordarmos o assunto deste capítulo, fazendo uma síntese mais densa, desejamos, para justificar esse procedimento, tecer algumas considerações preliminares, visto que não nos passou desapercebido o excesso cometido nas exemplificações de evocações a Deus feitas pelo homem medieval. Para chegarmos ao número de menções ao nome de Deus que registramos nas crônicas de Lopes, não nos bastou uma única leitura, por mais metódica que tenha sido, e tivemos que rever toda a obra, página por página. Em seguida, foi-nos necessário nova retomada a fim de agruparmos as evocações em suas várias formas e sentidos para, finalmente, procedermos à análise de todo esse material. Nesta última etapa, verificamos que a dinâmica de nossa pesquisa nos havia conduzido a uma utilização abusiva de algumas expressões, sobre as quais convém prestar alguns esclarecimentos preliminares, porque redundam em prejuízo, embora parcial, à qualidade da análise geral que pretendíamos continuar desenvolvendo: mostrarmos a significativa importância de Deus no imaginário social português da época.
A maior parte das expressões a que estamos nos referindo, dizem respeito a repetições mecânicas, de tal forma desgastadas que se tornam substancialmente esvaziadas de significado. “Se Deus quiser” e “Graças a Deus” constituem-se os melhores modelos de que dispomos para exemplificação, pois, com certeza, não eram utilizadas para exprimir uma convicção, embora talvez a convicção fosse então bem maior do que hoje, mas porque vinham à boca por mera força do hábito.
Em face desta situação, vislumbramos, inicialmente, a alternativa de privilegiarmos a qualidade em detrimento da quantidade, deixando permanecer no trabalho apenas aquilo que transcendesse ao lugar comum, hipótese que abandonamos por não termos resistido à idéia de aproveitar todos os dados coletados pacientemente ao longo de nossa pesquisa. Com certeza, em mais de setecentas e cinqüenta oportunidades Lopes usou o nome de Deus em sua obra. Numa época em que o ardor religioso era muito forte, é compreensível que Deus, o grande responsável inclusive em traçar os rumos da história da humanidade, conforme vimos anteriormente, ocupasse tanto espaço no cotidiano das pessoas. Guerreiro, irado, juiz, consolador, temido, protetor, recebedor de mercês e de graças, amado, glorificado, louvado, misericordioso, voluntarioso, piedoso, testemunha de juramentos, onisciente, onipresente, onipotente e oniparente, em quem se espera, se recomenda, se aconselha, Deus aparece com impressionante freqüência e de forma muito marcante na obra de Lopes. É o que pretendemos analisar a seguir, procurando, sempre que possível, destacar os aspectos que ultrapassem o lugar-comum.

1. DEUS GUERREIRO

Para que uma pessoa tenha disposição de ir a uma guerra e expor-se a todas as suas agruras, inclusive à possibilidade de vir a morrer nela, é preciso que tenha bons motivos. Para que um grupo de pessoas participe da guerra, ou seja, para que se organize um exército, disposto a defender uma causa, é necessário que esses bons motivos sejam mesmo convincentes. Na Idade Média, via de regra, a grande protagonista da guerra era a nobreza, sempre envolvida em questões fundiárias e em sucessões mal resolvidas. Não eram raros os casos em que um rei ou um grupo da nobreza conseguia envolver toda uma nação em suas questões particulares, utilizando-se admiravelmente do imaginário da época.
Este imaginário, muito rico, será abordado com freqüência ao longo deste trabalho, vejamo-lo, por ora, no que concerne à interferência divina nas guerras. Iniciemos por dizer que este imaginário tinha as suas raízes na Bíblia. Ao menos é a impressão que nos deixa Frei Rodrigo de Cintra, da Ordem de São Francisco, em um sermão proferido por ocasião em que o rei de Castela levantou o cerco de Lisboa em 1384. Conta Frei Rodrigo que quando Jerusalém estava cercada pelo rei Assur, Deus enviou um anjo e “este amgio de Deus hu a noite [ferira] os do arreall, e matara çemto e oiteemta e çimquo mil delles”. No mesmo sermão, frei Rodrigo lembra que para livrar Betulia do cerco que lhe impunha o príncipe Olofernes
“... hordenara Deos que sahira fora da cidade a samta molher Judic so fimgimento que a visse Ollofferrnes e a cobiiçasse pera dormir com ella: e fora ssi que a vira e cobiiçara; seemdolhe levada a sua teemda que sse lamçou ell farto de vinho, e adormeçeo primeiro, e ellla cortoulhe a cabeça com a sua espada, e tornousse pera a çidade; em outro dia achamdo os do arreall seu senhor morto, e seemdo mui torvados, começarom de fugir, e assi foi deçercada a çidade.”
Lembremos ainda que um outro frade da Ordem de São Francisco, o nosso já conhecido Pedro, em sermão comemorativo pela vitória de Aljubarrota, em 1385, também cita textos bíblicos para demonstrar a participação divina em combates, falando, como já vimos, de Josué que, estando cercado por seus inimigos em Gabon, foi salvo porque “Deus emuiara pedrisco sobrelles, de que muytos mais morreram que aa espada”, e de Gedeão, que com apenas trezentos homens, matara todos os seus inimigos “que eram tantos como gafanhotos.”
É surpreendentemente forte o apelo a esse imaginário. Os sermões em geral, numa época de constantes guerras, a exemplo dos que mencionamos, deveriam referir-se com freqüência a essas interferências divinas. Quando se ouvia, portanto, que Deus, através de um anjo, matara cento e oitenta e cinco mil, que armara uma cilada culminando com a morte do rei Olofernes, usando como isca uma mulher, ou ainda, que este Deus fora capaz de dizimar um exército inimigo com uma chuva de pedriscos, ficava fácil conceber que se essas intervenções foram possíveis no passado o seriam também no presente. Assim, haviam pessoas encarregadas especialmente de rezar em favor dos combatentes. A rainha Dona Beatriz incumbia-se pessoalmente de supervisionar as damas, em orações ininterruptas, para que seu esposo vencesse em Aljubarrota, a batalha que estava próxima a se desencadear. Do lado português houve até uma reunião na Câmara para decidir o que fariam para ter Deus em sua ajuda. De qualquer forma “a Deus ficaua outorgar vitorja aa quaall delles sua merçe fosse”.
Mas, a nossa certeza de que na Idade Média havia a idéia de um Deus muito participativo nos acontecimentos cotidianos, se reafirma quando nos deparamos com a afirmação de Victor Deodato da Silva, ensinando que a
“...subordinação de tudo o que ocorre na natureza e entre os homens à vontade divina permeou todo o pensamento medieval nas suas mais diversas manifestações, desde as mais apegadas ao sensível e ao próximo, próprias da mentalidade popular, até as mais refinadas e abstratas especulações dos meios universitários.”
A participação de Deus no dia-a-dia medieval era uma realidade para os coevos. Desta realidade tirou proveito a classe dominante, que usou à exaustão este imaginário, no qual ela própria acabou acreditando, porque “a classe dominante não consegue mistificar as demais sem mistificar a si mesma”. Não é à toa que D. Pedro I mandou que fosse escrito, em latim, numa das faces das moedas que mandou cunhar durante o seu reinado, os dizeres “Deus, ajuda-me e faz-me vencedor sobre meus inimigos”. Por certo ele acreditava que Deus imiscuía-se nas querelas terrenas e o ajudaria se ao longo dos dez anos de seu reinado tivesse havido alguma guerra.
A presença de Deus na Guerra era constante. Aliás, a guerra era tida como que uma espécie de tribunal no qual Deus julgava quem tinha razão. Quando havia alguma desavença, não havendo resolução amigável, ao invés de se dizer que estava declarada a guerra, era comum dizer-se que se “deixava em juízo de Deus”. O rei de Aragão deixou em juízo de Deus a guerra que se travou entre o seu reino e o de Castela a partir de 1357. Quando D. João I, de Castela, invadiu Portugal reclamando os direitos de sua mulher, filha do rei falecido, D. Fernando, o seu homônimo português mandou-lhe dizer que voltasse para a sua terra senão “seja çerto que eu poerey este feito em juizo de Deus que o liure per batalha como sua merçee for”. Da mesma forma, o condestável Nuno Álvares Pereira disse que se o rei castelhano não saísse de Portugal, “el-Rey meu Senhor o poõe todo na maão de Deus e o quer liurar per batalha e esperar sobresto o seu juizo”. Quando o duque de Lancaster invadiu Castela, reclamando aquele reino por herança de sua mulher, Dona Constança, filha de D. Pedro, um embaixador castelhano argumentou que o seu Senhor, o rei, lhe requeria que não invadisse o reino, senão fazia “disto juiz o Senhor Deus”. Em carta aos Concelhos Municipais, D. João I anulou todos os atos jurídicos praticados pelo rei castelhano durante o tempo em que ocupou Portugal, alegando que ele não tinha nenhum direito sobre o reino, “como se mostrara pello Senhor Deus (...) moormente na batalha que com elle ouuera, de que lhe Deus dera vitoria”. Outros exemplos poderiam ser inseridos aqui, todavia, por serem repetitivos, deixaremos apenas a indicação de onde se encontram e seguiremos com o nosso raciocínio.
Iniciada a batalha, prevalecia a vontade de Deus. Não importava o efetivo militar ou a superioridade técnica ou tática. De alguma forma Deus intervinha e dava a vitória a quem bem entendesse, podendo até ser por merecimento ou porque aquela parte tinha razão no litígio. Por ocasião da disputa pelo trono português entre 1383 e 1385, um fidalgo castelhano, Gonçalo Mendes, ao ver os homens do condestável português, Nuno Álvares Pereira, tão mal armados, não se conteve e disse aos seus: “Espamtado som de taaes home s como estes, poderem deffeemder este rreino a elRei de Castella, que he hu tamanho senhor, salvo se Deos amda por seu capitom delles”. Lopes deu ainda uma outra explicação sobre a participação divina nas batalhas: não era necessário que Deus fosse o comandante, bastava que procedesse como quando, no inicio da crise de 1383-1385, foram tomados os castelos de “Portallegre e dEstremoz”:
“Era maravilha de veer que tamto esforço dava Deos nelles, e tamta covardiçe nos outros, que os castellos que os amtiigos rreis per lomgos tempos jazemdo sobrelles, com força darmas, nom podiam tomar; os poboos meudos, mal armados e sem capitam, com os vemtrees ao soll, amte de meo dia os filhavam por força.”
Povos meudos, mal armados, sem capitão, com os ventres ao sol, em meio dia tomavam castelos que os reis não conseguiam, mesmo possuindo grande poderio bélico, porque Deus dava covardia aos seus defensores! Não precisaríamos de exemplo mais significativo. Todavia, vejamos alguns outros casos por mostrarem outras formas de participação divina.
Na batalha de Aljubarrota e nos acontecimentos subseqüentes,
“... assy como o Senhor Deus deu aos portugueeses eeforço (sic) e ousança de sse defender de sseus emmjgos e os sperar com boa fouteza o dya daquella gram batalha, assy deu temor e espanto em muytos de sseus comtrayros, desemparando as vilas e logares que em esto reyno por Castella tijnham, sem força nem constrangimento que lhe nenhum fezesse.”
Às vezes a interferência divina processava-se de maneira mais contundente. Quando os castelhanos cercaram Lisboa e a situação dos habitantes tornara-se insustentável, “Deos por Sua merçee prougue de çedo abreviar” tal sofrimento enviando-lhes a peste. Assim,
“...prougue aaquell Senhor que he Primçipe das hostes, e Vemçedor das batalhas que nom ouvesse hi outra lide nem pelleja senom a Sua; e hordenou que o angio da morte estemdesse mais a sua maão e percudisse asperamente a multidom daquelll poboo.”
Quer dizer, se não dava covardia, temor ou espanto aos adversários de seus protegidos, Deus mandava, como se viu acima, o anjo da morte, lembrança dos tempos bíblicos. Mas, além de participante ativo nas batalhas, Deus era responsável também pelo término das guerras. Ele é quem decidia o momento oportuno para que os adversários se definissem pela paz. Estando Lisboa cercada pelo exército castelhano, ordenou o seu comandante, o próprio rei D. Henrique,
“...poer quatro engenhos que tirassem dentro a pedra perdida; e porque as gentes eram muitas dentro, que matariam tantas d'ellas que com esto e com a mimgua dos mantiimentos que era per força de a tomar cedo: e ssem duvida d'esta guisa fora, se Deus per outro modo mais a pressa nom dera fim a esta guerra...”
Às vezes a interferência divina acabava se tornando alvo de gracejo da parte de alguns. Dissemos logo acima que os habitantes de Lisboa não foram atingidos pelos engenhos colocados por D. Henrique II porque Deus pôs fim à guerra. De fato, as divergências entre D. Fernando e D. Henrique eram tantas que os membros da comitiva diplomática disseram que a paz “parecia que fora feita por Deus”, ao que um dos membros acrescentou: “Nom soomente per Deos (...) mais ainda per todollos anjos do ceeo”. Gracejos à parte, Lopes acreditava, realmente, que a paz era promovida por Deus. Também no encerramento da crise dinástica de 1383-85, ele nos deixa esta idéia ao afirmar “que a Deus aprougue a guerra cessar de todo, e os reis [foram] postos em açossegada paz”.
O que nos parece ser paradoxal é que este mesmo Deus guerreiro, responsável pelo início das guerras, participante delas, e seu finalizador, fosse amante da paz e que inclusive a recomendasse aos homens. Mas é o que encontramos na obra de Lopes. Logo ao assumir o reinado, D. Fernando recebeu embaixadores de Aragão e Castela que desejavam saber suas intenções em relação àqueles reinos, ao que ele respondeu que desejava que houvesse paz entre eles, porque “Deus encomendara paz e amor amtre os hom es, estremadamente amtre os rreis mais que outros”. E o próprio Lopes afirmou que “prougue ao mui alto Deus, amador e autor de paz”, que as pazes fossem firmadas entre D. Fernando e D. Henrique.
Em resumo, o que podemos afirmar é que, também em caso de guerra, Deus era providente. Fernão Lopes colocou nas bocas do Condestável Nuno Álvares e do rei da França umas palavras que, por certo eram muito comumente usadas na época. Nuno Álvares, esforçando-se para convencer os portugueses a lutarem ao lado do mestre de Avis, no início da crise de 1383, diz “muitas vezes acomteçeo, os poucos ve çerem muitos, porque todo vemçimento he em Deos e nom nos home s”. E o rei da França, aliado de primeira hora do rei castelhano enviou-lhe dizer por intermédio de embaixadores o seguinte: “...rogo que se conforte e tome muy gramde esforço ca o vemçimento das batalhas he em Deus, e nenhuum pode contradizer a sua vomtade...”.

2. DEUS IRADO

O Deus irado que aparece nas crônicas de Lopes está muito longe de aparecer com tanta freqüência como a constatada no Antigo Testamento. Na verdade, em Lopes não se encontra nenhuma referência à manifestação da ira divina. O que se denota, em algumas oportunidades, é a existência de um certo temor da sua ira. Certa feita, no acampamento do condestável Nuno Álvares Pereira, houve forte tempestade “e todas suas gemtes cuidauom que a sanha de Deus vinha sobrelles, tanto era per tempo esquiuo e forte”. Em duas oportunidades, a ira divina aparece prenunciada pelo mais alto dignatário da Igreja, de modo praticamente formal. Em duas cartas de dispensa do papa Bonifácio IX a D. João I, os fiéis são prevenidos para não irem contra tal dispensa sob pena de caírem “na jra e maldiçam de Todopoderosso Deus e dos bem-auenturados apostolos Pedro e Paulo”.
Ao que nos parece, temor da ira divina tinha o condestável de Portugal, Nuno Álvares Pereira, que em época de paz, administrando seus domínios, degredava as adúlteras contra a vontade dos próprios maridos, dizendo que “pelos pecados delles e dellas, poys lho conssentião, nam queria que Deus lançasse a sua jra homde elle esteuese”.

3. A DEUS PRAZ

Praz é o presente do indicativo do verbo prouguer, forma arcaica de aprazer, que significa ter por bem, ser contente, agradar-se de alguma cousa. A expressão a Deus praz [no presente, passado ou futuro] aparece com muita freqüência na obra de Lopes, sendo, na maioria das vezes, usada por força do hábito. Em algumas passagens, parecendo refletir o desejo das pessoas no sentido de que Deus ratifique as suas próprias vontades, é colocada como profecia e, pelo menos em uma oportunidade, quer nos parecer que o cronista utilizou-se dela para reforçar o seu conceito de justiça real.
O uso corriqueiro dessa expressão, podemos encontrá-lo, por exemplo, quando D. Fernando, ao assumir o reinado, disse aos embaixadores castelhanos que, “prazendo a Deus”, o seu desejo era preservar a paz existente entre eles, ou no desabafo de Nuno Álvares após a eleição do mestre de Avis para rei de Portugal: “desta vez meu senhor o Meestre sera rei a prazer de Deos, e a pesar de quem pesar”, ou ainda, na promessa de D. João I de reger e governar o reino da melhor maneira possível “como a Deus prazendo”. A seguir, mais dois exemplos onde encontramos a ocorrência do emprego habitual do verbo prouguer. Certa feita o condestável português, Nuno Álvares Pereira, desafiou um castelhano chamado João de Azores para que se batessem dez por dez, porque “sse a Deus prouguesse de o matar”, vingar-se-ia de seu pai, o Mestre de Santiago. O prior Álvaro Gonçalves Pereira, pretendendo casar o filho, embora fosse ainda novo, comunicou-lhe o seu desejo dizendo que o casaria “se a Deus prouguesse”.
Como profecia, também utilizada de forma habitual, podemos encontrar a expressão no conselho que dera frei João da Barroca ao mestre de Avis quando este o procurou pedindo-lhe que opinasse a respeito de sua permanência ou não em Portugal . Disse o frei emparedado “que sse nom fosse do rregno, e começasse de seguir seu feito com ardido coraçom, ca a Deos prazia de ell seer rei”. Quando a rainha Dona Leonor disse a Nuno Álvares que pretendia que de suas mãos ele recebesse as primeiras armas, ele lhe respondeu que tinha isso “em gramde merçee, e que prazeria a Deos que aimda lho ell serviria com boõs mereçimentos”. No primeiro caso a predição do futuro se confirmou; no segundo, ao contrário, Nuno Álvares acabou lutando contra a rainha que o armara.
No último caso, onde dissemos ter o cronista se utilizado da expressão para reforçar o seu conceito de justiça real, devemos ressaltar que, em sua obra, Lopes deu especial destaque à justiça real. No prólogo da Crônica de D. Pedro, ele discorreu sobre o tema dando-lhe tal importância a ponto de afirmar que “como a alma suporta o corpo e partindo-se dele o corpo se perde, assim a justiça suporta os reinos e partindo-se deles perecem de todo”. Todavia, apesar do peso desse argumento e aparentando não estar satisfeito, Lopes apela a Deus para se tornar convincente, dizendo que o uso da justiça pelos reis é o que “a Deus mais apraz”. Ora, aprazendo a Deus, o uso da justiça deveria ser observado com rigor. Pelo menos foi isso que nos pareceu ter pretendido Lopes e, neste sentido, prouguer parece significar a própria vontade de Deus.

4. DEUS JUIZ

Das dezesseis vezes em que Deus é mencionado como juiz nas crônicas de Lopes, quinze já foram referidas no item Deus Guerreiro. Resta-nos, portanto, apenas uma citação para analisar. Façamo-lo com o cuidado de mostrar as circunstâncias em que Deus foi chamado a intervir como juiz. Algum tempo após terem sido negociadas as tréguas entre Portugal e Castela, pondo fim à crise de 1383-85, o rei português entendeu que os castelhanos não estavam cumprindo o que havia sido tratado, especialmente no que tange à libertação dos prisioneiros de guerra. Nesse caso estava estipulado que o infrator deveria pagar uma multa de duzentas e cinqüenta mil dobras, mas, como tal importância era muito elevada para ser tomada em bons móveis, D. João I achou que lhe era lícito tomar algumas cidades castelhanas. Então falou com Martim Afonso de Melo e este com Gonçalves Eanes, tramando a tomada de Badalhoce.
Após passar alguns dias observando atentamente como se procedia a guarda da cidade, ocorreu uma idéia a Gonçalves Eanes. Disse ao porteiro de Badalhoce, que era, segundo Lopes, muito pobre, saber onde se encontrava escondido algum trigo e que se ele lhe abrisse a porta na hora por ele determinada, o trigo seria repartido entre os dois. Tendo o porteiro concordado, Gonçalves Eanes falou a Martim Afonso de Melo que lhe fornecesse trigo com certa regularidade para que ele pudesse ir conquistando a confiança do porteiro. Assim foi feito, num dia ele marcava uma hora, noutro, outra diferente; uma vez entrava ele com o trigo, outra deixava-o por perto e pedia ao porteiro que fosse buscá-lo. Um dia, tudo combinado, mandou que o porteiro fosse buscar o trigo, abriu a porta e permitiu a entrada dos portugueses, que tomaram a cidade.
No tempo em que andou pela cidade e ia, aos poucos, acostumando o porteiro e ganhando a sua confiança, Gonçalves Eanes atraiu a desconfiança dos fidalgos castelhanos locais. E antes mesmo de se confirmar a suspeita, chamado para prestar esclarecimentos, Eanes disse que a desconfiança era infundada e se algum daqueles fidalgos afirmasse que pretendia entregar a cidade aos portugueses, se bateria com ele. Embora no texto de Lopes não apareça, fica implícito que Deus seria juiz e quem ganhasse teria razão. Os fidalgos castelhanos não deram ouvidos ao desafio e Gonçalves Eanes então fez um outro, que, a nosso ver, é o paradigma para mostrar esta face do Deus Juiz. Disse Eanes:
“Hora (...) poys nam querees em feyto darmas, ponham dous esteyos naquella praça, e atem a mym a huum e aquelle que tal afirmou a outro, e ponhaão o fogo, e mostre Deus o seu mylagre.”
Se os castelhanos já não haviam aceitado o desafio da luta, muito menos aceitaram esse. E é até lamentável que o mais perfeito exemplo que encontramos em Lopes, onde Deus apareceria com Deus Juiz, não passasse de um grande blefe.

5. DEUS NOS TÍTULOS ECLESIÁSTICOS E REAIS

São poucas as vezes em que aparece nas crônicas de Lopes, a palavra Deus em títulos eclesiásticos, aliás, só aparece mesmo quando Lopes transcreve na íntegra alguma carta papal. Encontramos, por exemplo, duas cartas papais endereçadas a D. Pedro I, onde aparece o título de praxe: “Inocêncio bispo, servo dos servos de Deus”. Outra carta papal transcrita é a de Clemente VII - que Lopes considera antipapa - ao rei D. João de Castela, consolando-o pela derrota frente aos portugueses. Na carta aparece “Clemente, bispo, seruo dos seruos de Deus”. Finalmente, aparecem mais duas transcrições de cartas pontificais, ambas de dispensa de D. João de Portugal para que pudesse contrair matrimônio com quem entendesse melhor. Em ambas, encontra-se: “Bonifácio, bispo seruo dos seruos de Deus”.
O título utilizado pelos papas aparentemente nada tinha de especial. O seu uso, rotineiro no século XIV, apesar de deixar a impressão inicial de ser por humildade, tinha um significado mais profundo que o passar do tempo disfarçou. Convém lembrarmos que até Gregório VII [1073-1085], os papas eram intitulados “Vigário de São Pedro”, significando que governavam à sombra do apóstolo. É o próprio Gregório VII quem melhor caracteriza essa dependência e, ao mesmo tempo, a autoridade papal na terra, quando, em 1076, ao excomungar Henrique IV, dirige-se a São Pedro dizendo:
“Abençoado Pedro, Principe dos Apóstolos, reclina a tua misericordiosa cabeça e escuta-me, a mim que sou teu servo, e a quem alimentaste desde a infância. Até hoje, livraste-me das mãos dos homens maus que me odeiam em razão da minha fidelidade por ti. És testemunha, juntamente com Nossa Senhora Mãe de Deus, e teu irmão Paulo, entre os santos, de que a tua santa Igreja romana me obrigou contra vontade a governá-la... e entretanto, como creio, é de teu grande agrado que o povo cristão, que te foi prometido, me odedeça especialmente, por me teres concedido a tua autoridade.”
Quer dizer, os papas eram servos e senhores. Servos de Pedro, primeiro bispo de Roma, que dirigia a Igreja através dos papas e, conseqüentemente, Senhores do povo, por concessão da autoridade do apóstolo. Mas é justamente com Gregório VII, que declina a dependência papal com Pedro, à medida que aumenta a autoridade terrena dos papas. Os pontífices começam a ter pretensões de ser vigários de Cristo e não de Pedro. Essa tendência, como dissemos, iniciou-se com Gregório VII [1073-1085] e adquiriu a sua forma acabada com Inocêncio III [1198-1216]. As palavras deste papa não deixam dúvidas:
“Somos o sucessor do Príncipe dos Apóstolos, mas não o seu vigário, nem o vigário de nenhum homem ou Apóstolo, mas o vigário do próprio Cristo.”
Cristo, segundo dogma da Igreja, é Deus, por conseguinte, superior a Pedro, um apóstolo que embora santificado e considerado, sem reservas na época, o primeiro bispo de Roma, possui, na escala hierárquica celestial, poderes infinitamente inferiores. Quer nos parecer, portanto, que a pretensão do papado em ser vigário de Cristo, estaria no aumento proporcional de sua autoridade na relação Pedro x Cristo. Por isso é que afirmamos anteriormente que “Servo dos servos de Deus”, tem apenas a aparência de um título humilde, pois encerra a concepção de um poder temporal pleno.
Nos títulos reais, a freqüência com que aparece o nome de Deus é maior, independentemente do óbvio fato de existirem mais reis que papas num mesmo período. E se os papas somente começaram a usar o título de vigário de Deus em meados do século XII, muito antes já o faziam os reis. Ao que nos parece, da mesma forma que os papas, os reis começaram a insistir no uso desse título para legitimarem a sua autoridade. E maior foi a insistência, em conseqüência da luta que se desenrolou por toda Baixa Idade Média, entre o poder espiritual e o temporal. Os reis, além disso, pretendiam diferenciar-se dos demais segmentos da sociedade que governavam, fazendo do título um “capital simbólico institucionalizado” que lhes proporcionasse dividendos [poder político], independentemente do seu trabalho cotidiano.
Para institucionalizar o título de representante de Deus na terra, os arquitetos dessa idéia foram buscar os ensinamentos de São Pedro aos Romanos, citando a parte da epístola que trata dos deveres para com a autoridade:
“Todo o homem esteja sujeito aos poderes superiores: porque não há poder que não venha de Deus: e os que há esses foram por Deus ordenados (...) o príncipe é o ministro de Deus para bem teu (...) não é debalde que ele traz a espada. Porquanto ele é ministro de Deus, vingador em ira contra aquele que obra mal.”
Depois, esses mesmos arquitetos reforçaram a idéia com os argumentos de Santo Agostinho - que não fogem absolutamente em nada do que transcrevemos acima - com os de São Gregório Magno, que se inspirou em Santo Agostinho, e também com os de São Tomás de Aquino que, apesar da profunda influência recebida de Aristóteles, reconhecia que todo poder emanava de Deus.
Não é, pois, de se estranhar que Lopes admitisse que os reis fossem vigários de Deus, aliás, essa idéia era corriqueira. Dois reis, seus contemporâneos, D. João I e D. Duarte, manifestaram em suas obras essa mesma maneira de pensar. Discorrendo sobre as obrigações dos reis, D. João I deixou claro que os reis deveriam fazer as coisas muito bem feitas, pois delas deveriam prestar contas a Deus, que os fizera reis. Falando sobre o mesmo assunto, D. Duarte ensinava que os reinos não são outorgados para folgança e deleitação, mas para trabalhar de espírito e corpo mais que todos “ pois que tal ofício que o senhor nos outorgou he mayor e de muy grande merecimento aos que o bem fezerem” [grifo nosso].
E esse imaginário estava de tal forma arraigado nas mentes coevas que não se admitia que o poder emanasse da vontade popular, nem mesmo quando um rei era escolhido por uma assembléia do povo, como ocorreu em Coimbra, quando da eleição do Mestre de Avis, em 1385. Nestas circunstâncias aceitava-se que Deus iluminara o povo para tal escolha.
Em conclusão, podemos afirmar que, na Idade Média, procurando-se restabelecer o poder político, enfraquecido desde a derrocada do Império Romano, era natural que houvesse uma grande disputa entre os mais fortes - nobreza e clero e, no interior dessas ordens, respectivamente a realeza e o papado. Na sociedade laica, a evolução do poder real, até tornar-se absoluto, foi lenta, variando o poder do rei de acordo com o poderio da nobreza. Na verdade, “a intensidade das pretensões dos poderosos, estava na razão inversa do grau de firmeza que ellas encontravam no poder central”. De qualquer forma, estamos convictos de que o reconhecimento da autoridade real relaciona-se ao imaginário de que seu poder provinha de Deus.
6. DEUS PROVIDENTE

Já temos sublinhado - ao falarmos da Concepção de História e sobre o Deus Guerreiro - que no período medieval acreditava-se que a providência divina se fazia presente no cotidiano das pessoas, mas, da mesma forma que na obra de Lopes a insistência nesse ponto é grande, nós também nos demoraremos um pouco mais em exemplos que retratem essa idéia, completando, conseqüentemente, o quadro que estávamos a descrever nos itens acima mencionados.
Neste sentido é bom esclarecermos que, para Lopes, existiam coisas que Deus fazia sem que se pudesse compreendê-las. Não adiantava ficar procurando as causas dos acontecimentos, elas não estavam ao alcance dos homens. Antes de Aljubarrota, o rei castelhano era aconselhado pelos fidalgos que o cercavam - e dentre eles D. João Afonso Tello - que deveria dar combate ao rei português por uma série de razões, dentre as quais a de que os seguidores do mestre de Avis já haviam passado por tantos sofrimentos que somente sendo vencidos é que poderiam mudar de idéia e aceitar outro Senhor. E, além do mais, prosseguia João Afonso, não foi para isso que deixaram Castela?
Lopes comenta que o conselho era bom, mas que a Fortuna, que não obedece conselhos, já havia determinado o rumo da batalha. E explica:
“E posto que aquy e em outros lugares nos aas vezes digamos Fortuna, sempre uos porem emteemdee huum dyuynal e profundo juyzo, cuja causa e razom per nos comprehendida ser nom pode.”
Este divinal juízo, que compreendemos por providência divina, intervinha à revelia da vontade das pessoas. Antes da morte de D. Fernando, já se desconfiava que a rainha D. Leonor tinha um amante: o conde João Fernandes Andeiro. Morto o rei, o romance tornou-se acintoso, segundo Lopes, gerando na nobreza o “desejo de vimgar a desomrra delRei”. Era preciso matar o Andeiro, fosse por uma questão moral, reconhecida por Lopes, ou por uma razão política mais forte e óbvia, mas que o cronista pareceu não querer entender. Na realidade, o Conde, sendo amante da rainha, tornava-se mais e mais poderoso, em detrimento da nobreza portuguesa, que passou a tramar o seu fim, sendo porém frustrada em várias tentativas. Quem finalmente urdiu caprichosamente a morte do Andeiro foi um velho aposentado, Álvaro Paes, ao que tudo indica muito respeitado, pois era comum a Câmara consultá-lo sobre as decisões que devia tomar. Esse ancião, arquiteto do plano, chamou primeiramente o próprio irmão da rainha, o conde de Barcelos, D. João Afonso, para pôr em prática o seu desiderato. O conde, apesar de irmão da rainha e de pessoa - como se entendia na época - a quem caberia lavar a honra do rei morto, recomendou para a missão o mestre de Avis, que acabou executando-a.
Não obstante todas as tentativas da nobreza em eliminar o Andeiro, Lopes interpretou que ele fora morto pelo mestre de Avis em virtude da intervenção divina no caso:
“...teemos que o muito alto Senhor Deos, que em sua providemcia nenh a cousa falleçe, que tiinha desposto de o Meestre seer Rei, hordenou que o nom matasse outro senom elle...”
Abundam exemplos desta natureza, em que Deus escolhe, chama, nomeia, encaminha ou dá. E é interessante observar que este sistema providencial não falhava jamais. Em certa oportunidade, Vasco Martins aconselhou o Condestável Nuno Álvares Pereira a não entrar em uma embarcação, pois sonhara que a esquadra seria tomada pelos inimigos. O que seria de esperar de uma época em que as pessoas estavam atentas para os mais variados sinais? Lopes conta que durante a guerra entre D. Pedro de Castela e D. Henrique, um clérigo de São Domingos da Calçada procurou D. Pedro para preveni-lo de que São Domingos o avisara, por sonhos, que deveria guardar-se senão morreria pelas mãos do Conde D. Henrique. E não foi exatamente isso que aconteceu, embora o rei D. Pedro tivesse mandado matar o clérigo? Não era lógico esperarmos que Nuno Álvares desistisse da idéia de embarcar? Mas, ao contrário, ele embarcou dizendo a Vasco Martins que agradecia ao conselho, “mas esta cousa Deos a fara melhor do que vos dizees”. Nada lhe ocorreu, mas por certo, se algo lhe tivesse acontecido, teria dito o cronista que era pela providência divina, que lhe enviara inclusive um sinal.
Algumas vezes era utilizada a expressão “com a mercê de Deus” com o sentido de que Deus era providente. Num trecho da mensagem de paz dita por Diogo Lopes Pacheco a mando do rei castelhano, D. Henrique, a D. Fernando, quando este sucedeu ao falecido pai, D. Pedro, temos um exemplo da primeira forma mencionada:
“Senhor, el-rrei dom Henrrique de Castella meu senhor me envia a vós com sua messagem, como aquell que deseja aver boa paz e amorio convosco e seer vosso verdadeiro amigo [...] vos peço por mercee que praza à vossa grande alteza de me dizerdes declaradamente que voontade teendes em aver paz e amor com elle, pera eu, com a mercee de Deus e vossa, dizer aquello que me lhe mandado e tornar a ell ...”
Noutras vezes usava-se a expressão com a graça de Deus, também no sentido de dizer-se que Deus era providente. No exemplo abaixo, encontramos tanto essa forma como a já mencionada anteriormente. Nele, Nuno Álvares Pereira, faz uma comparação interessante da causa que estava por abraçar:
“Assi he que eu vejo no meu emtemdimento hu poço mui alto e mui profumdo cheo de gramde escoridoõe; e bem me diz a voomtade, que nom ha homem que em elle salte, que delle possa escapar, salvo per gramde millagre, queremdoo Deos livrar delle por sua merçee. (...) Amigos, ho poço mui alto e escuro que vejo ante meus olhos, he a gramde demamda que o Meestre dizem que quer começar por defemssom destes rregnos (...) e emtemdo que quem com elle em ella emtrar, que lhe sera grave e mui perigoso, nem he aimda de cuidar que della escape, salvo per graça de Deos.”
De uma forma ou de outra, através de uma ou de outra expressão qualquer, a idéia que formamos é de que os homens medievais entendiam que quando Deus queria alguma coisa nada lhe interditava a vontade. Assim, protegeu o Mestre de Avis de traições; mandou pragas, como as que dobraram a resistência do faraó do Egito, permitindo a partida do povo de Israel; ou, em nosso caso, provocaram a retirada dos castelhanos que sitiavam Lisboa; guardou Nuno Álvares Pereira, quando invadiu Vila Nova; guardou o reino de Portugal para o Mestre de Avis; e moveu meninos a saírem de Coimbra, montados em cavalinhos de pau, para aclamarem o Mestre como Rei, antes mesmo de serem realizadas as cortes daquela cidade. Enfim, nada lhe escapava do alcance, inclusive a hora da morte das pessoas.
7. DEUS CONSOLADOR

Em nenhum momento de suas crônicas Lopes afirmou que Deus fosse consolador; todavia, a palavra aparece em pelo menos duas oportunidades. Uma na carta em que o papa Inocêncio envia os votos de pesar pela morte de D. Afonso a D. Pedro I, seu filho e sucessor; outra, no sermão proferido por frei Rodrigo de Sintra, em ação de graças por ter sido levantado o cerco que os castelhanos faziam sobre Lisboa.
Diz a carta do papa Inocêncio, em termos conclusivos:
“E assim, muito amado filho, piedosamente te aconselhamos que te consoles no Senhor Deus e consideres em tua vontade como sucedes no regimento de teu pai, o qual, por exemplo de vida, se mostrou sempre ser fiel católico.”
Nada mais que um conselho papal, uma formalidade corriqueira.
Frei Rodrigo, por sua vez, foi incisivo, rotula Deus e lhe coloca palavras na boca:
“E nos assi postos na postumeira parte de tamanha lastima e amgostura, disse o mui alto Rei çellestrial, Padre de gramdes misericordias e Deos de toda comssollaçom, no comssistorio da sua sabedoria: Tempo é que hajamos compaixom com a çidade atribullada e nom a leixemos padeçer...”
Pai de grandes misericórdias e Deus de toda consolação! Se tivessemos analisado este trecho quando tratamos do Deus Providente, com certeza, o assunto não teria ficado deslocado, pois, afinal, como se percebe tudo o que ocorre é atribuido á vontade Deus. Optamos entretanto por uma classificação mais detalhada, pois, mesmo correndo o risco de sermos redundantes, esmiuçamos mais detalhadamente as diversas formas de uso do nome de Deus.

8. EM TEMOR A DEUS

Ao contrário de muitos homens que se intitulavam os seus representantes na Terra e que às vezes eram implacáveis na imposição de sua suposta vontade, Deus não parece ter sido muito severo aos olhos do homem medieval. Ao menos essa é a conclusão que podemos tirar se analisarmos o reduzido número de menções feitas por Lopes a atitudes tomadas pelos contemporâneos em virtude do temor a Deus. Aliás, é questionável o próprio significado da expressão. Ao que tudo indica, temor a Deus não significava exatamente medo de Deus, mas um comportamento exemplar das pessoas.
Numa carta, já mencionada em outra oportunidade, onde o papa Inocêncio envia seu voto de pesar a D. Pedro I, pela morte de seu pai D. Afonso, encontramos, pela primeira vez, menção de que as pessoas deveriam viver com temor a Deus. Após aconselhar que se consolasse em Deus, o papa prosseguia dizendo:
“Porém requeremos à tua real clareza que sempre com firme desejo vivas em temor do Senhor Deus, honrando a sua Santa Igreja e, sendo favorável às eclesiásticas pessoas, as mantenhas sempre em seus direitos e liberdades; e que sejas amador e defensor das viúvas e dos órfãos, alçando os agravos aos teus súbditos - que lhe não seja feita injúria -, e que, sem recebimento de alguma pessoa, sempre sejas honrador e amador da justiça, de guisa que por tuas obras dignamente sejas chamado por nome de rei que bem rege.”
Na verdade, através desse conselho, que se constitui em espécime exemplar de topos eclesiástico, o papa indicou os rumos que pretendia fossem seguidos pelo novo rei, balizou-lhe o caminho, traçou-lhe o perfil do rei medieval ideal. Viver “em temor do Senhor Deus” significava ser um cristão católico, caridoso e justiceiro. Agindo dessa forma, o papa Inocêncio afiançava que D. Pedro viveria em paz e folgança, “havendo Deus em sua ajuda”.
A orientação papal parece-nos ter sido a regra geral, na Idade Média, para que as pessoas vivessem em temor a Deus. Ao menos Lopes usou também o termo, no mesmo sentido, referindo-se ao Condestável não como um obcecado pela conduta exemplar, mas como exemplo de perfeição: Nuno Álvares vivia com temor a Deus, pois ouvia missas; vivia honestamente com a sua mulher e tornou-se casto após sua morte, embora tivesse apenas trinta e seis anos quando enviuvou; praticava a caridade e protegia as viúvas e órfãos.

9. DEUS PROTETOR

Mesmo não desconhecendo que o se “Deus quiser” ou o “graças a Deus” são exemplos de expressões demasiadamente desgastadas e que dificilmente transcendem significativamente esse nível, queremos dizer que como protetor, ou dando ajuda às pessoas nas suas lides diárias, Deus aparece nas crônicas de Lopes com relativa freqüência. Essa ajuda poderia ser em recompensa a alguma ação realizada. Por exemplo, o papa Inocêncio, em carta a D. Pedro I, afirmava categoricamente que o rei “haveria Deus em sua ajuda” se cumprisse corretamente suas funções reais. Da mesma forma, o conde de Cambridge, quando desembarcou em Portugal para ajudar o rei D. Fernando na guerra contra os castelhanos, disse-lhe “que sse ell quiria que o Deus ajudasse em sua guerra, que desse a obediência ao padre santo de Roma”. Mas, às vezes, não fica explicitado se a ajuda divina foi por merecimento ou gratuita. Lopes narra, num capítulo da guerra entre Henrique de Trastâmara e Pedro o Cruel, que este último mandou chamar os mouros para virem em sua ajuda. Esses, durante um cerco, destruíram parte do muro de Córdova, mas não puderam invadir a cidade graças à resistência de seus moradores. Recuando à tarde, os mouros deram oportunidade para que os de Córdova recuperassem o muro e se preparassem para o combate do dia seguinte, “tomando muito gram prazer, porque os Deus livrara de tamanho perigoo”. Teria a ajuda divina sido uma recompensa em virtude da resistência dos moradores de Córdova? Outro exemplo: no início da revolta que culminou com a ascensão do Avis ao trono português, o chamado povo meudo começou a lutar para tomar Portallegre “de manhã e antes do meio-dia com a ajuda de Deos já o havia tomado”[Grifo nosso]. Onde está o merecimento? Por outro lado, prova insofismável da crença de que Deus ajudava as pessoas de acordo com o seu merecimento, nós a encontramos na passagem onde Lopes conta que estando Lisboa cercada pelos castelhanos, no início do reinado do Avis, as pessoas encarregadas de rezar em benefício do rei mandaram chamar, para se reunirem na Câmara, “honestas pessoas religiosas, doutores e mestres em theologia, pera auerem com elles comselho como aueriam Deus em sua ajuda”, e chegaram à conclusão de que não deveriam permitir na cidade o uso
“...de feitiços nem legamentos nem de chamar diabos nem descantaçõoes nem dobra de vedeira nem carautollas nem sonhos nem lançar roda nem sortes nem outra nenhuma cousa que arte de fissica nom comsenta; e mais, que nom cantassem janeiras nem mayas nem outro nenhuum mes do anno, nem furtasem augoas nem lamçasem sortes nem outra obseruança que a tal feito pertemça.”
Constou ainda deste rol a proibição de carpir e bradar sobre os finados, por ser obra de pagãos, sob pena de tê-los dentro de casa durante oito dias. Nessa oportunidade, ficou estabelecido que todo ano se realizariam procissões em louvor a circuncisão de Cristo e por devoção a Mãe de Deus. Interessante observar que as procissões, aparentemente para acalmar a sanha de Deos e dar o merecimento de que os lisboetas necessitavam para poderem ser ajudados por Deus, foram marcadas justamente nas datas em que os pagãos cantavam as janeiras e as maias. Nenhuma coincidência, apenas e tão somente uma prática já consagrada da Igreja em substituir costumes pagãos por festas religiosas.
Na maioria das vezes, o Deus ajudador de Lopes aparece mais como uma esperança, como um desejo de alguém ou, ainda, como voto. Quando o primeiro cerco sobre Lisboa foi levantado pelos castelhanos, D. Fernando mandou construir uma muralha para proteger a cidade, pois, segundo Lopes, “...pareceo a el-rrei Dom Fernando que esto com a ajuda de Deus e seu boom encaminhamento era cousa pera mui cedo viir a fim...”
Depois da morte do papa Gregório, reunidos os cardeais para eleição do novo pontífice, conta Lopes, que o povo romano, alvoroçado, dirigiu-se ao paço onde se realizava o conclave, bradando que lhe dessem papa romano ou itálico. Um dos cardeais, o de Sabina, disse então aos outros: “Senhores, sejamos logo, que creo com a ajuda e graça de Deus que concordaremos cedo e enlegeremos papa”.
Exemplo análogo encontramos numa preleção feita por Nuno Álvares Pereira à sua gente. Esquematizando a tática de uma batalha prestes a ocorrer contra os castelhanos, disse em determinado momento que “com a ajuda de Deus, eu serei o primeiro que toparei com elles”
Quer dizer, eram esperanças, desejos que as pessoas manifestavam em realizar algo, aparecendo, algumas vezes, explicitamente a palavra esperança. Tomemos alguns exemplos. O rei Ricardo, da Inglaterra, em carta ao Mestre de Avis diz-lhe que tinha “esperança em Deos [que ele] seria veemçedor com gramde e honrada vitória”. Nuno Álvares Pereira disse aos seus que se chegassem a Deus, pois “sse o assi fezermos teemdo firme esperamça em Deos, poucos de nos veemceram muitos”. Mas às vezes a fé podia resultar em prejuízo. O astuto condestável português, Nuno Álvares Pereira, certa feita mandou que seus homens soltassem, à noite, algumas vacas próximas ao castelo de Momssaraz. Pela manhã, o alcaide do Castelo, vendo aquilo, imaginou “que Deus lhe tragia boa vemtuira pella porta” e saiu para recolhê-las, deixando aberta a porta do castelo. Nuno Álvares imediatamente invadiu-o, tomando-o em nome de D. João I. Também Dona Maria Teles, irmã da rainha Dona Leonor, não se deu muito bem com sua esperança de que Deus interviria em seu favor. Avisada que estivesse atenta, pois seu amante, o infante D. João, ia à ela com más intenções, a irmã da rainha limitou-se a dizer que “todallas cousas eram em poder de Deus e que aquello que a ell prouguesse e fosse sua mercee, que esso seeria e mais nom”. Claro que ao dizer isso Dona Maria imaginava que não lhe aconteceria nada, entretanto foi brutalmente assassinada.
Finalmente, encontramos que a “ajuda de Deus” podia ser usada como ameaça. Nuno Álvares Pereira, antes de uma batalha com os castelhanos, diz aos seus:
“Amigos, n nhu nom duvide de mim; e todos aquelles que me ajudardes, Deos seja aquelle que vos ajude; e sse eu aqui morrer per vossas culpas e mimgua, Deos seja aquelle que vos demamde minha morte.”

10. MERCÊS A DEUS

Natural que quem dependia em tudo da vontade de Deus desse-lhe graças, se as coisas lhe corressem bem. Já vimos, quando falamos sobre a Teoria da História, que frei Pedro, embasando-se no Velho Testamento, recomendava que se retribuísse a Deus as graças recebidas, louvando-o com cantar novo. Agradecer a Deus, portanto, já era um velho costume, arraigado na mentalidade dos cristãos, que o faziam até por simples hábito. As formas mais empregadas para o agradecimento eram “mercês a Deus” e “graças a Deus”.
Em cartas, quando as pessoas informavam sobre sua saúde, podiam se expressar da seguinte maneira:
“E porquanto, irmão rei, segundo é conteúdo em vossa letera, vós desejais saber o bom estado de nossa pessoa e da rainha e de nossos filhos, a prazer vosso vos significamos que somos todos sãos e em boa disposição de nossas pessoas, mercês a Deus...”
Em guerra, as oportunidades para agradecimentos eram muitas e às vezes acontecia, desses agradecimentos partirem dos próprios feridos. Numa oportunidade, o ainda Mestre de Avis andava entre os portugueses feridos numa batalha, encorajando-os e fazendo-lhes mercês “e todos davom graças a Deos que os assi ajudara a deffemder de seus emmiigos”. O Mestre de Avis, ao descobrir uma traição que lhe armava Garcia Gonçalves, “deu muitas graças a Deos, que por sua gramde misericordia o quisera guardar de tamanho periigoo”. Terminada a Batalha de Aljubarrota, todos tiveram a vitória “por cousa mjllagrosa, e dando muytas graças ao Senhor Deus, cuja mercee fora de o assy fazer hordenar”.
Com o mesmo espírito de agradecer a Deus, outra expressão que enunciamos acima era “graças a Deus”. Ela aparece nas crônicas de Lopes à exaustão. Tomemos o exemplo que achamos mais veemente:
“Oo cidade de Lixboa e reyno de Portugall, que graças e louuores podyas dar ao teu Deus por taaes marauylhas e beneficios como este, que por muytos que fossem e em ellas multiplicasses, nom parecesses sseer jngrato? Certamente nom somos abastantes pera ello, por a multidom dos nossos pecados. Pois que lhas dara por nos, se nos humaanaes louuores disto nom ssom abastantes. Dem-lhas os sseus ssantos; louuem-no os sseus angeos, e sseiam da hordem dos poderyos, a que jsto maaes pertee(n)ce, dizendo em nome de uos todos: Oo Christo Jhesus, ymagem de Deus Padre, poderoso em virtudes e forte em-nas batalhas, muytas graças e louuores te damos que por a tua jnfijnda piedade quisseste oolhaar por os portugueeses o dya do seu gram trabalho por lhe dar honra de vencimento contra a ssanha de seus cruees emmijgos!.”

11. POR SERVIÇO DE DEUS

Viterbo ensina que a palavra serviço tinha vários significados, podendo ser uma pensão em dinheiro ou em frutas ao senhor; uma refeição que o vassalo oferecia ao senhorio; ou um presente, uma dádiva que o senhor esperava de seus subordinados, sem valor fixado, um mimo. Com referência a Deus, que era tido como Senhor, nada mais natural que se lhe oferecesse o que se fizesse de melhor, aquilo que presumivelmente o agradasse.
D. Pedro I, tido como justiceiro, às vezes excedia-se nas suas atribuições, e seus conselheiros advertiam-no de que as pessoas se agravavam com isso. Por exemplo, não permitia em hipótese alguma que homens casados possuíssem barregãs, sob pena de perderem suas rendas, serem degredados ou até mesmo açoitados em praça pública. Quando lhe diziam da insatisfação que isso causava, respondia que procedia dessa forma “por serviço de Deus e seu e prol deles todos.” Sendo, de fato, esse rei D. Pedro muito duro com malfeitores e bandidos, algumas vezes lhe diziam que ele dava penas muito pesadas para pequenos deslizes. Ele então asseverava que o temor maior dos homens era a morte, portanto, era bom às vezes enforcar um ou dois para que os outros ficassem temerosos e concluía que “assim o entendia por serviço de Deus e prol de seu povo”.
De modo geral, ao que tudo indica, os trabalhos dos reis eram tidos por serviço de Deus, afinal, como temos visto, não eram os reis vigários de Deus na Terra? Isso sem contar que, às vezes, também as suas conveniências eram justificadas como a serviço de Deus. No reinado de D. Fernando, havendo reclamações de que as moedas tinham muitas denominações e valores diversos, o rei tomou medidas no sentido de corrigi-las, “oolhando ell em esto serviço de Deus”. A rainha Dona Leonor, viúva de D. Fernando, estando na regência, despachava de seus Paços “hordenamdo o que compria por serviço de Deos e proveito dos rreinos”, e o Mestre de Avis, ao convencer a mãe de Nuno Álvares a deixá-lo consigo, afirmava que a causa em que ele se queria meter “era serviço de Deos e homrra do rreino”.
Um casamento podia ser considerado “serviço de Deus”, assim como podia ser considerado um desserviço, ou, ainda, temos o exemplo de que desfazer um casamento para tratar outro também era serviço de Deus. Quer dizer, essas expressões subentendem uma carga de lugar-comum muito grande que é dificilmente excedível. De qualquer forma, vejamos algumas referências. Quando o prior, pai de Nuno Álvares Pereira, falou-lhe sobre a sua intenção de casá-lo, assim se expressou: “Nuno, pero tu seja moço e de nova hidade, pareçeme que he bem e serviço de Deos e tua homrra, que tu ajas de casar”. Por ter feito casamentos à revelia dos interessados, D. João I recebeu muitas reclamações das pessoas, que afirmavam ser esse procedimento “comtra conçiençia e seruiço de Deus”. Quando foi tratado o casamento de D. Beatriz, filha do rei D. Fernando de Portugal, com D. Henrique, filho de D. João, rei de Castela, os embaixadores concordaram “que por serviço de Deus e bem de paz e de concordia, que sse desfezessem os esposoiros da dita iffante com dom Fradarique duque de Benavente, seu irmaão, com que estava esposada”. Quer dizer, o “serviço de Deus” não estava no casamento em si, mas na conseqüência que o casamento resultava.
Enfim, o uso da expressão era muito abrangente. Se o povo reivindicava algo aos soberanos, era costume que em resposta eles dissessem que entendiam que tais pedidos eram por serviço de Deus. Se um soberano agradecia aos moradores de uma cidade por terem tomado o seu partido numa guerra, dizia que assim tinham agido por serviço de Deus. Quando Nuno Álvares expulsou as mulheres de sua hoste, o fez por serviço de Deus. A celebração de pazes era “pera Deus ser servido”. E até a obediência que os filhos de D. João I lhe guardavam era “fundada em serviço de Deus”.
12. DEUS TESTEMUNHA

Para os cristãos em geral, inclusive o medieval, um dos atributos de Deus era a onisciência. Prova disso podemos captar facilmente nas crônicas de Lopes, pois era muito comum apelar-se para o nome de Deus neste sentido. “Sabe Deus que nos despraz, sabe Deus que me apraz, Deus sabe que não tive culpa, Deus sabe que não fiz por mal”, eram expressões comumente usadas e tinham o sentido de trazer Deus como testemunha de algo que ninguém vira exceto o autor, ou mesmo como testemunha de algum pensamento ou desejo de alguém. Tomemos um exemplo para não precisarmos nos alongar com explicações. O rei de Castela, D. Henrique, certa feita, ao ouvir de seu embaixador que o rei de Portugal, D. Fernando, não tinha o desejo de manter a paz com ele, assim se expressou: “Deus sabe, que he sabedor de todallas cousas, que eu nom ei voontade d'aver com ell guerra”.
Nessa pequena frase está resumida uma maneira de pensar da época. Deus sabe, porque é sabedor de todas as coisas. E, para tornar ainda mais concreto esse costume, para trazer Deus em cena, tê-lo presente no momento de usá-lo como testemunha, usava-se jurar ao corpo de Deus consagrado. Era comum que se jurasse sobre o Corpo de Deus. quando se fazia algum tratado, quando se tomava alguém em casamento, quando era celebrada alguma paz ou mesmo quando se queria ameaçar de fazer alguma coisa. Tomemos um exemplo de cada uma dessas formas enunciadas.
Num capítulo da guerra entre D. Pedro o Cruel e D. Henrique, na disputa do trono castelhano, este último manteve um encontro com o Rei Carlos, de Navarra, no qual se estabeleceu que o rei navarro não deveria deixar passar pelo seu reino, em hipótese alguma, D. Pedro e os aliados ingleses que ele fora buscar. E se as gentes de D. Pedro ousassem passar à força, D. Carlos se obrigava a comandar pessoalmente seu exército para proibi-los. Para firmarem bem esse tratado, juraram “sobre o corpo de Deus” e ainda, por segurança, o rei de Navarra deixava três castelos como reféns, e o rei D. Henrique, uma vila. Neste caso nem a palavra dos reis, nem o juramento sobre o corpo de Deus e nem mesmo a garantia dos castelos e da vila serviram, pois o rei D. Pedro passou por Navarra como bem quis.
A princesa Beatriz, filha de D. Fernando e D. Leonor de Portugal, foi prometida em casamento quatro vezes e acabou se casando com um quinto pretendente, D. João, rei de Castela. Neste avultado número de vezes que a princesa foi prometida, podemos perceber o quanto os casamentos, principalmente na realeza e na nobreza, eram feitos por interesses políticos e não por qualquer afinidade afetiva, e o quanto os juramentos com ou sem a presença do corpo de Deus, não tinham muito significado prático. Mas de qualquer forma, continuemos com o nosso assunto. Quando a princesa foi autorizada pelos pais a se casar com o rei castelhano, ela logo “jurou no corpo de Deus consagrado [...] que ella cassasse com o dito rrei de Castella e ho ouvesse por esposo e marido”. Em seguida, juraram o rei, a rainha e todos os fidalgos presentes.
O casamento entre D. Beatriz e o rei castelhano foi o coroamento do fim da guerra que se travara entre este soberano e D. Fernando de Portugal. E firmada as pazes, a nobreza e os procuradores das vilas de ambos os reinos, cada qual em sua vez, “jurarom aaquell corpo de Deus consagrado”.
Para finalizarmos o rol de exemplos que enunciamos, citemos aquele que nos pareceu mais significativo dentre aquelas juras que se fazia a Deus como ameaça. No início da chamada “Revolução de 1383-1385”, o Mestre de Avis ordenou que se desse combate ao castelo de Lisboa, guardado por Martim Afonso Valente. Os moradores da cidade gritavam aos de dentro que dessem o castelo ao Mestre
“senom que juravõ a Deus que poeriam em çima da gata Costamça Affomsso, madre dAffomssEanes Nogueira, e irmaã da molher de Martin Affomsso, Alcaide do castello; e isso meesmo as molheres e filhos de quamtos demtro eram...”
Tudo ficou em ameaça, pois Nuno Álvares preitejou o Castelo, que acabou sendo entregue aos partidários do Mestre, sem nenhum combate. Ao que nos parece, não há nenhuma ligação direta entre a entrega do castelo e o juramento a Deus, assim acontecendo também nos outros casos mencionados.

13. REQUERIMENTOS A DEUS

Havia três maneiras básicas de se requerer alguma coisa a Deus durante a época que estamos estudando. Uma corriqueira, em que as pessoas usavam o nome de Deus de maneira praticamente imperceptível; outra protocolar, usada normalmente em mensagens reais; e uma terceira, empregada em casos de desespero, angústia, dor, enfim, um apelo derradeiro.
O uso corriqueiro da expressão, conforme afirmamos, era feito pelas pessoas de maneira imperceptível, por hábito, não havendo praticamente nenhuma convicção na afirmação. Por exemplo, quando se dizia: “queira Deus que não seja pior” não havia fé nisso, a fórmula era apenas uma maneira de dizer. Da mesma forma apareciam expressões do tipo: “que nunca Deus queira” e “rogarei a Deus por vós” e “cuja alma Deus haja”.
Quanto ao uso protocolar da expressão, os exemplos aparecem via de regra em cartas reais ou em mensagens diplomáticas, onde se requer em nome de Deus, principalmente, que não se faça a guerra. O rei de Aragão, por exemplo, em resposta ao cardeal de Bolonha, interessado em colocá-lo em paz com Castela, disse que embora não se sentisse culpado pela desavença, propunha-se a auxiliá-lo contra os mouros com dez galés, pelo período de seis anos ou se houvesse algum combate direto entre mouros e castelhanos, que ele iria com seu próprio corpo - como se costumava dizer na época - para ajudar no dia da batalha. De outra forma, disse ao cardeal que transmitisse ao rei castelhano “que lhe requeiro da parte de Deus, que me não queira fazer guerra”. Essa mesma forma encontramo-la na carta enviada pelo príncipe de Gales a D. Henrique de Castela: o aliado inglês de D. Pedro se propõe a ser mediador da guerra que resolveria o problema sucessório castelhano, ou na resposta de D. Henrique ao Príncipe, onde lhe era requerido da parte de Deus que não se intrometesse naquela guerra. Também D. João I, antes de mover guerra ao rei castelhano, que invadira Portugal reclamando os seus direitos, disse que lhe requeria da parte de Deus e do Mártir São Jorge que voltasse para a sua terra, pois não lhe restaria outra alternativa senão a ação militar.
A terceira forma de requerimentos a Deus parece-nos ter sido a mais significativa de todas elas. Os rogos a Deus em casos extremos eram comuns a todas as camadas sociais. Detenhamo-nos, portanto, um pouco mais nestes casos.
Numa das passagens mais dramáticas escritas por Lopes, nos é narrado o cerco de uma cidade - Çamora - pela rainha Dona Joana, mulher de D. Henrique de Castela, num capítulo da guerra entre este monarca e o rei de Portugal, D. Fernando. Afonso Lopes de Texeda, que tinha a cidade em nome de D. Fernando, foi obrigado a fazer um acordo com rainha, de forma que se não lhe viesse socorro no prazo de alguns dias determinados, ele lhe entregaria a cidade. Para segurança desse acordo, entregou à rainha os seus dois filhos, como reféns. Terminado o prazo e não lhe tendo vindo o socorro, a atitude costumeira a ser adotada na época seria a entrega do castelo; todavia, embora a rainha ameaçasse degolar-lhe os filhos, Afonso Lopes não desejava cumprir o acordo. Por isso, os filhos foram trazidos diante do muro, de forma que os vissem quem se encontrava no castelo e, diante da ameaça de serem mortos, gritavam ao pai: “Oo padre, por Deus e por mercee avee de nós doo, e nom nos leixees assi matar!”.
Nesse caso o apelo ao pai é de tal forma dramático que o requerimento à Deus acaba ficando num segundo plano. Tomemos, pois, outros exemplos que se prestem melhor a satisfazer o nosso objetivo. Em seu leito de morte, perguntou-se a D. Fernando, se acreditava no sacramento recebido - a extrema-unção; ele respondeu que cria, como bom cristão que era, e acreditava também ter sido um mau rei. Por isso chorava muito, “rrogando a Deus que lhe perdoasse”. Muitas vezes o apelo a Deus partia dos humildes, podendo ser coletivo ou individual. Estando Lisboa cercada e havendo a oportunidade de uma preitesia, encontraram-se Pero Fernandes, pelo lado castelhano, e o próprio Mestre de Avis, pelo lado português, para estabelecerem um acordo. Enquanto isso
“As gemtes estavom oolhamdo pellos muiros aa de lomge, rrogamdo a Deos que os posesse em algu a aveemça, per que a çidade fosse deçercada, por a gramde mimgua que aviam de matiimentos.”
Quando o Mestre de Avis percorria o reino português procurando assenhorar-se das localidades que se colocaram ao lado de Castela, deixou Torres Vedras e passou por Leiria, onde uma multidão pedia-lhe ajuda, pois faltavam alimentos. Dentre a multidão, Lopes destacou a participação de um cego que “começou de braadar gramdes braados, rrogamdo por Deos que o levassem comssigo”.
E, às vezes, como dissemos, os requerimentos desesperados a Deus eram feitos por pessoas da nobreza, chegando-se mesmo a encontrar exemplos entre os reis. Estando sendo assassinada pelo amante, o infante D. João, D. Maria, irmã da rainha D. Leonor Telles, suplicou: “Madre de Deus, acorre-me e ave mercee d'esta minha alma”; suas últimas palavras teriam sido: “Jesu filho da Virgem, acurre-me”. Depois de ter sido fragorosamente derrotado em Aljubarrota, o rei de Castela, abandonando o campo de batalha, dirigiu-se a Santarém, onde pôs-se a lamentar, dizendo, segundo Lopes: “Oo Deus, que mao rey e sem vemtura! Oo Senhor, da-me a morte”.
Dissemos anteriormente que muitas vezes usava-se requerer a Deus de maneira corriqueira, de forma praticamente imperceptível. Isso ocorria, ao que nos parece, pelo fato de serem muito comuns na época os requerimentos a Deus. Quer dizer, acreditava-se tanto que Deus podia atender às solicitações humanas e insistia-se tanto nisso que a expressão acabou sendo banalizada. Mas voltamos a insistir: o homem medieval português do século XIV, cria sinceramente que Deus lhe atendia às súplicas. E o melhor exemplo disso é que, na época, chegava-se mesmo a encarregar outras pessoas de requererem a Deus algum benefício. Um bom exemplo é o do Mestre de Avis, que dava alimentos e até mesmo uma certa importância diária para algumas pessoas devotas dedicarem-se a rogar a Deus por ele e pelo estado do reino.

14. ENCOMENDAÇÕES A DEUS

As encomendações a Deus eram feitas em diversas oportunidades e sob várias formas. Após um casamento, por exemplo, os pais podiam dizer ao noivo: “Filho, encomendo a Deus e a vós minha filha”; antes de uma batalha era comum que os combatentes “emcomemdassem a Deos e aa Virgem Maria sua madre” que lhes desse a vitória. Um comandante também podia usar a expressão para desejar bom sucesso aos seus comandados, como o fez o Mestre de Avis, mandando dizer a Nuno Álvares Pereira que o “emcomemdava a Deos”.
“Vá com Deus” era uma outra forma utilizada; todavia, ela não parece ter um sentido benfazejo; ao contrário, nas passagens onde encontramo-la ela se configura mais com o sentido irônico de “já vai tarde”. Da mesma forma, a expressão “fique com Deus”, na única oportunidade em que aparece nas crônicas de Lopes, tem um sentido contrário do que se imagina. Gonçalo Vasques de Azevedo, nobre português indeciso quanto ao partido que deveria tomar na época em que disputavam o trono o Mestre de Avis e o Rei D. Pedro de Castela, não foi receber a este último quando de sua passagem por seu castelo em Torres Novas. O rei castelhano entendeu que Gonçalo Vasques pendia para o lado do Mestre e acampou na vila. Naquela oportunidade, entretanto, a mulher de Gonçalo, Dona Inês, foi visitar o casal real que a convenceu a procurar fazer com que o marido seguisse o partido castelhano. Voltando ao castelo, Dona Inês Afonso, de fato, tentou convencer o marido, mas como sua tentativa foi infrutífera, bandeou-se para o lado do rei. Este, tomando-a como refém, se é que podemos assim dizer, mandou dizer a Gonçalo Vasques “que nom fazia força quer fosse quer nom, que pois ja tiinha sua molher em poder, que ficasse elle com Deos que elle a levaria comssigo pera Castella”. Que explicação poderíamos dar para esse caso? Que Deus era algo abstrato e a mulher algo concreto? Também de forma irônica era utilizada a expressão “vos valha Deus”. Um exemplo encontra-se na argumentação de João das Regras sobre o segredo do casamento de D. Pedro com D. Inês de Castro: “Hora veede que vos valha Deus, que estoria esta pera nenhu ssisudo aveer de creer!”.
“Mantenha-vos Deus” era também uma forma de encomendação, mas utilizada no sentido exato do termo, sem outra conotação. Quando os reis de Castela e Portugal, D. Henrique e D. Fernando, respectivamente, encontraram-se para ratificar o tratado de paz entre os dois reinos, o rei castelhano tomou a iniciativa de iniciar o diálogo, dizendo “mantenha-vos Deus, senhor: muito me praz de vos veer...”. A expressão, ao que tudo indica, era utilizada também em ocasiões solenes, em que se prestava homenagem a algum grande Senhor. Ao menos é a impressão que nos fica quando lemos o capítulo em que D. João I, em visita à cidade do Porto, foi recebido com muitas festas, “homde o beijar da maão e Mantenha-uos Deus, Senhor, era tanto que nom podiam auer vez de comprir suas vomtades.” E, ao passar pelas ruas, “as donas que estauom aas janeellas fallauom altamente que o manteuesse Deus muytos annos”.
“Que Deus perdoe” era uma encomendação normalmente utilizada quando se referia a algum morto, uma expressão que tinha o mesmo efeito que dizer-se “que Deus haja sua alma”. Encontramo-la quando Lopes refere-se a Dona Constança, “filha primeira e herdeira do mui alto rrei dom Pedro que Deus perdoe”; quando se refere a D. Fernando, “a que Deus perdoe” e a “...dona Enes de Castro, a que Deos perdoe...”. Numa única oportunidade a expressão aparece nas crônicas de Lopes sem que seja para referir-se a mortos. Trata-se da passagem em que Dona Maria Teles, irmã da rainha Dona Leonor, falando ao amante, o infante D. João, que a acusava de traição, argumentava: “Oo senhor, eu entendo bem que vós viindes mall consselhado, e perdooe Deus a quem vos tall conselho deu”.

15. AS LEIS DE DEUS

Sabemos que durante o século XIV vigoravam em Portugal múltiplas fontes jurídicas, interpondo-se, simultaneamente, as Leis Nacionais, o Direito Romano, o Direito Consuetudinário, Códigos Castelhanos, impregnados de boa dose de Direito Romano e o Direito Canônico. O Direito Canônico - que incorporava as “Leis de Deus” e que seriam, a princípio, apenas aquelas contidas no decálogo - era utilizado na época para dar solução a várias causas que diziam respeito ao “casamento, relações de parentesco, doações pias, testamentos, usura, e lucro e etc.”. Quer dizer, o Direito Canônico extrapolava os limites da Igreja e fazia-se sentir em toda a sociedade.
Todavia, apesar de toda a importância que assumia o Direito Canônico na época, em Lopes encontramos poucas referências a ele, embora as que apareçam sejam significativas. Já no prólogo da Crônica de D. Pedro fica bem clara a importância das leis divinas, quando Lopes define justiça:
“Justiça é uma virtude que é chamada toda virtude, assim que qualquer que é justo, este cumpre toda virtude, porque a justiça, assim como lei de Deus, defende que não forniques nem sejas gargantão e, isto guardando, se cumpre a virtude da castidade e da temperança. E assim podeis entender dos outros vícios e virtudes”
Para o que nos interessa de momento, podemos concluir que Lopes entendia, em suma, que o cumpridor da Lei de Deus era um virtuoso. Mas temos outros dados que talvez sejam mais significativos que o trecho acima na demonstração da importância das Leis Divinas para a época. No prólogo da crônica de D. João I, Fernão Lopes tece uma série de elogios a esse rei, dizendo, entre outras coisas, que era um bom católico e que
“Elle fez a gramdes leterados tirar em linguagem os auamgelhos e autos dos apostolos e epistollas de Sam Paulo e outros spirituais liuros dos santos, por tall que aquelles que os ouuissem fossem mais deuotos açerca da lley de Deus.”
Bem, mas poderíamos raciocinar que não deveríamos tomar a atitude de um rei como suporte para mostrarmos a importância da Lei Divina para a época ou de qualquer outra lei, porque o rei, como tal, tinha todo o interesse em irradiar o mais que pudesse imaginários capazes de fazer com que o povo se tornasse cada vez mais obediente e submisso. Mas o que dizer de João das Regras, bacharel em direito que, apesar de ter sido formado em Bolonha, escola que a partir do século XII provocou um renascimento do Direito Romano, insistia em dizer:
“Certo he que mais devemos dobedeeçer a Deos que aos home s; nem ley nenhu a he dita ley, se non he comforme com a ley de Deos, e mamdados da egreja...”
Devemos obedecer mais a Deus que aos homens e nenhuma lei pode ser considerada lei se não estiver em conformidade com a Lei de Deus. Isso, saído da boca de um legista, é o suficiente para deixarmos por encerrado o assunto, sem precisar esmiuçar outros exemplos.

16. OUTRAS FORMAS EM QUE SE USAVA O NOME DEUS

Outra forma freqüente em que Lopes empregava o nome de Deus era para comparações, dentre as quais a mais marcante nos parece ser a que segue:
“Porque assi como o Filho de Deos depois da morte que tomou por salvar a humanall linhagem, mandou pello mumdo os seus Apostollos preegar o evamgelho a toda creatura; por a quall rrazom som postos em começo da ladainha, nomeamdo primeiro sam Pedro; assi o Meestre, depois que sse despos a morrer se comprisse, por salvaçom da terra que seus avoos gaanharom, emviou NunAllavarez e seus compannheiros preegar pello rreino ho evamgelho portuguees...”
Referências a Deus como ente detentor de algum bem, aparecem principalmente quando são feitas menções à Igreja. Ao narrar o Cisma de Avinhão, Lopes parece não se conformar com a divisão que se operou a partir dele e pergunta:
“... quall he o christaão que aja fe, posto que seja pequena, que sse nom espante de tall feito como este, hom es tam leterados e assi discretos perverteerem seu bõo juizo de guisa que levantarom tall error na Egreja de Deus?”
Promessas a Deus eram raras, normalmente eram feitas em momentos de desespero, como no caso em que, juntamente com Gonçalo Vasques de Azevedo, o Mestre de Avis esteve preso por ordem de D. Fernando, mas por interferência da rainha Dona Leonor. Nessa oportunidade o Mestre “fez voto e prometeo a Deus que sse o livrasse d'aquella prisom a seu salvo, que fosse a Jerusalem visitar o Santo Sepulcro”.
Pedir conselhos a Deus também era incomum. Só mesmo D. Fernando e, mesmo assim, na falta de conselho dos homens, pois ao ser desaconselhado a mover guerra contra Castela, disse que pedira para o seu Conselho dizer qual a melhor forma de fazer a guerra e não se a devia fazer: “Mas pois que o vós assi dizees, eu averei a guerra todavia, e Deus me dará conselho e maneira como a possa fazer e acabar com minha honrra”. Muitas vezes as coisas ou as pessoas podiam ser boas tanto no que concerne a Deus como no que tange ao mundo. Referindo-se, por exemplo, à mãe de Nuno Álvares Pereira, Fernão Lopes diz: “E esta foi mui nobre dona quamto a Deos e ao mundo, viv ndo em gramde castidade e abstinemçia”. . Ou, ao contrário, podiam não prestar nem a um nem ao outro, como o caso do casamento de Dona Leonor com D. Fernando, nos dizeres de João das Regras, que afirmou nas Cortes de Coimbra de 1383 que “tall casamento nom era vallioso quamto a Deos, nem quamto ao mundo, ante foi vergonha e escarnho”. Ora, se um casamento não era válido, o mesmo João das Regras defendia que a rainha “quamto a Deos nom he sua molher” e o rei “quamto a Deus nom he seu marido”.
Desrespeitar a Deus era possível. Quando os ingleses invadiram Castela, reivindicando a Coroa para Dona Constança, filha do falecido rei D. Pedro e mulher do duque de Lancaster, tomaram à força o castelo de Cortijo, não se importando com o fato dos sacerdotes mostrarem o Corpo de Deus e em nome dele rogarem complacência. Contrariar a Deus era até admissível, pois até mesmo sobre Nuno Álvares se disse, certa feita, que ele “querya o que Deus nam querya”. Mas negar ou não crer em Deus eram coisas inconcebíveis para Lopes; ao menos ele ignorou qualquer ato nesse sentido em seu tempo. Não crer em Deus era coisa do passado que se encontrava narrada no Antigo Testamento, e negar a Deus somente “um perro, que com medo dira que Deos nom he Deos”.
A palavra Deus aparece ainda nas Crônicas de Lopes, de variadas formas, dificultando-nos agrupá-las sob um título. Geralmente são expressões que não se repetem mais que uma vez, a exemplo de “Deus lhe revelava”, “Deus çarrara suas orelhas”, “em nome de Deus”, “falando com Deus”, etc. Deixemo-las indicadas.

17. FILHO DE DEUS

Há mais de um século antes de Lopes escrever suas crônicas, a Igreja já havia estabelecido o Credo, no Concílio de Nicéia, em 325. E as divergências sobre a Santa Trindade e a natureza do Pai, Filho e Espírito Santo já estavam resolvidas. Na época de Lopes, portanto, acreditava-se na existência de um Deus em três pessoas. Tal crença estava de tal forma arraigada na mentalidade da época que nem sequer era preciso insistir nessa idéia. Por isso, talvez, nas crônicas apareçam muito poucas referências à Trindade. João das Regras, nas já mencionadas Cortes de Coimbra de 1383, em sua defesa para fazer rei o Mestre de Avis, menciona-a: “...e em nome de Deos que he Samta Trimdade, Padre, e Filho e Spiritu Samto”. E, no seu discurso, ao acusar os castelhanos de heréticos, menciona uma parte do Credo ao afirmar que eles estavam “pecamdo na ffe comtra aquelle artigoo: Creo no Spiritu Samto, e h a Samta Catholica Egreja”.
As referências ao Filho e ao Espírito Santo não chamam a atenção do leitor das crônicas de Lopes, como no caso do Pai. Menções ao Espírito Santo passam desapercebidas, e a Jesus aparecem numa proporção aproximada de uma por cem. Ou seja, para cada cem vezes em que aparece o nome de Deus, aparece uma vez o de Jesus. E, mesmo assim, essas referências não tem o mesmo apelo que encontramos quando do uso do nome de Deus. Numa vez Jesus aparece como exemplo comparativo; nas demais, via de regra, aparece como referência a alguma solenidade religiosa: “em louvor da çircuomçisom de nosso Senhor Jhesu Christo”, em “louuor das çimquo chagas do nosso senhor Jhesu Christo” etc.

18. MÃE DE DEUS

O culto à Mãe de Deus era terno. Ela era vista
“...como a virgem da Anunciação, a jovem mãe do Presépio, e a fiel companheira junto à cruz; como advogada em Caná, e mãe de todos os filhos de Deus, remidos por seu Filho.”
A devoção à Mãe, a exemplo do que acontecia com Deus, atingia indistintamente a nobreza e as camadas populares. D. João I, segundo Lopes, era “muy deuoto da preçiossa Virgem”, e Nuno Álvares Pereira tinha a imagem da “preçiosa Madre” de Deus pintada em sua bandeira. De outro lado, as procissões e a “oraçom da Salue regina em honra e louor da Madre de Deus” refletem a devoção do povo em geral.
A crença de que a mãe de Deus poderia vir em socorro das pessoas também era comum, desde os mais humildes até o próprio rei. D. João I, em resposta a Joham de Monferrara, que lhe dizia que estivesse certo de que venceria a batalha que estava prestes a se travar entre as forças castelhanas e portuguesas [Aljubarrota], dizia: “Essa feuza, tenho eu em Deus e na Virgem Maria que assy sera como vos dizees”. Em outra oportunidade, não tendo por perto o condestável Nuno Álvares Pereira para ajudá-lo contra os castelhanos, o mesmo D. João I disse que tinha quem os ajudaria em seu lugar: “o senhor Deus e sua preçiossa Madre”. E, só para citar um exemplo envolvendo os humildes, os lisboetas, durante o cerco a que estavam submetidos pelos castelhanos, pediam, cada um à sua maneira, “chamando a preçiosa Madre de Deos” em seu auxílio.
Mas a forma mais consagrada de se apelar à mãe de Deus era “Santa Maria, val!”. Essa expressão tinha um sentido bem amplo, significava valha-me, ajuda-me, socorra-me, proteja-me, defenda-me.

19. APELOS AOS SANTOS DE DEUS

São Mateus, São Pedro, São Paulo e São Vicente [padroeiro de Lisboa] aparecem algumas vezes nas crônicas de Lopes, mas ficam muito atrás de São Jorge e Santiago. Estes, santos guerreiros, eram invocados como um estímulo aos combatentes, tão ou mais forte que a própria nacionalidade. Aliás, a nacionalidade era indissociável de um santo guerreiro; “Portugall e sam Jorge”, “Castilha, Samtiago”. E não só os combatentes apelavam para esses santos; o povo, em geral, quando assistia a uma batalha ou quando pedia proteção aos que combatiam, chamava pelo seu auxílio. E os embaixadores, tanto de Portugal como de Castela, ao tratar de assuntos relacionados à guerra, costumavam dizer que requeriam isto ou aquilo da parte de São Jorge ou Santiago, conforme o lado. Mas, apesar da constância com que eram chamados, os santos tiveram sempre um papel secundário e, se a mãe de Deus às vezes era considerada uma advogada dos que lhes pediam a intercessão, os santos eram sempre apenas medianeiros que rogavam junto a Deus em defesa dos que pediam alguma graça.