CAPÍTULO II
O USO DO NOME DE DEUS E AS MANIFESTAÇÕES
DA PRESENÇA DIVINA NA OBRA DE FERNÃO LOPES
1. DEUS GUERREIRO
2. DEUS IRADO
3. A DEUS PRAZ
4. DEUS JUIZ
5. DEUS NOS TÍTULOS ECLESIÁSTICOS E REAIS
6. DEUS PROVIDENTE
7. DEUS CONSOLADOR
8. EM TEMOR A DEUS
9. DEUS PROTETOR
10. MERCÊS A DEUS
11. POR SERVIÇO DE DEUS
12. DEUS TESTEMUNHA
13. REQUERIMENTOS A DEUS
14. ENCOMENDAÇÕES A DEUS
15. AS LEIS DE DEUS
16. OUTRAS FORMAS EM QUE SE USAVA O NOME DE DEUS
17. FILHO DE DEUS
18. MÃE DE DEUS
19. APELO AOS SANTOS DE DEUS
CAPÍTULO II
O USO DO NOME DE DEUS E AS MANIFESTAÇÕES
DA PRESENÇA DIVINA NA OBRA DE FERNÃO LOPES
Reconhecendo que poderíamos ter sido mais breves ao abordarmos
o assunto deste capítulo, fazendo uma síntese mais densa,
desejamos, para justificar esse procedimento, tecer algumas considerações
preliminares, visto que não nos passou desapercebido o excesso
cometido nas exemplificações de evocações
a Deus feitas pelo homem medieval. Para chegarmos ao número
de menções ao nome de Deus que registramos nas crônicas
de Lopes, não nos bastou uma única leitura, por mais
metódica que tenha sido, e tivemos que rever toda a obra, página
por página. Em seguida, foi-nos necessário nova retomada
a fim de agruparmos as evocações em suas várias
formas e sentidos para, finalmente, procedermos à análise
de todo esse material. Nesta última etapa, verificamos que
a dinâmica de nossa pesquisa nos havia conduzido a uma utilização
abusiva de algumas expressões, sobre as quais convém
prestar alguns esclarecimentos preliminares, porque redundam em prejuízo,
embora parcial, à qualidade da análise geral que pretendíamos
continuar desenvolvendo: mostrarmos a significativa importância
de Deus no imaginário social português da época.
A maior parte das expressões a que estamos nos referindo, dizem
respeito a repetições mecânicas, de tal forma
desgastadas que se tornam substancialmente esvaziadas de significado.
“Se Deus quiser” e “Graças a Deus”
constituem-se os melhores modelos de que dispomos para exemplificação,
pois, com certeza, não eram utilizadas para exprimir uma convicção,
embora talvez a convicção fosse então bem maior
do que hoje, mas porque vinham à boca por mera força
do hábito.
Em face desta situação, vislumbramos, inicialmente,
a alternativa de privilegiarmos a qualidade em detrimento da quantidade,
deixando permanecer no trabalho apenas aquilo que transcendesse ao
lugar comum, hipótese que abandonamos por não termos
resistido à idéia de aproveitar todos os dados coletados
pacientemente ao longo de nossa pesquisa. Com certeza, em mais de
setecentas e cinqüenta oportunidades Lopes usou o nome de Deus
em sua obra. Numa época em que o ardor religioso era muito
forte, é compreensível que Deus, o grande responsável
inclusive em traçar os rumos da história da humanidade,
conforme vimos anteriormente, ocupasse tanto espaço no cotidiano
das pessoas. Guerreiro, irado, juiz, consolador, temido, protetor,
recebedor de mercês e de graças, amado, glorificado,
louvado, misericordioso, voluntarioso, piedoso, testemunha de juramentos,
onisciente, onipresente, onipotente e oniparente, em quem se espera,
se recomenda, se aconselha, Deus aparece com impressionante freqüência
e de forma muito marcante na obra de Lopes. É o que pretendemos
analisar a seguir, procurando, sempre que possível, destacar
os aspectos que ultrapassem o lugar-comum.
1. DEUS GUERREIRO
Para que uma pessoa tenha disposição de ir a uma guerra
e expor-se a todas as suas agruras, inclusive à possibilidade
de vir a morrer nela, é preciso que tenha bons motivos. Para
que um grupo de pessoas participe da guerra, ou seja, para que se
organize um exército, disposto a defender uma causa, é
necessário que esses bons motivos sejam mesmo convincentes.
Na Idade Média, via de regra, a grande protagonista da guerra
era a nobreza, sempre envolvida em questões fundiárias
e em sucessões mal resolvidas. Não eram raros os casos
em que um rei ou um grupo da nobreza conseguia envolver toda uma nação
em suas questões particulares, utilizando-se admiravelmente
do imaginário da época.
Este imaginário, muito rico, será abordado com freqüência
ao longo deste trabalho, vejamo-lo, por ora, no que concerne à
interferência divina nas guerras. Iniciemos por dizer que este
imaginário tinha as suas raízes na Bíblia. Ao
menos é a impressão que nos deixa Frei Rodrigo de Cintra,
da Ordem de São Francisco, em um sermão proferido por
ocasião em que o rei de Castela levantou o cerco de Lisboa
em 1384. Conta Frei Rodrigo que quando Jerusalém estava cercada
pelo rei Assur, Deus enviou um anjo e “este amgio de Deus hu
a noite [ferira] os do arreall, e matara çemto e oiteemta e
çimquo mil delles”. No mesmo sermão, frei Rodrigo
lembra que para livrar Betulia do cerco que lhe impunha o príncipe
Olofernes
“... hordenara Deos que sahira fora da cidade a samta molher
Judic so fimgimento que a visse Ollofferrnes e a cobiiçasse
pera dormir com ella: e fora ssi que a vira e cobiiçara; seemdolhe
levada a sua teemda que sse lamçou ell farto de vinho, e adormeçeo
primeiro, e ellla cortoulhe a cabeça com a sua espada, e tornousse
pera a çidade; em outro dia achamdo os do arreall seu senhor
morto, e seemdo mui torvados, começarom de fugir, e assi foi
deçercada a çidade.”
Lembremos ainda que um outro frade da Ordem de São Francisco,
o nosso já conhecido Pedro, em sermão comemorativo pela
vitória de Aljubarrota, em 1385, também cita textos
bíblicos para demonstrar a participação divina
em combates, falando, como já vimos, de Josué que, estando
cercado por seus inimigos em Gabon, foi salvo porque “Deus emuiara
pedrisco sobrelles, de que muytos mais morreram que aa espada”,
e de Gedeão, que com apenas trezentos homens, matara todos
os seus inimigos “que eram tantos como gafanhotos.”
É surpreendentemente forte o apelo a esse imaginário.
Os sermões em geral, numa época de constantes guerras,
a exemplo dos que mencionamos, deveriam referir-se com freqüência
a essas interferências divinas. Quando se ouvia, portanto, que
Deus, através de um anjo, matara cento e oitenta e cinco mil,
que armara uma cilada culminando com a morte do rei Olofernes, usando
como isca uma mulher, ou ainda, que este Deus fora capaz de dizimar
um exército inimigo com uma chuva de pedriscos, ficava fácil
conceber que se essas intervenções foram possíveis
no passado o seriam também no presente. Assim, haviam pessoas
encarregadas especialmente de rezar em favor dos combatentes. A rainha
Dona Beatriz incumbia-se pessoalmente de supervisionar as damas, em
orações ininterruptas, para que seu esposo vencesse
em Aljubarrota, a batalha que estava próxima a se desencadear.
Do lado português houve até uma reunião na Câmara
para decidir o que fariam para ter Deus em sua ajuda. De qualquer
forma “a Deus ficaua outorgar vitorja aa quaall delles sua merçe
fosse”.
Mas, a nossa certeza de que na Idade Média havia a idéia
de um Deus muito participativo nos acontecimentos cotidianos, se reafirma
quando nos deparamos com a afirmação de Victor Deodato
da Silva, ensinando que a
“...subordinação de tudo o que ocorre na natureza
e entre os homens à vontade divina permeou todo o pensamento
medieval nas suas mais diversas manifestações, desde
as mais apegadas ao sensível e ao próximo, próprias
da mentalidade popular, até as mais refinadas e abstratas especulações
dos meios universitários.”
A participação de Deus no dia-a-dia medieval era uma
realidade para os coevos. Desta realidade tirou proveito a classe
dominante, que usou à exaustão este imaginário,
no qual ela própria acabou acreditando, porque “a classe
dominante não consegue mistificar as demais sem mistificar
a si mesma”. Não é à toa que D. Pedro I
mandou que fosse escrito, em latim, numa das faces das moedas que
mandou cunhar durante o seu reinado, os dizeres “Deus, ajuda-me
e faz-me vencedor sobre meus inimigos”. Por certo ele acreditava
que Deus imiscuía-se nas querelas terrenas e o ajudaria se
ao longo dos dez anos de seu reinado tivesse havido alguma guerra.
A presença de Deus na Guerra era constante. Aliás, a
guerra era tida como que uma espécie de tribunal no qual Deus
julgava quem tinha razão. Quando havia alguma desavença,
não havendo resolução amigável, ao invés
de se dizer que estava declarada a guerra, era comum dizer-se que
se “deixava em juízo de Deus”. O rei de Aragão
deixou em juízo de Deus a guerra que se travou entre o seu
reino e o de Castela a partir de 1357. Quando D. João I, de
Castela, invadiu Portugal reclamando os direitos de sua mulher, filha
do rei falecido, D. Fernando, o seu homônimo português
mandou-lhe dizer que voltasse para a sua terra senão “seja
çerto que eu poerey este feito em juizo de Deus que o liure
per batalha como sua merçee for”. Da mesma forma, o condestável
Nuno Álvares Pereira disse que se o rei castelhano não
saísse de Portugal, “el-Rey meu Senhor o poõe
todo na maão de Deus e o quer liurar per batalha e esperar
sobresto o seu juizo”. Quando o duque de Lancaster invadiu Castela,
reclamando aquele reino por herança de sua mulher, Dona Constança,
filha de D. Pedro, um embaixador castelhano argumentou que o seu Senhor,
o rei, lhe requeria que não invadisse o reino, senão
fazia “disto juiz o Senhor Deus”. Em carta aos Concelhos
Municipais, D. João I anulou todos os atos jurídicos
praticados pelo rei castelhano durante o tempo em que ocupou Portugal,
alegando que ele não tinha nenhum direito sobre o reino, “como
se mostrara pello Senhor Deus (...) moormente na batalha que com elle
ouuera, de que lhe Deus dera vitoria”. Outros exemplos poderiam
ser inseridos aqui, todavia, por serem repetitivos, deixaremos apenas
a indicação de onde se encontram e seguiremos com o
nosso raciocínio.
Iniciada a batalha, prevalecia a vontade de Deus. Não importava
o efetivo militar ou a superioridade técnica ou tática.
De alguma forma Deus intervinha e dava a vitória a quem bem
entendesse, podendo até ser por merecimento ou porque aquela
parte tinha razão no litígio. Por ocasião da
disputa pelo trono português entre 1383 e 1385, um fidalgo castelhano,
Gonçalo Mendes, ao ver os homens do condestável português,
Nuno Álvares Pereira, tão mal armados, não se
conteve e disse aos seus: “Espamtado som de taaes home s como
estes, poderem deffeemder este rreino a elRei de Castella, que he
hu tamanho senhor, salvo se Deos amda por seu capitom delles”.
Lopes deu ainda uma outra explicação sobre a participação
divina nas batalhas: não era necessário que Deus fosse
o comandante, bastava que procedesse como quando, no inicio da crise
de 1383-1385, foram tomados os castelos de “Portallegre e dEstremoz”:
“Era maravilha de veer que tamto esforço dava Deos nelles,
e tamta covardiçe nos outros, que os castellos que os amtiigos
rreis per lomgos tempos jazemdo sobrelles, com força darmas,
nom podiam tomar; os poboos meudos, mal armados e sem capitam, com
os vemtrees ao soll, amte de meo dia os filhavam por força.”
Povos meudos, mal armados, sem capitão, com os ventres ao sol,
em meio dia tomavam castelos que os reis não conseguiam, mesmo
possuindo grande poderio bélico, porque Deus dava covardia
aos seus defensores! Não precisaríamos de exemplo mais
significativo. Todavia, vejamos alguns outros casos por mostrarem
outras formas de participação divina.
Na batalha de Aljubarrota e nos acontecimentos subseqüentes,
“... assy como o Senhor Deus deu aos portugueeses eeforço
(sic) e ousança de sse defender de sseus emmjgos e os sperar
com boa fouteza o dya daquella gram batalha, assy deu temor e espanto
em muytos de sseus comtrayros, desemparando as vilas e logares que
em esto reyno por Castella tijnham, sem força nem constrangimento
que lhe nenhum fezesse.”
Às vezes a interferência divina processava-se de maneira
mais contundente. Quando os castelhanos cercaram Lisboa e a situação
dos habitantes tornara-se insustentável, “Deos por Sua
merçee prougue de çedo abreviar” tal sofrimento
enviando-lhes a peste. Assim,
“...prougue aaquell Senhor que he Primçipe das hostes,
e Vemçedor das batalhas que nom ouvesse hi outra lide nem pelleja
senom a Sua; e hordenou que o angio da morte estemdesse mais a sua
maão e percudisse asperamente a multidom daquelll poboo.”
Quer dizer, se não dava covardia, temor ou espanto aos adversários
de seus protegidos, Deus mandava, como se viu acima, o anjo da morte,
lembrança dos tempos bíblicos. Mas, além de participante
ativo nas batalhas, Deus era responsável também pelo
término das guerras. Ele é quem decidia o momento oportuno
para que os adversários se definissem pela paz. Estando Lisboa
cercada pelo exército castelhano, ordenou o seu comandante,
o próprio rei D. Henrique,
“...poer quatro engenhos que tirassem dentro a pedra perdida;
e porque as gentes eram muitas dentro, que matariam tantas d'ellas
que com esto e com a mimgua dos mantiimentos que era per força
de a tomar cedo: e ssem duvida d'esta guisa fora, se Deus per outro
modo mais a pressa nom dera fim a esta guerra...”
Às vezes a interferência divina acabava se tornando alvo
de gracejo da parte de alguns. Dissemos logo acima que os habitantes
de Lisboa não foram atingidos pelos engenhos colocados por
D. Henrique II porque Deus pôs fim à guerra. De fato,
as divergências entre D. Fernando e D. Henrique eram tantas
que os membros da comitiva diplomática disseram que a paz “parecia
que fora feita por Deus”, ao que um dos membros acrescentou:
“Nom soomente per Deos (...) mais ainda per todollos anjos do
ceeo”. Gracejos à parte, Lopes acreditava, realmente,
que a paz era promovida por Deus. Também no encerramento da
crise dinástica de 1383-85, ele nos deixa esta idéia
ao afirmar “que a Deus aprougue a guerra cessar de todo, e os
reis [foram] postos em açossegada paz”.
O que nos parece ser paradoxal é que este mesmo Deus guerreiro,
responsável pelo início das guerras, participante delas,
e seu finalizador, fosse amante da paz e que inclusive a recomendasse
aos homens. Mas é o que encontramos na obra de Lopes. Logo
ao assumir o reinado, D. Fernando recebeu embaixadores de Aragão
e Castela que desejavam saber suas intenções em relação
àqueles reinos, ao que ele respondeu que desejava que houvesse
paz entre eles, porque “Deus encomendara paz e amor amtre os
hom es, estremadamente amtre os rreis mais que outros”. E o
próprio Lopes afirmou que “prougue ao mui alto Deus,
amador e autor de paz”, que as pazes fossem firmadas entre D.
Fernando e D. Henrique.
Em resumo, o que podemos afirmar é que, também em caso
de guerra, Deus era providente. Fernão Lopes colocou nas bocas
do Condestável Nuno Álvares e do rei da França
umas palavras que, por certo eram muito comumente usadas na época.
Nuno Álvares, esforçando-se para convencer os portugueses
a lutarem ao lado do mestre de Avis, no início da crise de
1383, diz “muitas vezes acomteçeo, os poucos ve çerem
muitos, porque todo vemçimento he em Deos e nom nos home s”.
E o rei da França, aliado de primeira hora do rei castelhano
enviou-lhe dizer por intermédio de embaixadores o seguinte:
“...rogo que se conforte e tome muy gramde esforço ca
o vemçimento das batalhas he em Deus, e nenhuum pode contradizer
a sua vomtade...”.
2. DEUS IRADO
O Deus irado que aparece nas crônicas de Lopes está
muito longe de aparecer com tanta freqüência como a constatada
no Antigo Testamento. Na verdade, em Lopes não se encontra
nenhuma referência à manifestação da ira
divina. O que se denota, em algumas oportunidades, é a existência
de um certo temor da sua ira. Certa feita, no acampamento do condestável
Nuno Álvares Pereira, houve forte tempestade “e todas
suas gemtes cuidauom que a sanha de Deus vinha sobrelles, tanto era
per tempo esquiuo e forte”. Em duas oportunidades, a ira divina
aparece prenunciada pelo mais alto dignatário da Igreja, de
modo praticamente formal. Em duas cartas de dispensa do papa Bonifácio
IX a D. João I, os fiéis são prevenidos para
não irem contra tal dispensa sob pena de caírem “na
jra e maldiçam de Todopoderosso Deus e dos bem-auenturados
apostolos Pedro e Paulo”.
Ao que nos parece, temor da ira divina tinha o condestável
de Portugal, Nuno Álvares Pereira, que em época de paz,
administrando seus domínios, degredava as adúlteras
contra a vontade dos próprios maridos, dizendo que “pelos
pecados delles e dellas, poys lho conssentião, nam queria que
Deus lançasse a sua jra homde elle esteuese”.
3. A DEUS PRAZ
Praz é o presente do indicativo do verbo prouguer, forma arcaica
de aprazer, que significa ter por bem, ser contente, agradar-se de
alguma cousa. A expressão a Deus praz [no presente, passado
ou futuro] aparece com muita freqüência na obra de Lopes,
sendo, na maioria das vezes, usada por força do hábito.
Em algumas passagens, parecendo refletir o desejo das pessoas no sentido
de que Deus ratifique as suas próprias vontades, é colocada
como profecia e, pelo menos em uma oportunidade, quer nos parecer
que o cronista utilizou-se dela para reforçar o seu conceito
de justiça real.
O uso corriqueiro dessa expressão, podemos encontrá-lo,
por exemplo, quando D. Fernando, ao assumir o reinado, disse aos embaixadores
castelhanos que, “prazendo a Deus”, o seu desejo era preservar
a paz existente entre eles, ou no desabafo de Nuno Álvares
após a eleição do mestre de Avis para rei de
Portugal: “desta vez meu senhor o Meestre sera rei a prazer
de Deos, e a pesar de quem pesar”, ou ainda, na promessa de
D. João I de reger e governar o reino da melhor maneira possível
“como a Deus prazendo”. A seguir, mais dois exemplos onde
encontramos a ocorrência do emprego habitual do verbo prouguer.
Certa feita o condestável português, Nuno Álvares
Pereira, desafiou um castelhano chamado João de Azores para
que se batessem dez por dez, porque “sse a Deus prouguesse de
o matar”, vingar-se-ia de seu pai, o Mestre de Santiago. O prior
Álvaro Gonçalves Pereira, pretendendo casar o filho,
embora fosse ainda novo, comunicou-lhe o seu desejo dizendo que o
casaria “se a Deus prouguesse”.
Como profecia, também utilizada de forma habitual, podemos
encontrar a expressão no conselho que dera frei João
da Barroca ao mestre de Avis quando este o procurou pedindo-lhe que
opinasse a respeito de sua permanência ou não em Portugal
. Disse o frei emparedado “que sse nom fosse do rregno, e começasse
de seguir seu feito com ardido coraçom, ca a Deos prazia de
ell seer rei”. Quando a rainha Dona Leonor disse a Nuno Álvares
que pretendia que de suas mãos ele recebesse as primeiras armas,
ele lhe respondeu que tinha isso “em gramde merçee, e
que prazeria a Deos que aimda lho ell serviria com boõs mereçimentos”.
No primeiro caso a predição do futuro se confirmou;
no segundo, ao contrário, Nuno Álvares acabou lutando
contra a rainha que o armara.
No último caso, onde dissemos ter o cronista se utilizado da
expressão para reforçar o seu conceito de justiça
real, devemos ressaltar que, em sua obra, Lopes deu especial destaque
à justiça real. No prólogo da Crônica de
D. Pedro, ele discorreu sobre o tema dando-lhe tal importância
a ponto de afirmar que “como a alma suporta o corpo e partindo-se
dele o corpo se perde, assim a justiça suporta os reinos e
partindo-se deles perecem de todo”. Todavia, apesar do peso
desse argumento e aparentando não estar satisfeito, Lopes apela
a Deus para se tornar convincente, dizendo que o uso da justiça
pelos reis é o que “a Deus mais apraz”. Ora, aprazendo
a Deus, o uso da justiça deveria ser observado com rigor. Pelo
menos foi isso que nos pareceu ter pretendido Lopes e, neste sentido,
prouguer parece significar a própria vontade de Deus.
4. DEUS JUIZ
Das dezesseis vezes em que Deus é mencionado como juiz nas
crônicas de Lopes, quinze já foram referidas no item
Deus Guerreiro. Resta-nos, portanto, apenas uma citação
para analisar. Façamo-lo com o cuidado de mostrar as circunstâncias
em que Deus foi chamado a intervir como juiz. Algum tempo após
terem sido negociadas as tréguas entre Portugal e Castela,
pondo fim à crise de 1383-85, o rei português entendeu
que os castelhanos não estavam cumprindo o que havia sido tratado,
especialmente no que tange à libertação dos prisioneiros
de guerra. Nesse caso estava estipulado que o infrator deveria pagar
uma multa de duzentas e cinqüenta mil dobras, mas, como tal importância
era muito elevada para ser tomada em bons móveis, D. João
I achou que lhe era lícito tomar algumas cidades castelhanas.
Então falou com Martim Afonso de Melo e este com Gonçalves
Eanes, tramando a tomada de Badalhoce.
Após passar alguns dias observando atentamente como se procedia
a guarda da cidade, ocorreu uma idéia a Gonçalves Eanes.
Disse ao porteiro de Badalhoce, que era, segundo Lopes, muito pobre,
saber onde se encontrava escondido algum trigo e que se ele lhe abrisse
a porta na hora por ele determinada, o trigo seria repartido entre
os dois. Tendo o porteiro concordado, Gonçalves Eanes falou
a Martim Afonso de Melo que lhe fornecesse trigo com certa regularidade
para que ele pudesse ir conquistando a confiança do porteiro.
Assim foi feito, num dia ele marcava uma hora, noutro, outra diferente;
uma vez entrava ele com o trigo, outra deixava-o por perto e pedia
ao porteiro que fosse buscá-lo. Um dia, tudo combinado, mandou
que o porteiro fosse buscar o trigo, abriu a porta e permitiu a entrada
dos portugueses, que tomaram a cidade.
No tempo em que andou pela cidade e ia, aos poucos, acostumando o
porteiro e ganhando a sua confiança, Gonçalves Eanes
atraiu a desconfiança dos fidalgos castelhanos locais. E antes
mesmo de se confirmar a suspeita, chamado para prestar esclarecimentos,
Eanes disse que a desconfiança era infundada e se algum daqueles
fidalgos afirmasse que pretendia entregar a cidade aos portugueses,
se bateria com ele. Embora no texto de Lopes não apareça,
fica implícito que Deus seria juiz e quem ganhasse teria razão.
Os fidalgos castelhanos não deram ouvidos ao desafio e Gonçalves
Eanes então fez um outro, que, a nosso ver, é o paradigma
para mostrar esta face do Deus Juiz. Disse Eanes:
“Hora (...) poys nam querees em feyto darmas, ponham dous esteyos
naquella praça, e atem a mym a huum e aquelle que tal afirmou
a outro, e ponhaão o fogo, e mostre Deus o seu mylagre.”
Se os castelhanos já não haviam aceitado o desafio da
luta, muito menos aceitaram esse. E é até lamentável
que o mais perfeito exemplo que encontramos em Lopes, onde Deus apareceria
com Deus Juiz, não passasse de um grande blefe.
5. DEUS NOS TÍTULOS ECLESIÁSTICOS E REAIS
São poucas as vezes em que aparece nas crônicas de Lopes,
a palavra Deus em títulos eclesiásticos, aliás,
só aparece mesmo quando Lopes transcreve na íntegra
alguma carta papal. Encontramos, por exemplo, duas cartas papais endereçadas
a D. Pedro I, onde aparece o título de praxe: “Inocêncio
bispo, servo dos servos de Deus”. Outra carta papal transcrita
é a de Clemente VII - que Lopes considera antipapa - ao rei
D. João de Castela, consolando-o pela derrota frente aos portugueses.
Na carta aparece “Clemente, bispo, seruo dos seruos de Deus”.
Finalmente, aparecem mais duas transcrições de cartas
pontificais, ambas de dispensa de D. João de Portugal para
que pudesse contrair matrimônio com quem entendesse melhor.
Em ambas, encontra-se: “Bonifácio, bispo seruo dos seruos
de Deus”.
O título utilizado pelos papas aparentemente nada tinha de
especial. O seu uso, rotineiro no século XIV, apesar de deixar
a impressão inicial de ser por humildade, tinha um significado
mais profundo que o passar do tempo disfarçou. Convém
lembrarmos que até Gregório VII [1073-1085], os papas
eram intitulados “Vigário de São Pedro”,
significando que governavam à sombra do apóstolo. É
o próprio Gregório VII quem melhor caracteriza essa
dependência e, ao mesmo tempo, a autoridade papal na terra,
quando, em 1076, ao excomungar Henrique IV, dirige-se a São
Pedro dizendo:
“Abençoado Pedro, Principe dos Apóstolos, reclina
a tua misericordiosa cabeça e escuta-me, a mim que sou teu
servo, e a quem alimentaste desde a infância. Até hoje,
livraste-me das mãos dos homens maus que me odeiam em razão
da minha fidelidade por ti. És testemunha, juntamente com Nossa
Senhora Mãe de Deus, e teu irmão Paulo, entre os santos,
de que a tua santa Igreja romana me obrigou contra vontade a governá-la...
e entretanto, como creio, é de teu grande agrado que o povo
cristão, que te foi prometido, me odedeça especialmente,
por me teres concedido a tua autoridade.”
Quer dizer, os papas eram servos e senhores. Servos de Pedro, primeiro
bispo de Roma, que dirigia a Igreja através dos papas e, conseqüentemente,
Senhores do povo, por concessão da autoridade do apóstolo.
Mas é justamente com Gregório VII, que declina a dependência
papal com Pedro, à medida que aumenta a autoridade terrena
dos papas. Os pontífices começam a ter pretensões
de ser vigários de Cristo e não de Pedro. Essa tendência,
como dissemos, iniciou-se com Gregório VII [1073-1085] e adquiriu
a sua forma acabada com Inocêncio III [1198-1216]. As palavras
deste papa não deixam dúvidas:
“Somos o sucessor do Príncipe dos Apóstolos, mas
não o seu vigário, nem o vigário de nenhum homem
ou Apóstolo, mas o vigário do próprio Cristo.”
Cristo, segundo dogma da Igreja, é Deus, por conseguinte, superior
a Pedro, um apóstolo que embora santificado e considerado,
sem reservas na época, o primeiro bispo de Roma, possui, na
escala hierárquica celestial, poderes infinitamente inferiores.
Quer nos parecer, portanto, que a pretensão do papado em ser
vigário de Cristo, estaria no aumento proporcional de sua autoridade
na relação Pedro x Cristo. Por isso é que afirmamos
anteriormente que “Servo dos servos de Deus”, tem apenas
a aparência de um título humilde, pois encerra a concepção
de um poder temporal pleno.
Nos títulos reais, a freqüência com que aparece
o nome de Deus é maior, independentemente do óbvio fato
de existirem mais reis que papas num mesmo período. E se os
papas somente começaram a usar o título de vigário
de Deus em meados do século XII, muito antes já o faziam
os reis. Ao que nos parece, da mesma forma que os papas, os reis começaram
a insistir no uso desse título para legitimarem a sua autoridade.
E maior foi a insistência, em conseqüência da luta
que se desenrolou por toda Baixa Idade Média, entre o poder
espiritual e o temporal. Os reis, além disso, pretendiam diferenciar-se
dos demais segmentos da sociedade que governavam, fazendo do título
um “capital simbólico institucionalizado” que lhes
proporcionasse dividendos [poder político], independentemente
do seu trabalho cotidiano.
Para institucionalizar o título de representante de Deus na
terra, os arquitetos dessa idéia foram buscar os ensinamentos
de São Pedro aos Romanos, citando a parte da epístola
que trata dos deveres para com a autoridade:
“Todo o homem esteja sujeito aos poderes superiores: porque
não há poder que não venha de Deus: e os que
há esses foram por Deus ordenados (...) o príncipe é
o ministro de Deus para bem teu (...) não é debalde
que ele traz a espada. Porquanto ele é ministro de Deus, vingador
em ira contra aquele que obra mal.”
Depois, esses mesmos arquitetos reforçaram a idéia com
os argumentos de Santo Agostinho - que não fogem absolutamente
em nada do que transcrevemos acima - com os de São Gregório
Magno, que se inspirou em Santo Agostinho, e também com os
de São Tomás de Aquino que, apesar da profunda influência
recebida de Aristóteles, reconhecia que todo poder emanava
de Deus.
Não é, pois, de se estranhar que Lopes admitisse que
os reis fossem vigários de Deus, aliás, essa idéia
era corriqueira. Dois reis, seus contemporâneos, D. João
I e D. Duarte, manifestaram em suas obras essa mesma maneira de pensar.
Discorrendo sobre as obrigações dos reis, D. João
I deixou claro que os reis deveriam fazer as coisas muito bem feitas,
pois delas deveriam prestar contas a Deus, que os fizera reis. Falando
sobre o mesmo assunto, D. Duarte ensinava que os reinos não
são outorgados para folgança e deleitação,
mas para trabalhar de espírito e corpo mais que todos “
pois que tal ofício que o senhor nos outorgou he mayor e de
muy grande merecimento aos que o bem fezerem” [grifo nosso].
E esse imaginário estava de tal forma arraigado nas mentes
coevas que não se admitia que o poder emanasse da vontade popular,
nem mesmo quando um rei era escolhido por uma assembléia do
povo, como ocorreu em Coimbra, quando da eleição do
Mestre de Avis, em 1385. Nestas circunstâncias aceitava-se que
Deus iluminara o povo para tal escolha.
Em conclusão, podemos afirmar que, na Idade Média, procurando-se
restabelecer o poder político, enfraquecido desde a derrocada
do Império Romano, era natural que houvesse uma grande disputa
entre os mais fortes - nobreza e clero e, no interior dessas ordens,
respectivamente a realeza e o papado. Na sociedade laica, a evolução
do poder real, até tornar-se absoluto, foi lenta, variando
o poder do rei de acordo com o poderio da nobreza. Na verdade, “a
intensidade das pretensões dos poderosos, estava na razão
inversa do grau de firmeza que ellas encontravam no poder central”.
De qualquer forma, estamos convictos de que o reconhecimento da autoridade
real relaciona-se ao imaginário de que seu poder provinha de
Deus.
6. DEUS PROVIDENTE
Já temos sublinhado - ao falarmos da Concepção
de História e sobre o Deus Guerreiro - que no período
medieval acreditava-se que a providência divina se fazia presente
no cotidiano das pessoas, mas, da mesma forma que na obra de Lopes
a insistência nesse ponto é grande, nós também
nos demoraremos um pouco mais em exemplos que retratem essa idéia,
completando, conseqüentemente, o quadro que estávamos
a descrever nos itens acima mencionados.
Neste sentido é bom esclarecermos que, para Lopes, existiam
coisas que Deus fazia sem que se pudesse compreendê-las. Não
adiantava ficar procurando as causas dos acontecimentos, elas não
estavam ao alcance dos homens. Antes de Aljubarrota, o rei castelhano
era aconselhado pelos fidalgos que o cercavam - e dentre eles D. João
Afonso Tello - que deveria dar combate ao rei português por
uma série de razões, dentre as quais a de que os seguidores
do mestre de Avis já haviam passado por tantos sofrimentos
que somente sendo vencidos é que poderiam mudar de idéia
e aceitar outro Senhor. E, além do mais, prosseguia João
Afonso, não foi para isso que deixaram Castela?
Lopes comenta que o conselho era bom, mas que a Fortuna, que não
obedece conselhos, já havia determinado o rumo da batalha.
E explica:
“E posto que aquy e em outros lugares nos aas vezes digamos
Fortuna, sempre uos porem emteemdee huum dyuynal e profundo juyzo,
cuja causa e razom per nos comprehendida ser nom pode.”
Este divinal juízo, que compreendemos por providência
divina, intervinha à revelia da vontade das pessoas. Antes
da morte de D. Fernando, já se desconfiava que a rainha D.
Leonor tinha um amante: o conde João Fernandes Andeiro. Morto
o rei, o romance tornou-se acintoso, segundo Lopes, gerando na nobreza
o “desejo de vimgar a desomrra delRei”. Era preciso matar
o Andeiro, fosse por uma questão moral, reconhecida por Lopes,
ou por uma razão política mais forte e óbvia,
mas que o cronista pareceu não querer entender. Na realidade,
o Conde, sendo amante da rainha, tornava-se mais e mais poderoso,
em detrimento da nobreza portuguesa, que passou a tramar o seu fim,
sendo porém frustrada em várias tentativas. Quem finalmente
urdiu caprichosamente a morte do Andeiro foi um velho aposentado,
Álvaro Paes, ao que tudo indica muito respeitado, pois era
comum a Câmara consultá-lo sobre as decisões que
devia tomar. Esse ancião, arquiteto do plano, chamou primeiramente
o próprio irmão da rainha, o conde de Barcelos, D. João
Afonso, para pôr em prática o seu desiderato. O conde,
apesar de irmão da rainha e de pessoa - como se entendia na
época - a quem caberia lavar a honra do rei morto, recomendou
para a missão o mestre de Avis, que acabou executando-a.
Não obstante todas as tentativas da nobreza em eliminar o Andeiro,
Lopes interpretou que ele fora morto pelo mestre de Avis em virtude
da intervenção divina no caso:
“...teemos que o muito alto Senhor Deos, que em sua providemcia
nenh a cousa falleçe, que tiinha desposto de o Meestre seer
Rei, hordenou que o nom matasse outro senom elle...”
Abundam exemplos desta natureza, em que Deus escolhe, chama, nomeia,
encaminha ou dá. E é interessante observar que este
sistema providencial não falhava jamais. Em certa oportunidade,
Vasco Martins aconselhou o Condestável Nuno Álvares
Pereira a não entrar em uma embarcação, pois
sonhara que a esquadra seria tomada pelos inimigos. O que seria de
esperar de uma época em que as pessoas estavam atentas para
os mais variados sinais? Lopes conta que durante a guerra entre D.
Pedro de Castela e D. Henrique, um clérigo de São Domingos
da Calçada procurou D. Pedro para preveni-lo de que São
Domingos o avisara, por sonhos, que deveria guardar-se senão
morreria pelas mãos do Conde D. Henrique. E não foi
exatamente isso que aconteceu, embora o rei D. Pedro tivesse mandado
matar o clérigo? Não era lógico esperarmos que
Nuno Álvares desistisse da idéia de embarcar? Mas, ao
contrário, ele embarcou dizendo a Vasco Martins que agradecia
ao conselho, “mas esta cousa Deos a fara melhor do que vos dizees”.
Nada lhe ocorreu, mas por certo, se algo lhe tivesse acontecido, teria
dito o cronista que era pela providência divina, que lhe enviara
inclusive um sinal.
Algumas vezes era utilizada a expressão “com a mercê
de Deus” com o sentido de que Deus era providente. Num trecho
da mensagem de paz dita por Diogo Lopes Pacheco a mando do rei castelhano,
D. Henrique, a D. Fernando, quando este sucedeu ao falecido pai, D.
Pedro, temos um exemplo da primeira forma mencionada:
“Senhor, el-rrei dom Henrrique de Castella meu senhor me envia
a vós com sua messagem, como aquell que deseja aver boa paz
e amorio convosco e seer vosso verdadeiro amigo [...] vos peço
por mercee que praza à vossa grande alteza de me dizerdes declaradamente
que voontade teendes em aver paz e amor com elle, pera eu, com a mercee
de Deus e vossa, dizer aquello que me lhe mandado e tornar a ell ...”
Noutras vezes usava-se a expressão com a graça de Deus,
também no sentido de dizer-se que Deus era providente. No exemplo
abaixo, encontramos tanto essa forma como a já mencionada anteriormente.
Nele, Nuno Álvares Pereira, faz uma comparação
interessante da causa que estava por abraçar:
“Assi he que eu vejo no meu emtemdimento hu poço mui
alto e mui profumdo cheo de gramde escoridoõe; e bem me diz
a voomtade, que nom ha homem que em elle salte, que delle possa escapar,
salvo per gramde millagre, queremdoo Deos livrar delle por sua merçee.
(...) Amigos, ho poço mui alto e escuro que vejo ante meus
olhos, he a gramde demamda que o Meestre dizem que quer começar
por defemssom destes rregnos (...) e emtemdo que quem com elle em
ella emtrar, que lhe sera grave e mui perigoso, nem he aimda de cuidar
que della escape, salvo per graça de Deos.”
De uma forma ou de outra, através de uma ou de outra expressão
qualquer, a idéia que formamos é de que os homens medievais
entendiam que quando Deus queria alguma coisa nada lhe interditava
a vontade. Assim, protegeu o Mestre de Avis de traições;
mandou pragas, como as que dobraram a resistência do faraó
do Egito, permitindo a partida do povo de Israel; ou, em nosso caso,
provocaram a retirada dos castelhanos que sitiavam Lisboa; guardou
Nuno Álvares Pereira, quando invadiu Vila Nova; guardou o reino
de Portugal para o Mestre de Avis; e moveu meninos a saírem
de Coimbra, montados em cavalinhos de pau, para aclamarem o Mestre
como Rei, antes mesmo de serem realizadas as cortes daquela cidade.
Enfim, nada lhe escapava do alcance, inclusive a hora da morte das
pessoas.
7. DEUS CONSOLADOR
Em nenhum momento de suas crônicas Lopes afirmou que Deus fosse
consolador; todavia, a palavra aparece em pelo menos duas oportunidades.
Uma na carta em que o papa Inocêncio envia os votos de pesar
pela morte de D. Afonso a D. Pedro I, seu filho e sucessor; outra,
no sermão proferido por frei Rodrigo de Sintra, em ação
de graças por ter sido levantado o cerco que os castelhanos
faziam sobre Lisboa.
Diz a carta do papa Inocêncio, em termos conclusivos:
“E assim, muito amado filho, piedosamente te aconselhamos que
te consoles no Senhor Deus e consideres em tua vontade como sucedes
no regimento de teu pai, o qual, por exemplo de vida, se mostrou sempre
ser fiel católico.”
Nada mais que um conselho papal, uma formalidade corriqueira.
Frei Rodrigo, por sua vez, foi incisivo, rotula Deus e lhe coloca
palavras na boca:
“E nos assi postos na postumeira parte de tamanha lastima e
amgostura, disse o mui alto Rei çellestrial, Padre de gramdes
misericordias e Deos de toda comssollaçom, no comssistorio
da sua sabedoria: Tempo é que hajamos compaixom com a çidade
atribullada e nom a leixemos padeçer...”
Pai de grandes misericórdias e Deus de toda consolação!
Se tivessemos analisado este trecho quando tratamos do Deus Providente,
com certeza, o assunto não teria ficado deslocado, pois, afinal,
como se percebe tudo o que ocorre é atribuido á vontade
Deus. Optamos entretanto por uma classificação mais
detalhada, pois, mesmo correndo o risco de sermos redundantes, esmiuçamos
mais detalhadamente as diversas formas de uso do nome de Deus.
8. EM TEMOR A DEUS
Ao contrário de muitos homens que se intitulavam os seus representantes
na Terra e que às vezes eram implacáveis na imposição
de sua suposta vontade, Deus não parece ter sido muito severo
aos olhos do homem medieval. Ao menos essa é a conclusão
que podemos tirar se analisarmos o reduzido número de menções
feitas por Lopes a atitudes tomadas pelos contemporâneos em
virtude do temor a Deus. Aliás, é questionável
o próprio significado da expressão. Ao que tudo indica,
temor a Deus não significava exatamente medo de Deus, mas um
comportamento exemplar das pessoas.
Numa carta, já mencionada em outra oportunidade, onde o papa
Inocêncio envia seu voto de pesar a D. Pedro I, pela morte de
seu pai D. Afonso, encontramos, pela primeira vez, menção
de que as pessoas deveriam viver com temor a Deus. Após aconselhar
que se consolasse em Deus, o papa prosseguia dizendo:
“Porém requeremos à tua real clareza que sempre
com firme desejo vivas em temor do Senhor Deus, honrando a sua Santa
Igreja e, sendo favorável às eclesiásticas pessoas,
as mantenhas sempre em seus direitos e liberdades; e que sejas amador
e defensor das viúvas e dos órfãos, alçando
os agravos aos teus súbditos - que lhe não seja feita
injúria -, e que, sem recebimento de alguma pessoa, sempre
sejas honrador e amador da justiça, de guisa que por tuas obras
dignamente sejas chamado por nome de rei que bem rege.”
Na verdade, através desse conselho, que se constitui em espécime
exemplar de topos eclesiástico, o papa indicou os rumos que
pretendia fossem seguidos pelo novo rei, balizou-lhe o caminho, traçou-lhe
o perfil do rei medieval ideal. Viver “em temor do Senhor Deus”
significava ser um cristão católico, caridoso e justiceiro.
Agindo dessa forma, o papa Inocêncio afiançava que D.
Pedro viveria em paz e folgança, “havendo Deus em sua
ajuda”.
A orientação papal parece-nos ter sido a regra geral,
na Idade Média, para que as pessoas vivessem em temor a Deus.
Ao menos Lopes usou também o termo, no mesmo sentido, referindo-se
ao Condestável não como um obcecado pela conduta exemplar,
mas como exemplo de perfeição: Nuno Álvares vivia
com temor a Deus, pois ouvia missas; vivia honestamente com a sua
mulher e tornou-se casto após sua morte, embora tivesse apenas
trinta e seis anos quando enviuvou; praticava a caridade e protegia
as viúvas e órfãos.
9. DEUS PROTETOR
Mesmo não desconhecendo que o se “Deus quiser”
ou o “graças a Deus” são exemplos de expressões
demasiadamente desgastadas e que dificilmente transcendem significativamente
esse nível, queremos dizer que como protetor, ou dando ajuda
às pessoas nas suas lides diárias, Deus aparece nas
crônicas de Lopes com relativa freqüência. Essa ajuda
poderia ser em recompensa a alguma ação realizada. Por
exemplo, o papa Inocêncio, em carta a D. Pedro I, afirmava categoricamente
que o rei “haveria Deus em sua ajuda” se cumprisse corretamente
suas funções reais. Da mesma forma, o conde de Cambridge,
quando desembarcou em Portugal para ajudar o rei D. Fernando na guerra
contra os castelhanos, disse-lhe “que sse ell quiria que o Deus
ajudasse em sua guerra, que desse a obediência ao padre santo
de Roma”. Mas, às vezes, não fica explicitado
se a ajuda divina foi por merecimento ou gratuita. Lopes narra, num
capítulo da guerra entre Henrique de Trastâmara e Pedro
o Cruel, que este último mandou chamar os mouros para virem
em sua ajuda. Esses, durante um cerco, destruíram parte do
muro de Córdova, mas não puderam invadir a cidade graças
à resistência de seus moradores. Recuando à tarde,
os mouros deram oportunidade para que os de Córdova recuperassem
o muro e se preparassem para o combate do dia seguinte, “tomando
muito gram prazer, porque os Deus livrara de tamanho perigoo”.
Teria a ajuda divina sido uma recompensa em virtude da resistência
dos moradores de Córdova? Outro exemplo: no início da
revolta que culminou com a ascensão do Avis ao trono português,
o chamado povo meudo começou a lutar para tomar Portallegre
“de manhã e antes do meio-dia com a ajuda de Deos já
o havia tomado”[Grifo nosso]. Onde está o merecimento?
Por outro lado, prova insofismável da crença de que
Deus ajudava as pessoas de acordo com o seu merecimento, nós
a encontramos na passagem onde Lopes conta que estando Lisboa cercada
pelos castelhanos, no início do reinado do Avis, as pessoas
encarregadas de rezar em benefício do rei mandaram chamar,
para se reunirem na Câmara, “honestas pessoas religiosas,
doutores e mestres em theologia, pera auerem com elles comselho como
aueriam Deus em sua ajuda”, e chegaram à conclusão
de que não deveriam permitir na cidade o uso
“...de feitiços nem legamentos nem de chamar diabos nem
descantaçõoes nem dobra de vedeira nem carautollas nem
sonhos nem lançar roda nem sortes nem outra nenhuma cousa que
arte de fissica nom comsenta; e mais, que nom cantassem janeiras nem
mayas nem outro nenhuum mes do anno, nem furtasem augoas nem lamçasem
sortes nem outra obseruança que a tal feito pertemça.”
Constou ainda deste rol a proibição de carpir e bradar
sobre os finados, por ser obra de pagãos, sob pena de tê-los
dentro de casa durante oito dias. Nessa oportunidade, ficou estabelecido
que todo ano se realizariam procissões em louvor a circuncisão
de Cristo e por devoção a Mãe de Deus. Interessante
observar que as procissões, aparentemente para acalmar a sanha
de Deos e dar o merecimento de que os lisboetas necessitavam para
poderem ser ajudados por Deus, foram marcadas justamente nas datas
em que os pagãos cantavam as janeiras e as maias. Nenhuma coincidência,
apenas e tão somente uma prática já consagrada
da Igreja em substituir costumes pagãos por festas religiosas.
Na maioria das vezes, o Deus ajudador de Lopes aparece mais como uma
esperança, como um desejo de alguém ou, ainda, como
voto. Quando o primeiro cerco sobre Lisboa foi levantado pelos castelhanos,
D. Fernando mandou construir uma muralha para proteger a cidade, pois,
segundo Lopes, “...pareceo a el-rrei Dom Fernando que esto com
a ajuda de Deus e seu boom encaminhamento era cousa pera mui cedo
viir a fim...”
Depois da morte do papa Gregório, reunidos os cardeais para
eleição do novo pontífice, conta Lopes, que o
povo romano, alvoroçado, dirigiu-se ao paço onde se
realizava o conclave, bradando que lhe dessem papa romano ou itálico.
Um dos cardeais, o de Sabina, disse então aos outros: “Senhores,
sejamos logo, que creo com a ajuda e graça de Deus que concordaremos
cedo e enlegeremos papa”.
Exemplo análogo encontramos numa preleção feita
por Nuno Álvares Pereira à sua gente. Esquematizando
a tática de uma batalha prestes a ocorrer contra os castelhanos,
disse em determinado momento que “com a ajuda de Deus, eu serei
o primeiro que toparei com elles”
Quer dizer, eram esperanças, desejos que as pessoas manifestavam
em realizar algo, aparecendo, algumas vezes, explicitamente a palavra
esperança. Tomemos alguns exemplos. O rei Ricardo, da Inglaterra,
em carta ao Mestre de Avis diz-lhe que tinha “esperança
em Deos [que ele] seria veemçedor com gramde e honrada vitória”.
Nuno Álvares Pereira disse aos seus que se chegassem a Deus,
pois “sse o assi fezermos teemdo firme esperamça em Deos,
poucos de nos veemceram muitos”. Mas às vezes a fé
podia resultar em prejuízo. O astuto condestável português,
Nuno Álvares Pereira, certa feita mandou que seus homens soltassem,
à noite, algumas vacas próximas ao castelo de Momssaraz.
Pela manhã, o alcaide do Castelo, vendo aquilo, imaginou “que
Deus lhe tragia boa vemtuira pella porta” e saiu para recolhê-las,
deixando aberta a porta do castelo. Nuno Álvares imediatamente
invadiu-o, tomando-o em nome de D. João I. Também Dona
Maria Teles, irmã da rainha Dona Leonor, não se deu
muito bem com sua esperança de que Deus interviria em seu favor.
Avisada que estivesse atenta, pois seu amante, o infante D. João,
ia à ela com más intenções, a irmã
da rainha limitou-se a dizer que “todallas cousas eram em poder
de Deus e que aquello que a ell prouguesse e fosse sua mercee, que
esso seeria e mais nom”. Claro que ao dizer isso Dona Maria
imaginava que não lhe aconteceria nada, entretanto foi brutalmente
assassinada.
Finalmente, encontramos que a “ajuda de Deus” podia ser
usada como ameaça. Nuno Álvares Pereira, antes de uma
batalha com os castelhanos, diz aos seus:
“Amigos, n nhu nom duvide de mim; e todos aquelles que me ajudardes,
Deos seja aquelle que vos ajude; e sse eu aqui morrer per vossas culpas
e mimgua, Deos seja aquelle que vos demamde minha morte.”
10. MERCÊS A DEUS
Natural que quem dependia em tudo da vontade de Deus desse-lhe graças,
se as coisas lhe corressem bem. Já vimos, quando falamos sobre
a Teoria da História, que frei Pedro, embasando-se no Velho
Testamento, recomendava que se retribuísse a Deus as graças
recebidas, louvando-o com cantar novo. Agradecer a Deus, portanto,
já era um velho costume, arraigado na mentalidade dos cristãos,
que o faziam até por simples hábito. As formas mais
empregadas para o agradecimento eram “mercês a Deus”
e “graças a Deus”.
Em cartas, quando as pessoas informavam sobre sua saúde, podiam
se expressar da seguinte maneira:
“E porquanto, irmão rei, segundo é conteúdo
em vossa letera, vós desejais saber o bom estado de nossa pessoa
e da rainha e de nossos filhos, a prazer vosso vos significamos que
somos todos sãos e em boa disposição de nossas
pessoas, mercês a Deus...”
Em guerra, as oportunidades para agradecimentos eram muitas e às
vezes acontecia, desses agradecimentos partirem dos próprios
feridos. Numa oportunidade, o ainda Mestre de Avis andava entre os
portugueses feridos numa batalha, encorajando-os e fazendo-lhes mercês
“e todos davom graças a Deos que os assi ajudara a deffemder
de seus emmiigos”. O Mestre de Avis, ao descobrir uma traição
que lhe armava Garcia Gonçalves, “deu muitas graças
a Deos, que por sua gramde misericordia o quisera guardar de tamanho
periigoo”. Terminada a Batalha de Aljubarrota, todos tiveram
a vitória “por cousa mjllagrosa, e dando muytas graças
ao Senhor Deus, cuja mercee fora de o assy fazer hordenar”.
Com o mesmo espírito de agradecer a Deus, outra expressão
que enunciamos acima era “graças a Deus”. Ela aparece
nas crônicas de Lopes à exaustão. Tomemos o exemplo
que achamos mais veemente:
“Oo cidade de Lixboa e reyno de Portugall, que graças
e louuores podyas dar ao teu Deus por taaes marauylhas e beneficios
como este, que por muytos que fossem e em ellas multiplicasses, nom
parecesses sseer jngrato? Certamente nom somos abastantes pera ello,
por a multidom dos nossos pecados. Pois que lhas dara por nos, se
nos humaanaes louuores disto nom ssom abastantes. Dem-lhas os sseus
ssantos; louuem-no os sseus angeos, e sseiam da hordem dos poderyos,
a que jsto maaes pertee(n)ce, dizendo em nome de uos todos: Oo Christo
Jhesus, ymagem de Deus Padre, poderoso em virtudes e forte em-nas
batalhas, muytas graças e louuores te damos que por a tua jnfijnda
piedade quisseste oolhaar por os portugueeses o dya do seu gram trabalho
por lhe dar honra de vencimento contra a ssanha de seus cruees emmijgos!.”
11. POR SERVIÇO DE DEUS
Viterbo ensina que a palavra serviço tinha vários significados,
podendo ser uma pensão em dinheiro ou em frutas ao senhor;
uma refeição que o vassalo oferecia ao senhorio; ou
um presente, uma dádiva que o senhor esperava de seus subordinados,
sem valor fixado, um mimo. Com referência a Deus, que era tido
como Senhor, nada mais natural que se lhe oferecesse o que se fizesse
de melhor, aquilo que presumivelmente o agradasse.
D. Pedro I, tido como justiceiro, às vezes excedia-se nas suas
atribuições, e seus conselheiros advertiam-no de que
as pessoas se agravavam com isso. Por exemplo, não permitia
em hipótese alguma que homens casados possuíssem barregãs,
sob pena de perderem suas rendas, serem degredados ou até mesmo
açoitados em praça pública. Quando lhe diziam
da insatisfação que isso causava, respondia que procedia
dessa forma “por serviço de Deus e seu e prol deles todos.”
Sendo, de fato, esse rei D. Pedro muito duro com malfeitores e bandidos,
algumas vezes lhe diziam que ele dava penas muito pesadas para pequenos
deslizes. Ele então asseverava que o temor maior dos homens
era a morte, portanto, era bom às vezes enforcar um ou dois
para que os outros ficassem temerosos e concluía que “assim
o entendia por serviço de Deus e prol de seu povo”.
De modo geral, ao que tudo indica, os trabalhos dos reis eram tidos
por serviço de Deus, afinal, como temos visto, não eram
os reis vigários de Deus na Terra? Isso sem contar que, às
vezes, também as suas conveniências eram justificadas
como a serviço de Deus. No reinado de D. Fernando, havendo
reclamações de que as moedas tinham muitas denominações
e valores diversos, o rei tomou medidas no sentido de corrigi-las,
“oolhando ell em esto serviço de Deus”. A rainha
Dona Leonor, viúva de D. Fernando, estando na regência,
despachava de seus Paços “hordenamdo o que compria por
serviço de Deos e proveito dos rreinos”, e o Mestre de
Avis, ao convencer a mãe de Nuno Álvares a deixá-lo
consigo, afirmava que a causa em que ele se queria meter “era
serviço de Deos e homrra do rreino”.
Um casamento podia ser considerado “serviço de Deus”,
assim como podia ser considerado um desserviço, ou, ainda,
temos o exemplo de que desfazer um casamento para tratar outro também
era serviço de Deus. Quer dizer, essas expressões subentendem
uma carga de lugar-comum muito grande que é dificilmente excedível.
De qualquer forma, vejamos algumas referências. Quando o prior,
pai de Nuno Álvares Pereira, falou-lhe sobre a sua intenção
de casá-lo, assim se expressou: “Nuno, pero tu seja moço
e de nova hidade, pareçeme que he bem e serviço de Deos
e tua homrra, que tu ajas de casar”. Por ter feito casamentos
à revelia dos interessados, D. João I recebeu muitas
reclamações das pessoas, que afirmavam ser esse procedimento
“comtra conçiençia e seruiço de Deus”.
Quando foi tratado o casamento de D. Beatriz, filha do rei D. Fernando
de Portugal, com D. Henrique, filho de D. João, rei de Castela,
os embaixadores concordaram “que por serviço de Deus
e bem de paz e de concordia, que sse desfezessem os esposoiros da
dita iffante com dom Fradarique duque de Benavente, seu irmaão,
com que estava esposada”. Quer dizer, o “serviço
de Deus” não estava no casamento em si, mas na conseqüência
que o casamento resultava.
Enfim, o uso da expressão era muito abrangente. Se o povo reivindicava
algo aos soberanos, era costume que em resposta eles dissessem que
entendiam que tais pedidos eram por serviço de Deus. Se um
soberano agradecia aos moradores de uma cidade por terem tomado o
seu partido numa guerra, dizia que assim tinham agido por serviço
de Deus. Quando Nuno Álvares expulsou as mulheres de sua hoste,
o fez por serviço de Deus. A celebração de pazes
era “pera Deus ser servido”. E até a obediência
que os filhos de D. João I lhe guardavam era “fundada
em serviço de Deus”.
12. DEUS TESTEMUNHA
Para os cristãos em geral, inclusive o medieval, um dos atributos
de Deus era a onisciência. Prova disso podemos captar facilmente
nas crônicas de Lopes, pois era muito comum apelar-se para o
nome de Deus neste sentido. “Sabe Deus que nos despraz, sabe
Deus que me apraz, Deus sabe que não tive culpa, Deus sabe
que não fiz por mal”, eram expressões comumente
usadas e tinham o sentido de trazer Deus como testemunha de algo que
ninguém vira exceto o autor, ou mesmo como testemunha de algum
pensamento ou desejo de alguém. Tomemos um exemplo para não
precisarmos nos alongar com explicações. O rei de Castela,
D. Henrique, certa feita, ao ouvir de seu embaixador que o rei de
Portugal, D. Fernando, não tinha o desejo de manter a paz com
ele, assim se expressou: “Deus sabe, que he sabedor de todallas
cousas, que eu nom ei voontade d'aver com ell guerra”.
Nessa pequena frase está resumida uma maneira de pensar da
época. Deus sabe, porque é sabedor de todas as coisas.
E, para tornar ainda mais concreto esse costume, para trazer Deus
em cena, tê-lo presente no momento de usá-lo como testemunha,
usava-se jurar ao corpo de Deus consagrado. Era comum que se jurasse
sobre o Corpo de Deus. quando se fazia algum tratado, quando se tomava
alguém em casamento, quando era celebrada alguma paz ou mesmo
quando se queria ameaçar de fazer alguma coisa. Tomemos um
exemplo de cada uma dessas formas enunciadas.
Num capítulo da guerra entre D. Pedro o Cruel e D. Henrique,
na disputa do trono castelhano, este último manteve um encontro
com o Rei Carlos, de Navarra, no qual se estabeleceu que o rei navarro
não deveria deixar passar pelo seu reino, em hipótese
alguma, D. Pedro e os aliados ingleses que ele fora buscar. E se as
gentes de D. Pedro ousassem passar à força, D. Carlos
se obrigava a comandar pessoalmente seu exército para proibi-los.
Para firmarem bem esse tratado, juraram “sobre o corpo de Deus”
e ainda, por segurança, o rei de Navarra deixava três
castelos como reféns, e o rei D. Henrique, uma vila. Neste
caso nem a palavra dos reis, nem o juramento sobre o corpo de Deus
e nem mesmo a garantia dos castelos e da vila serviram, pois o rei
D. Pedro passou por Navarra como bem quis.
A princesa Beatriz, filha de D. Fernando e D. Leonor de Portugal,
foi prometida em casamento quatro vezes e acabou se casando com um
quinto pretendente, D. João, rei de Castela. Neste avultado
número de vezes que a princesa foi prometida, podemos perceber
o quanto os casamentos, principalmente na realeza e na nobreza, eram
feitos por interesses políticos e não por qualquer afinidade
afetiva, e o quanto os juramentos com ou sem a presença do
corpo de Deus, não tinham muito significado prático.
Mas de qualquer forma, continuemos com o nosso assunto. Quando a princesa
foi autorizada pelos pais a se casar com o rei castelhano, ela logo
“jurou no corpo de Deus consagrado [...] que ella cassasse com
o dito rrei de Castella e ho ouvesse por esposo e marido”. Em
seguida, juraram o rei, a rainha e todos os fidalgos presentes.
O casamento entre D. Beatriz e o rei castelhano foi o coroamento do
fim da guerra que se travara entre este soberano e D. Fernando de
Portugal. E firmada as pazes, a nobreza e os procuradores das vilas
de ambos os reinos, cada qual em sua vez, “jurarom aaquell corpo
de Deus consagrado”.
Para finalizarmos o rol de exemplos que enunciamos, citemos aquele
que nos pareceu mais significativo dentre aquelas juras que se fazia
a Deus como ameaça. No início da chamada “Revolução
de 1383-1385”, o Mestre de Avis ordenou que se desse combate
ao castelo de Lisboa, guardado por Martim Afonso Valente. Os moradores
da cidade gritavam aos de dentro que dessem o castelo ao Mestre
“senom que juravõ a Deus que poeriam em çima da
gata Costamça Affomsso, madre dAffomssEanes Nogueira, e irmaã
da molher de Martin Affomsso, Alcaide do castello; e isso meesmo as
molheres e filhos de quamtos demtro eram...”
Tudo ficou em ameaça, pois Nuno Álvares preitejou o
Castelo, que acabou sendo entregue aos partidários do Mestre,
sem nenhum combate. Ao que nos parece, não há nenhuma
ligação direta entre a entrega do castelo e o juramento
a Deus, assim acontecendo também nos outros casos mencionados.
13. REQUERIMENTOS A DEUS
Havia três maneiras básicas de se requerer alguma coisa
a Deus durante a época que estamos estudando. Uma corriqueira,
em que as pessoas usavam o nome de Deus de maneira praticamente imperceptível;
outra protocolar, usada normalmente em mensagens reais; e uma terceira,
empregada em casos de desespero, angústia, dor, enfim, um apelo
derradeiro.
O uso corriqueiro da expressão, conforme afirmamos, era feito
pelas pessoas de maneira imperceptível, por hábito,
não havendo praticamente nenhuma convicção na
afirmação. Por exemplo, quando se dizia: “queira
Deus que não seja pior” não havia fé nisso,
a fórmula era apenas uma maneira de dizer. Da mesma forma apareciam
expressões do tipo: “que nunca Deus queira” e “rogarei
a Deus por vós” e “cuja alma Deus haja”.
Quanto ao uso protocolar da expressão, os exemplos aparecem
via de regra em cartas reais ou em mensagens diplomáticas,
onde se requer em nome de Deus, principalmente, que não se
faça a guerra. O rei de Aragão, por exemplo, em resposta
ao cardeal de Bolonha, interessado em colocá-lo em paz com
Castela, disse que embora não se sentisse culpado pela desavença,
propunha-se a auxiliá-lo contra os mouros com dez galés,
pelo período de seis anos ou se houvesse algum combate direto
entre mouros e castelhanos, que ele iria com seu próprio corpo
- como se costumava dizer na época - para ajudar no dia da
batalha. De outra forma, disse ao cardeal que transmitisse ao rei
castelhano “que lhe requeiro da parte de Deus, que me não
queira fazer guerra”. Essa mesma forma encontramo-la na carta
enviada pelo príncipe de Gales a D. Henrique de Castela: o
aliado inglês de D. Pedro se propõe a ser mediador da
guerra que resolveria o problema sucessório castelhano, ou
na resposta de D. Henrique ao Príncipe, onde lhe era requerido
da parte de Deus que não se intrometesse naquela guerra. Também
D. João I, antes de mover guerra ao rei castelhano, que invadira
Portugal reclamando os seus direitos, disse que lhe requeria da parte
de Deus e do Mártir São Jorge que voltasse para a sua
terra, pois não lhe restaria outra alternativa senão
a ação militar.
A terceira forma de requerimentos a Deus parece-nos ter sido a mais
significativa de todas elas. Os rogos a Deus em casos extremos eram
comuns a todas as camadas sociais. Detenhamo-nos, portanto, um pouco
mais nestes casos.
Numa das passagens mais dramáticas escritas por Lopes, nos
é narrado o cerco de uma cidade - Çamora - pela rainha
Dona Joana, mulher de D. Henrique de Castela, num capítulo
da guerra entre este monarca e o rei de Portugal, D. Fernando. Afonso
Lopes de Texeda, que tinha a cidade em nome de D. Fernando, foi obrigado
a fazer um acordo com rainha, de forma que se não lhe viesse
socorro no prazo de alguns dias determinados, ele lhe entregaria a
cidade. Para segurança desse acordo, entregou à rainha
os seus dois filhos, como reféns. Terminado o prazo e não
lhe tendo vindo o socorro, a atitude costumeira a ser adotada na época
seria a entrega do castelo; todavia, embora a rainha ameaçasse
degolar-lhe os filhos, Afonso Lopes não desejava cumprir o
acordo. Por isso, os filhos foram trazidos diante do muro, de forma
que os vissem quem se encontrava no castelo e, diante da ameaça
de serem mortos, gritavam ao pai: “Oo padre, por Deus e por
mercee avee de nós doo, e nom nos leixees assi matar!”.
Nesse caso o apelo ao pai é de tal forma dramático que
o requerimento à Deus acaba ficando num segundo plano. Tomemos,
pois, outros exemplos que se prestem melhor a satisfazer o nosso objetivo.
Em seu leito de morte, perguntou-se a D. Fernando, se acreditava no
sacramento recebido - a extrema-unção; ele respondeu
que cria, como bom cristão que era, e acreditava também
ter sido um mau rei. Por isso chorava muito, “rrogando a Deus
que lhe perdoasse”. Muitas vezes o apelo a Deus partia dos humildes,
podendo ser coletivo ou individual. Estando Lisboa cercada e havendo
a oportunidade de uma preitesia, encontraram-se Pero Fernandes, pelo
lado castelhano, e o próprio Mestre de Avis, pelo lado português,
para estabelecerem um acordo. Enquanto isso
“As gemtes estavom oolhamdo pellos muiros aa de lomge, rrogamdo
a Deos que os posesse em algu a aveemça, per que a çidade
fosse deçercada, por a gramde mimgua que aviam de matiimentos.”
Quando o Mestre de Avis percorria o reino português procurando
assenhorar-se das localidades que se colocaram ao lado de Castela,
deixou Torres Vedras e passou por Leiria, onde uma multidão
pedia-lhe ajuda, pois faltavam alimentos. Dentre a multidão,
Lopes destacou a participação de um cego que “começou
de braadar gramdes braados, rrogamdo por Deos que o levassem comssigo”.
E, às vezes, como dissemos, os requerimentos desesperados a
Deus eram feitos por pessoas da nobreza, chegando-se mesmo a encontrar
exemplos entre os reis. Estando sendo assassinada pelo amante, o infante
D. João, D. Maria, irmã da rainha D. Leonor Telles,
suplicou: “Madre de Deus, acorre-me e ave mercee d'esta minha
alma”; suas últimas palavras teriam sido: “Jesu
filho da Virgem, acurre-me”. Depois de ter sido fragorosamente
derrotado em Aljubarrota, o rei de Castela, abandonando o campo de
batalha, dirigiu-se a Santarém, onde pôs-se a lamentar,
dizendo, segundo Lopes: “Oo Deus, que mao rey e sem vemtura!
Oo Senhor, da-me a morte”.
Dissemos anteriormente que muitas vezes usava-se requerer a Deus de
maneira corriqueira, de forma praticamente imperceptível. Isso
ocorria, ao que nos parece, pelo fato de serem muito comuns na época
os requerimentos a Deus. Quer dizer, acreditava-se tanto que Deus
podia atender às solicitações humanas e insistia-se
tanto nisso que a expressão acabou sendo banalizada. Mas voltamos
a insistir: o homem medieval português do século XIV,
cria sinceramente que Deus lhe atendia às súplicas.
E o melhor exemplo disso é que, na época, chegava-se
mesmo a encarregar outras pessoas de requererem a Deus algum benefício.
Um bom exemplo é o do Mestre de Avis, que dava alimentos e
até mesmo uma certa importância diária para algumas
pessoas devotas dedicarem-se a rogar a Deus por ele e pelo estado
do reino.
14. ENCOMENDAÇÕES A DEUS
As encomendações a Deus eram feitas em diversas oportunidades
e sob várias formas. Após um casamento, por exemplo,
os pais podiam dizer ao noivo: “Filho, encomendo a Deus e a
vós minha filha”; antes de uma batalha era comum que
os combatentes “emcomemdassem a Deos e aa Virgem Maria sua madre”
que lhes desse a vitória. Um comandante também podia
usar a expressão para desejar bom sucesso aos seus comandados,
como o fez o Mestre de Avis, mandando dizer a Nuno Álvares
Pereira que o “emcomemdava a Deos”.
“Vá com Deus” era uma outra forma utilizada; todavia,
ela não parece ter um sentido benfazejo; ao contrário,
nas passagens onde encontramo-la ela se configura mais com o sentido
irônico de “já vai tarde”. Da mesma forma,
a expressão “fique com Deus”, na única oportunidade
em que aparece nas crônicas de Lopes, tem um sentido contrário
do que se imagina. Gonçalo Vasques de Azevedo, nobre português
indeciso quanto ao partido que deveria tomar na época em que
disputavam o trono o Mestre de Avis e o Rei D. Pedro de Castela, não
foi receber a este último quando de sua passagem por seu castelo
em Torres Novas. O rei castelhano entendeu que Gonçalo Vasques
pendia para o lado do Mestre e acampou na vila. Naquela oportunidade,
entretanto, a mulher de Gonçalo, Dona Inês, foi visitar
o casal real que a convenceu a procurar fazer com que o marido seguisse
o partido castelhano. Voltando ao castelo, Dona Inês Afonso,
de fato, tentou convencer o marido, mas como sua tentativa foi infrutífera,
bandeou-se para o lado do rei. Este, tomando-a como refém,
se é que podemos assim dizer, mandou dizer a Gonçalo
Vasques “que nom fazia força quer fosse quer nom, que
pois ja tiinha sua molher em poder, que ficasse elle com Deos que
elle a levaria comssigo pera Castella”. Que explicação
poderíamos dar para esse caso? Que Deus era algo abstrato e
a mulher algo concreto? Também de forma irônica era utilizada
a expressão “vos valha Deus”. Um exemplo encontra-se
na argumentação de João das Regras sobre o segredo
do casamento de D. Pedro com D. Inês de Castro: “Hora
veede que vos valha Deus, que estoria esta pera nenhu ssisudo aveer
de creer!”.
“Mantenha-vos Deus” era também uma forma de encomendação,
mas utilizada no sentido exato do termo, sem outra conotação.
Quando os reis de Castela e Portugal, D. Henrique e D. Fernando, respectivamente,
encontraram-se para ratificar o tratado de paz entre os dois reinos,
o rei castelhano tomou a iniciativa de iniciar o diálogo, dizendo
“mantenha-vos Deus, senhor: muito me praz de vos veer...”.
A expressão, ao que tudo indica, era utilizada também
em ocasiões solenes, em que se prestava homenagem a algum grande
Senhor. Ao menos é a impressão que nos fica quando lemos
o capítulo em que D. João I, em visita à cidade
do Porto, foi recebido com muitas festas, “homde o beijar da
maão e Mantenha-uos Deus, Senhor, era tanto que nom podiam
auer vez de comprir suas vomtades.” E, ao passar pelas ruas,
“as donas que estauom aas janeellas fallauom altamente que o
manteuesse Deus muytos annos”.
“Que Deus perdoe” era uma encomendação normalmente
utilizada quando se referia a algum morto, uma expressão que
tinha o mesmo efeito que dizer-se “que Deus haja sua alma”.
Encontramo-la quando Lopes refere-se a Dona Constança, “filha
primeira e herdeira do mui alto rrei dom Pedro que Deus perdoe”;
quando se refere a D. Fernando, “a que Deus perdoe” e
a “...dona Enes de Castro, a que Deos perdoe...”. Numa
única oportunidade a expressão aparece nas crônicas
de Lopes sem que seja para referir-se a mortos. Trata-se da passagem
em que Dona Maria Teles, irmã da rainha Dona Leonor, falando
ao amante, o infante D. João, que a acusava de traição,
argumentava: “Oo senhor, eu entendo bem que vós viindes
mall consselhado, e perdooe Deus a quem vos tall conselho deu”.
15. AS LEIS DE DEUS
Sabemos que durante o século XIV vigoravam em Portugal múltiplas
fontes jurídicas, interpondo-se, simultaneamente, as Leis Nacionais,
o Direito Romano, o Direito Consuetudinário, Códigos
Castelhanos, impregnados de boa dose de Direito Romano e o Direito
Canônico. O Direito Canônico - que incorporava as “Leis
de Deus” e que seriam, a princípio, apenas aquelas contidas
no decálogo - era utilizado na época para dar solução
a várias causas que diziam respeito ao “casamento, relações
de parentesco, doações pias, testamentos, usura, e lucro
e etc.”. Quer dizer, o Direito Canônico extrapolava os
limites da Igreja e fazia-se sentir em toda a sociedade.
Todavia, apesar de toda a importância que assumia o Direito
Canônico na época, em Lopes encontramos poucas referências
a ele, embora as que apareçam sejam significativas. Já
no prólogo da Crônica de D. Pedro fica bem clara a importância
das leis divinas, quando Lopes define justiça:
“Justiça é uma virtude que é chamada toda
virtude, assim que qualquer que é justo, este cumpre toda virtude,
porque a justiça, assim como lei de Deus, defende que não
forniques nem sejas gargantão e, isto guardando, se cumpre
a virtude da castidade e da temperança. E assim podeis entender
dos outros vícios e virtudes”
Para o que nos interessa de momento, podemos concluir que Lopes entendia,
em suma, que o cumpridor da Lei de Deus era um virtuoso. Mas temos
outros dados que talvez sejam mais significativos que o trecho acima
na demonstração da importância das Leis Divinas
para a época. No prólogo da crônica de D. João
I, Fernão Lopes tece uma série de elogios a esse rei,
dizendo, entre outras coisas, que era um bom católico e que
“Elle fez a gramdes leterados tirar em linguagem os auamgelhos
e autos dos apostolos e epistollas de Sam Paulo e outros spirituais
liuros dos santos, por tall que aquelles que os ouuissem fossem mais
deuotos açerca da lley de Deus.”
Bem, mas poderíamos raciocinar que não deveríamos
tomar a atitude de um rei como suporte para mostrarmos a importância
da Lei Divina para a época ou de qualquer outra lei, porque
o rei, como tal, tinha todo o interesse em irradiar o mais que pudesse
imaginários capazes de fazer com que o povo se tornasse cada
vez mais obediente e submisso. Mas o que dizer de João das
Regras, bacharel em direito que, apesar de ter sido formado em Bolonha,
escola que a partir do século XII provocou um renascimento
do Direito Romano, insistia em dizer:
“Certo he que mais devemos dobedeeçer a Deos que aos
home s; nem ley nenhu a he dita ley, se non he comforme com a ley
de Deos, e mamdados da egreja...”
Devemos obedecer mais a Deus que aos homens e nenhuma lei pode ser
considerada lei se não estiver em conformidade com a Lei de
Deus. Isso, saído da boca de um legista, é o suficiente
para deixarmos por encerrado o assunto, sem precisar esmiuçar
outros exemplos.
16. OUTRAS FORMAS EM QUE SE USAVA O NOME DEUS
Outra forma freqüente em que Lopes empregava o nome de Deus
era para comparações, dentre as quais a mais marcante
nos parece ser a que segue:
“Porque assi como o Filho de Deos depois da morte que tomou
por salvar a humanall linhagem, mandou pello mumdo os seus Apostollos
preegar o evamgelho a toda creatura; por a quall rrazom som postos
em começo da ladainha, nomeamdo primeiro sam Pedro; assi o
Meestre, depois que sse despos a morrer se comprisse, por salvaçom
da terra que seus avoos gaanharom, emviou NunAllavarez e seus compannheiros
preegar pello rreino ho evamgelho portuguees...”
Referências a Deus como ente detentor de algum bem, aparecem
principalmente quando são feitas menções à
Igreja. Ao narrar o Cisma de Avinhão, Lopes parece não
se conformar com a divisão que se operou a partir dele e pergunta:
“... quall he o christaão que aja fe, posto que seja
pequena, que sse nom espante de tall feito como este, hom es tam leterados
e assi discretos perverteerem seu bõo juizo de guisa que levantarom
tall error na Egreja de Deus?”
Promessas a Deus eram raras, normalmente eram feitas em momentos de
desespero, como no caso em que, juntamente com Gonçalo Vasques
de Azevedo, o Mestre de Avis esteve preso por ordem de D. Fernando,
mas por interferência da rainha Dona Leonor. Nessa oportunidade
o Mestre “fez voto e prometeo a Deus que sse o livrasse d'aquella
prisom a seu salvo, que fosse a Jerusalem visitar o Santo Sepulcro”.
Pedir conselhos a Deus também era incomum. Só mesmo
D. Fernando e, mesmo assim, na falta de conselho dos homens, pois
ao ser desaconselhado a mover guerra contra Castela, disse que pedira
para o seu Conselho dizer qual a melhor forma de fazer a guerra e
não se a devia fazer: “Mas pois que o vós assi
dizees, eu averei a guerra todavia, e Deus me dará conselho
e maneira como a possa fazer e acabar com minha honrra”. Muitas
vezes as coisas ou as pessoas podiam ser boas tanto no que concerne
a Deus como no que tange ao mundo. Referindo-se, por exemplo, à
mãe de Nuno Álvares Pereira, Fernão Lopes diz:
“E esta foi mui nobre dona quamto a Deos e ao mundo, viv ndo
em gramde castidade e abstinemçia”. . Ou, ao contrário,
podiam não prestar nem a um nem ao outro, como o caso do casamento
de Dona Leonor com D. Fernando, nos dizeres de João das Regras,
que afirmou nas Cortes de Coimbra de 1383 que “tall casamento
nom era vallioso quamto a Deos, nem quamto ao mundo, ante foi vergonha
e escarnho”. Ora, se um casamento não era válido,
o mesmo João das Regras defendia que a rainha “quamto
a Deos nom he sua molher” e o rei “quamto a Deus nom he
seu marido”.
Desrespeitar a Deus era possível. Quando os ingleses invadiram
Castela, reivindicando a Coroa para Dona Constança, filha do
falecido rei D. Pedro e mulher do duque de Lancaster, tomaram à
força o castelo de Cortijo, não se importando com o
fato dos sacerdotes mostrarem o Corpo de Deus e em nome dele rogarem
complacência. Contrariar a Deus era até admissível,
pois até mesmo sobre Nuno Álvares se disse, certa feita,
que ele “querya o que Deus nam querya”. Mas negar ou não
crer em Deus eram coisas inconcebíveis para Lopes; ao menos
ele ignorou qualquer ato nesse sentido em seu tempo. Não crer
em Deus era coisa do passado que se encontrava narrada no Antigo Testamento,
e negar a Deus somente “um perro, que com medo dira que Deos
nom he Deos”.
A palavra Deus aparece ainda nas Crônicas de Lopes, de variadas
formas, dificultando-nos agrupá-las sob um título. Geralmente
são expressões que não se repetem mais que uma
vez, a exemplo de “Deus lhe revelava”, “Deus çarrara
suas orelhas”, “em nome de Deus”, “falando
com Deus”, etc. Deixemo-las indicadas.
17. FILHO DE DEUS
Há mais de um século antes de Lopes escrever suas crônicas,
a Igreja já havia estabelecido o Credo, no Concílio
de Nicéia, em 325. E as divergências sobre a Santa Trindade
e a natureza do Pai, Filho e Espírito Santo já estavam
resolvidas. Na época de Lopes, portanto, acreditava-se na existência
de um Deus em três pessoas. Tal crença estava de tal
forma arraigada na mentalidade da época que nem sequer era
preciso insistir nessa idéia. Por isso, talvez, nas crônicas
apareçam muito poucas referências à Trindade.
João das Regras, nas já mencionadas Cortes de Coimbra
de 1383, em sua defesa para fazer rei o Mestre de Avis, menciona-a:
“...e em nome de Deos que he Samta Trimdade, Padre, e Filho
e Spiritu Samto”. E, no seu discurso, ao acusar os castelhanos
de heréticos, menciona uma parte do Credo ao afirmar que eles
estavam “pecamdo na ffe comtra aquelle artigoo: Creo no Spiritu
Samto, e h a Samta Catholica Egreja”.
As referências ao Filho e ao Espírito Santo não
chamam a atenção do leitor das crônicas de Lopes,
como no caso do Pai. Menções ao Espírito Santo
passam desapercebidas, e a Jesus aparecem numa proporção
aproximada de uma por cem. Ou seja, para cada cem vezes em que aparece
o nome de Deus, aparece uma vez o de Jesus. E, mesmo assim, essas
referências não tem o mesmo apelo que encontramos quando
do uso do nome de Deus. Numa vez Jesus aparece como exemplo comparativo;
nas demais, via de regra, aparece como referência a alguma solenidade
religiosa: “em louvor da çircuomçisom de nosso
Senhor Jhesu Christo”, em “louuor das çimquo chagas
do nosso senhor Jhesu Christo” etc.
18. MÃE DE DEUS
O culto à Mãe de Deus era terno. Ela era vista
“...como a virgem da Anunciação, a jovem mãe
do Presépio, e a fiel companheira junto à cruz; como
advogada em Caná, e mãe de todos os filhos de Deus,
remidos por seu Filho.”
A devoção à Mãe, a exemplo do que acontecia
com Deus, atingia indistintamente a nobreza e as camadas populares.
D. João I, segundo Lopes, era “muy deuoto da preçiossa
Virgem”, e Nuno Álvares Pereira tinha a imagem da “preçiosa
Madre” de Deus pintada em sua bandeira. De outro lado, as procissões
e a “oraçom da Salue regina em honra e louor da Madre
de Deus” refletem a devoção do povo em geral.
A crença de que a mãe de Deus poderia vir em socorro
das pessoas também era comum, desde os mais humildes até
o próprio rei. D. João I, em resposta a Joham de Monferrara,
que lhe dizia que estivesse certo de que venceria a batalha que estava
prestes a se travar entre as forças castelhanas e portuguesas
[Aljubarrota], dizia: “Essa feuza, tenho eu em Deus e na Virgem
Maria que assy sera como vos dizees”. Em outra oportunidade,
não tendo por perto o condestável Nuno Álvares
Pereira para ajudá-lo contra os castelhanos, o mesmo D. João
I disse que tinha quem os ajudaria em seu lugar: “o senhor Deus
e sua preçiossa Madre”. E, só para citar um exemplo
envolvendo os humildes, os lisboetas, durante o cerco a que estavam
submetidos pelos castelhanos, pediam, cada um à sua maneira,
“chamando a preçiosa Madre de Deos” em seu auxílio.
Mas a forma mais consagrada de se apelar à mãe de Deus
era “Santa Maria, val!”. Essa expressão tinha um
sentido bem amplo, significava valha-me, ajuda-me, socorra-me, proteja-me,
defenda-me.
19. APELOS AOS SANTOS DE DEUS
São Mateus, São Pedro, São Paulo e São
Vicente [padroeiro de Lisboa] aparecem algumas vezes nas crônicas
de Lopes, mas ficam muito atrás de São Jorge e Santiago.
Estes, santos guerreiros, eram invocados como um estímulo aos
combatentes, tão ou mais forte que a própria nacionalidade.
Aliás, a nacionalidade era indissociável de um santo
guerreiro; “Portugall e sam Jorge”, “Castilha, Samtiago”.
E não só os combatentes apelavam para esses santos;
o povo, em geral, quando assistia a uma batalha ou quando pedia proteção
aos que combatiam, chamava pelo seu auxílio. E os embaixadores,
tanto de Portugal como de Castela, ao tratar de assuntos relacionados
à guerra, costumavam dizer que requeriam isto ou aquilo da
parte de São Jorge ou Santiago, conforme o lado. Mas, apesar
da constância com que eram chamados, os santos tiveram sempre
um papel secundário e, se a mãe de Deus às vezes
era considerada uma advogada dos que lhes pediam a intercessão,
os santos eram sempre apenas medianeiros que rogavam junto a Deus
em defesa dos que pediam alguma graça.