CAPÍTULO I

O CRONISTA FERNÃO LOPES: VIDA E OBRA

1. A VIDA DE FERNÃO LOPES
2. A OBRA DE FERNÃO LOPES
FONTES DE LOPES PARA A CRÔNICA DE D. PEDRO I
FONTES DE LOPES PARA CRÔNICA DE D. FERNANDO
FONTES DE LOPES PARA A CRÔNICA DE D. JOÃO I
3. FERNÃO LOPES E OS OUTROS CRONISTAS DO PERÍODO
4. O VÍNCULO EMPREGATÍCIO DE LOPES
5. LOPES E A SUA CONCEPÇÃO DA HISTÓRIA
LOPES EM CONTRADIÇÃO COM O SEU TEMPO?
A HISTÓRIA ERA DETERMINADA POR DEUS
A ÍNFIMA PARTICIPAÇÃO DO DIABO


CAPÍTULO I

O CRONISTA FERNÃO LOPES: VIDA E OBRA

1. A VIDA DE FERNÃO LOPES

Escrever sobre a vida de Fernão Lopes é tarefa bem menos complexa do que sobre a sua obra. Ocorre que da história de sua vida quase tudo se perdeu e o que restou está amplamente divulgado, conforme se verá abaixo. Quanto à sua obra, entretanto, embora já tenha servido de base a inumeráveis pesquisas e objeto das mais variadas perquirições, se nos afigura impossível esgotá-la, tendo em vista a riqueza de dados que ainda pode dar às ciências, especialmente às humanas e sociais, dependendo do enfoque de que seja objeto.
Apesar de sua estatura como o maior cronista português de todos os tempos, pouco sabemos a respeito da vida privada de Fernão Lopes. O conhecimento de sua naturalidade, sua idade na época em que escreveu esta ou aquela crônica e os locais onde eventualmente tenha estudado, juntamente com dados a respeito de seu tipo físico e de seus hábitos, por certo nos possibilitaria a elaboração de uma análise psicológica que, além de satisfazer a curiosidade a nós imposta pelo costume de nos informarmos sobre este tipo de dados, nos levaria a uma compreensão melhor de sua própria obra. Lamentavelmente, entretanto, dispomos de muito pouco de concreto a seu respeito. Sabemos que teria nascido pelos anos de 1378 a 1383, ainda assim se concordarmos com a suposição de Braamcamp Freire, de que Lopes “deveria ter de trinta e cinco a quarenta anos quando, em 1418 lhe foi entregue a guarda das escrituras da Torre do Tombo”. Outras informações obtidas por Braamcamp Freire baseiam-se em documentos e não em meras suposições. Lopes foi guarda-mor do arquivo da Torre do Tombo em 1418, escrivão dos livros de D. João em 1419, escrivão da puridade de Infante D. Fernando em 1422, contratado por D. Duarte em 1434, por catorze mil reais, para colocar em crônica os feitos dos reis antigos; e apesar de não escrever mais a partir de 1452, só foi aposentado e substituído por Gomes Eanes de Zurara em 1454. Em 1459 temos a última informação sobre ele: contestou o parentesco e deserdou seu neto Nuno Martins, filho do Mestre Martinho, morto em África.
Esta última informação é intrigante por desconhecermos os motivos que levaram Lopes a adotar tal atitude. Sabe-se que o físico [médico] de D. Fernando, Mestre Martinho, era filho de Lopes. Acompanhou o Infante Santo na desastrada campanha empreendida pelos portugueses a Tânger, onde veio a falecer. Deixou um filho - Nuno Martins - que embora tivesse nascido de mulher solteira - Maria Afonso - tinha sido legitimado por carta de D. Afonso, expedida em 1457. O simples fato de seu filho não ter se casado com Maria Afonso não poderia ter sido o motivo da rejeição. Lopes estava acostumado a narrar dezenas de casos idênticos e em raras oportunidades hostilizou os bastardos. Portanto, a não ser que aceitemos que esta Maria Afonso fosse realmente uma “mulher que houvera filhos de desvairados pais e (...) que dormia com quem lhe prazia”, não temos outra explicação para que Lopes tenha repudiado o neto. Que outros motivos, afinal, poderia ter? Predileção por algum outro herdeiro? Não o cremos, apesar de que o cronista parece ter ficado satisfeito em deserdar o neto, não se importando muito com o fato de jamais ter conseguido anular a carta de legitimação.
Nessa época, Lopes já deveria ter por volta de oitenta anos. Quanto tempo mais viveu, o que mais fez, como morreu, a quem, afinal, deixou a sua herança, são coisas que nos ficaram desconhecidas. Por ironia, ele que informou tanto sobre a vida dos outros, nada deixou sobre a sua própria e, se algo deixou, perdeu-se. A História parece mesmo ser incapaz de resgatar o passado em sua totalidade, todavia, resta-nos o consolo de podermos, através da apreciação de sua extraordinária obra, conjeturarmos mais alguns traços de sua biografia.
Quando lemos sua obra, especialmente a Crônica de D. João I, percebemos que Lopes introduziu em sua narrativa o elemento popular - coisa incomum se tivermos em conta outros cronistas medievais - e, com tanta ou maior facilidade, vamos detectar uma deferência muito especial a Lisboa e aos lisboetas. Essas observações nos levam a supor que Lopes, embora findasse os seus dias em certa abastança, tivera uma origem humilde e nascera na cidade de Lisboa. Sua ascensão e conseqüente convivência na Corte, a nosso ver, deve-se a seus estudos. Embora ignoremos onde, quando e como tenha estudado, devemos admitir que não haveria condições de ter atingido o seu nível intelectual sem que tivesse freqüentado alguma boa escola.

2. A OBRA DE FERNÃO LOPES

Sobre a obra de Lopes temos mais o que falar. Comecemos pela polêmica relativa à quantidade de crônicas que escreveu. Em algumas passagens das crônicas que irrefutavelmente lhe são atribuídas [Crônicas de D. Pedro I, D. Fernando e D. João I], Lopes nos induz a crer que narrou as histórias de outros reis além desses mencionados. Pretendendo imortalizar aqueles que participaram da defesa do reino português contra Castela, afirma que desta mesma forma procedeu ao narrar os feitos de D. Henrique de Borgonha:
“como no começo desta obra nomeamos fidalgos algu s, que ao Comde do Hamrrique ajudarom gaanhar a terra aos mouros; assi neeste segumdo vollume diremos hu s poucos dos que ao meestre foram companheiros em deffender o rreino...”
Em outra passagem, ao narrar uma façanha de um cavaleiro português, Gil Fernandes, Lopes compara-o com o avô, homem muito corajoso, “...segundo dissemos na estoria d'el-rrei dom Affonsso o quarto...”. Em outra oportunidade, novamente Lopes refere-se a D. Afonso: “Morto el-rei Dom Afonso, como haveis ouvido...”. Ao enumerar os filhos de D. João I, Lopes deixa-nos a impressão de que escreveu também uma crônica sobre um deles: “E ouve el-Rey outro filho, que chamaram Ifante Eduarte (...) o qual reinou depois de seu padre como ao diante ouuyrees”. E, finalmente, Lopes aventa-nos a possibilidade de ter escrito a crônica de Nuno Álvares Pereira: “Este Nuno Alvarez era filho do prior dom Alvaro Gonçallvez Pereira, de cuja geeraçom e obras mais adeante entendemos trautar...”.
Essas alusões feitas por Lopes levaram alguns autores a sérios equívocos. Damião de Goes e Francisco M. Trigoso, por exemplo, procurando fazer justiça a Lopes, consignando-lhe a autoria das obras que realmente escreveu, conseguiram demonstrar que até mesmo a crônica de D. Dinis, publicada como sendo de Rui de Pina, era de Lopes; contudo, acabaram atribuindo-lhe também obras que não redigiu, como é o caso da crônica de D. Duarte. Braamcamp Freire, que pesquisou com muito rigor a vida e a obra de Fernão Lopes, incumbiu-se de desfazer este equívoco, tomando por base o testemunho de Azurara, segundo o qual Lopes somente escreveu até as pazes firmadas com o reino de Castela. Desfeito esse equívoco, entretanto, Braamcamp Freire incorreu em outro: não admitindo que Lopes fosse capaz de plagiar, atribuiu-lhe a autoria da Crônica do Condestável. Fê-lo através de um trabalho paciente, comparando os capítulos da Crônica do Condestável com o que Lopes havia escrito sobre o conde nas Crônicas de D. Fernando e D. João I. Como são exatamente iguais, não teve dúvida em atribuir a Lopes a Crônica do Condestável, deixando-se aparentemente levar pela já mencionada promessa do cronista de que falaria da geração de Nuno Álvares Pereira quando escrevesse sobre os feitos do Mestre de Avis. Todavia, hoje é ponto assente que Lopes não escreveu a Crônica do Condestável, apenas plagiou. Contudo, Braamcamp Freire, não quis admitir isto: “...esquecendo-se, no seu entusiasmo pela obra do cronista, de que a noção moderna de plágio de forma alguma se pode aplicar à produção de um historiador medieval”.
Não se pode, contudo, desmerecer, em hipótese alguma, as pesquisas destes historiadores. Mesmo ultrapassados nos passos acima esclarecidos, contribuíram largamente para restituir a Lopes a autoria de trabalhos que os Pina haviam usurpado. Hoje, graças a eles, parece não existir dúvidas de que Lopes escreveu realmente outras crônicas além das de D. Pedro, D. Fernando e D. João I, embora o que se nos afigura mais correto é proceder como Luís Lindley Cintra e atribuir-lhe a coordenação e orientação dos trabalhos relativos à elaboração de todas as crônicas dos sete primeiros reis portugueses. Afinal, não é demais lembrar, era habitual naquela época, a existência de colaboradores preparados para a consecução de uma crônica, sob a supervisão de um compilador-autor.
Para não cairmos em contradição, é necessário abrirmos um parênteses para esclarecer que se, de fato, os arquivistas da Torre do Tombo, descendentes de Rui de Pina, usurparam obras alheias, como acima mencionamos, por eqüidade, o mesmo tratamento que demos a Lopes inocentando-o de plágio, devemos dar a eles, porque era então comum também refundir trabalhos e transcrevê-los, assumindo a autoria. Nas crônicas de D. Pedro, D. Fernando e D. João I, Lopes não copiou porventura outros autores? Não copiou Ayala? Não transcreveu trechos completos da Crônica do Condestável, cujo autor desconhecemos? Isso tudo, entretanto, não lhe tira méritos e, apesar de não pretendermos aprofundarmo-nos nessa questão, não queremos deixar passar a oportunidade de ressaltar as diferenças individuais dos cronistas plagiadores, pois enquanto muitos deles estropiaram as obras copiadas, Lopes deu-lhes novo estilo, melhorando a estruturação da frase. Tomemos ao menos um trecho em que Lopes copia, para constatarmos nossa afirmação.
Iniciemos com o capítulo XI da Crônica do Condestável:
“...de tão bom criado que em vós fiz, não podia sair senão tal cousa e outras melhores; e esta feúsa houve eu sempre em vós e hei, porque eu pera mais vos tenho e pera muito maior cousa; mais quero que saibas que a mim não praz de vós serdes em tal cousa...”
Vejamos agora o mesmo trecho, da forma como aparece no capítulo CXXIII, da Crônica de D. Fernando:
“... de tão bom criado que em vós fiz não podia sair senão tal obra e outras melhores, e esta feúsa houve eu sempre de vós e hei, mas quero que saibas que a mim não praz de vós em tal feito, porque eu pera mais vos tenho e pera maior cousa de vossa honra que entrardes nesta requesta.”
Como bem observou Hernâni Cidade comparando os trechos das crônicas acima, “onde a velha crónica tem cousa...cousa...cousa... ? escreve Fernão Lopes ? obra... feito...requestra...”, tornando a frase muito mais agradável ao leitor.
Retomando a questão do plágio, queremos concluir afirmando que o historiador não pode apreciar com valores de sua época as atitudes tomadas por seus antecessores de tempos recuados, sem correr o risco de cometer graves injustiças.
Em resumo, sobre a polêmica em torno da obra de Lopes, podemos afirmar que as conclusões mais recentes dão conta de que muito provavelmente a sua equipe tenha compilado as crônicas dos sete primeiros reis portugueses e que ele próprio trabalhou com as crônicas de D. Dinis e D. Afonso IV. De nossa parte, pelos estudos que realizamos, ficou-nos a forte impressão de que Lopes realmente, ao longo dos trinta e seis anos em que esteve trabalhando na Torre do Tombo - 1418-1454 - escreveu sim outras crônicas além das de D. Pedro, D. Fernando e D. João I, mas na realização desta pesquisa, optamos por trabalhar apenas com as três últimas mencionadas, obviamente pelo fato de não terem
desaparecido como as demais e, mesmo assim, ressaltando que a crônica de D. Pedro difere das outras duas, tanto no que concerne ao estilo, como no que diz respeito à utilização de fontes comprobatórias.

FONTES DE LOPES PARA A CRÔNICA DE D. PEDRO

Quanto ao estilo não parece haver dúvidas de que Lopes evoluiu naturalmente de um estilo seco, usado na crônica de D. Pedro, para um mais animado e vivo nas de D. Fernando e de D. João I. Quanto aos documentos utilizados, ao que parece, quanto mais recuava no tempo menos probabilidades tinha de conseguir fontes fiéis aos seus propósitos, apesar de todo o seu esforço:
“Oo! com quamto cuidado e dilegemçia vimos gramdes vollumes de livros, de desvairadas limguagees e terras: e isso meesmo pubricas escprituras de muitos cartarios e outros logares nas quaes depois de longas vegilias e gramdes trabalhos, mais çertidom aver nom podemos da contheuda em esta obra.”
É certo que Lopes está se referindo à crônica de D. João I; todavia, não foi menos cuidadoso e diligente com relação aos outros trabalhos que executou. Aconteceu, no entanto, que não encontrou, para escrever sobre D. Pedro, tantos documentos como para as outras duas obras posteriores, daí a nossa afirmação supra de que esta obra difere das subseqüentes. Então, para superar essa lacuna, muitas vezes recorreu ao imaginário popular, como se verá oportunamente.
Entretanto, embora em menor quantidade, a Crônica de D. Pedro foi escrita com base documental. Não há dúvidas de que Lopes se utilizou amplamente da Crônica de Pedro, o Cruel, de autoria de Pero Lopes de Ayala, da qual transcreveu trechos inteiros ou simplesmente os resumiu, assim como de uma crônica portuguesa que relata o reinado de D. Pedro e coloca o monarca como o pacificador de Portugal. De vários conventos portugueses, teriam vindo contribuições importantes dentre as quais destaca-se o Livro de Noa, composto em Santa Cruz de Coimbra. De alguma miscelânea de apólogos morais, Lopes teria se aproveitado para contar a forma como D. Pedro aplicava a justiça. De algum cancioneiro, Lopes teria retirado a base da narrativa sobre o episódio envolvendo um bispo do Porto com uma mulher casada, que custou um grande vexame ao prelado, pois D. Pedro pretendeu açoitá-lo, castigando-o com as próprias mãos, como se verá mais detalhadamente adiante. Além dessas fontes, outros documentos utilizados teriam sido os Livros da Chancelaria - de onde Lopes teria se aproveitado de ordens e editos reais e negociações diplomáticas - as bulas papais, as cartas diplomáticas originais, os testamentos, os alvarás, as cartas de doações. E, finalmente, Lopes teria apreciado moedas da época de D. Pedro e observado pessoalmente os túmulos de Inês de Castro e D. Pedro, dos quais faz minuciosa descrição.
A leitura mais apreciada na Idade Média, sem a menor sombra de dúvida, versava sobre os feitos cavaleirescos e - dada a inexistência de ações militares no reino português, que propiciassem tais narrativas, entre 1357 a 1367, período do reinado de D. Pedro - Lopes foi buscar nas disputas internas pelo trono de Castela e na luta entre este reino e o de Aragão, o enredo para a maior parte de sua Crônica de D. Pedro I. Nesta circunstância reside a explicação de Lopes ter utilizado com tanta freqüência a crônica escrita por Ayala para redigir a sua, de D. Pedro. De fato, praticamente um terço desta crônica diz respeito a assuntos castelhanos, embora a narrativa esteja sempre articulada a interesses do reino português. Com estas explicações esperamos ter esclarecido ainda mais, que o estilo de Lopes na Crônica de D. Pedro difere das subseqüentes: sua fidelidade à fonte levou-o a copiar literalmente Ayala, o que se traduz num estilo mais seco, muito diferente do esmerado estilo encontrado na Crônica de D. João I. Além do estilo, a questão da fidelidade às fontes suscita um outro problema. Copiando, simplesmente, Lopes não pode dispor de elementos que comprovassem a veracidade dos depoimentos de Ayala. Desta forma, a verdade do cronista português acabou sendo a verdade do cronista castelhano. Ora, sabendo que Ayala não teve a mesma insistente preocupação que Lopes em torno da veracidade dos fatos, torna-se fácil concluirmos que a Crônica de D. Pedro, além de perder em estilo para as posteriores, perdeu também em valor histórico.
Todavia, não param por aí os prejuízos causados à verdade histórica, pelo uso de fontes pouco confiáveis, ao menos no que concerne à exatidão dos acontecimentos. Segundo já citado acima, Russell menciona que Lopes, para escrever a Crônica de D. Pedro utilizou-se de uma obra homônima, mas não nos fornece nenhuma informação que nos ajude a concluir qualquer coisa sobre a sua autoria e, principalmente, sobre a sua fidedignidade. Que dizer então das miscelâneas de apólogos e das cantigas de escárnio? Evidentemente que essas obras não podem se prestar ao esclarecimento da verdade científica pretendida por Lopes em suas crônicas posteriores. Convém ressaltar que, absolutamente, não estamos querendo dizer que estes tipos de obras não tenham valor para a história, pois, como veremos adiante, elas são importantes especialmente para o resgate do imaginário social de uma época. O que ora estamos enfatizando é que esses não são documentos fidedignos para a apuração da veracidade dos fatos.
Para isso acreditamos terem sido mais úteis a Lopes, os documentos existentes na Torre do Tombo e já mencionados uma vez: livros de chancelaria, bulas papais, cartas diplomáticas, testamentos, alvarás, etc. Úteis também, porém nem sempre fiéis, foram os livros compostos pelos monges, dos quais mencionamos o Livro de Noa, que cuidadosamente apontavam datas e tipos de fenômenos ocorridos.
FONTES DE LOPES PARA A CRÔNICA DE D. FERNANDO

Também na elaboração da Crônica de D. Fernando, Fernão Lopes utilizou-se de fontes narrativas e documentais mas com alterações de ênfase. Russell, através de uma leitura muito atenta dessa crônica, conseguiu um arrolamento praticamente completo das obras das quais Lopes se utilizou. Das fontes narrativas com certeza podemos citar a Crônica do Condestável, usada para a elaboração dos últimos capítulos. De Ayala mais uma vez aproveitou-se Lopes, mas na Crônica de D. Fernando, com muito mais parcimônia do que na do rei antecessor. A exemplo do que sucedera ao escrever a Crônica de D. Pedro, em virtude da citação minuciosa da data e hora, antes da narração de fenômenos naturais, sabemos que Lopes utilizou-se de fontes analíticas para informar sobre uma tormenta que destruiu algumas naus no Porto de Lisboa. Utilizou-se ainda de livros de linhagens, folhetos de prelados fiéis ao papa de Roma, uma obra de Martim Afonso de Melo, uma outra obra que teria servido como que uma espécie de matriz não só para Lopes, como também para o compositor do Livro de Noa.
Mesmo seguindo pari passu as informações de Russell, não nos parece inoportuno acrescentar alguns esclarecimentos sobre o que foi acima exposto. Quanto à presumível matriz do Livro de Noa, obra já mencionada quando falamos sobre as fontes utilizadas por Lopes na redação da Crônica de D. Pedro, lembremos que é um livro analítico, ou seja, uma obra onde eram referidos assuntos variados que eventualmente chamavam a atenção de algum historiador monástico quanto a este ou aquele ano. Era comum, nestes livros, a descrição de fenômenos da natureza, especialmente os catastróficos, precedidos impreterivelmente da data e hora em que ocorreram. Esse livro de Noa não é original; há indícios de que foi copiado de uma outra obra congênere, que se perdeu, e foi essa obra que serviu como fonte ao livro de Noa e que acima nomeamos como sendo matriz, que também teria servido a Lopes para a elaboração de sua Crônica de D. Fernando.
Vejamos em exemplo, cotejando trechos, respectivamente, da Crônica de D. Fernando e do Livro de Noa:
“...e dizem alguuns que mandou fazer queixame ao Papa, e a ElRei de Ingraterra, e a seus filhos, do mal e desomrra que Dom Henrique avia feito a elRei Dom Pedro seu primo; e que a esto forom Dom Martim Gil bispo Devora, e o almirante, quamdo os el Rei mandou em messagem ao Principe e a outros senhores em duas gallees.”
“ElRey Dom Fernando mandou seu recado a todolos Reys de Espanha, e mandou querelar ao Papa, e tambem ElRey de Inglaterra, e a seus filhos, que lhe pesasse o mal, e morte, e deshonra, que o Anrique havia feito em elRey D. Pedro, e na Caza de Castella....”
Sobre a obra escrita por Martim Afonso de Melo o que se pode dizer é que era uma crônica versando sobre o reinado de D. Fernando e que a conhecemos tão somente em virtude das citações de Fernão Lopes e Zurara. Ainda assim, no que concerne a Lopes, conhecemo-lo muito mais pelas críticas que dele faz que por outro motivo qualquer. Ao que parece Martim Afonso era um escritor parcial, ao menos se dermos crédito a Lopes.
Fontes interessantes, muito usadas por Lopes e que chegam inclusive a tornar marcantes algumas de suas posições, são os folhetos dos prelados fiéis ao papa de Roma. A evidência do uso de tais folhetos nos é fornecida por Lopes no capítulo CIX de sua Crônica de D. Fernando, onde, após afirmar que o Cisma de Avinhão deixou infinitas dúvidas entre os cristãos, esclareceu que:
“...posto que muitos doutores, grandes leterados, per certas e fortes rrazoões provassem asaz claramente em seus trautados que sobr'esto fezerom este Urbano seer verdadeiro papa e nom outro: assi como Joham de Liniano e Bertollameu de Saliceto e outros que longamente arguindo sobr'esto determinarom a verdade.”
Não temos nenhuma informação que possa demonstrar a existência de folhetos que circulassem em Portugal, na defesa da legitimidade do papa estabelecido em Avinhão. O que sabemos é que Portugal, durante o reinado de D. João, sempre defendeu a mesma posição da Inglaterra no que concerne ao Cisma, ou seja, esteve ao lado do papa romano. D. Fernando, todavia, nem sempre esteve do mesmo lado, ora tendeu para Avinhão, ora para Roma, de acordo com as conveniências políticas do momento. Quando houve o Cisma, o rei português optou pela obediência ao papa de Avinhão, juntamente com o rei D. João de Castela, seu aliado naquele momento. Mas logo em seguida, estando em guerra com Castela, quando recebeu ajuda inglesa, em virtude dos ingleses estarem com o papa de Roma, passou a obedecê-lo. Mais tarde, quando firmou as pazes com os castelhanos, voltou novamente a considerar verdadeiro o papa de Avinhão. De qualquer forma, para Lopes, o verdadeiro papa era o romano, daí utilizar-se dos folhetos que expressavam a mesma opinião.
Feitas essas considerações sobre as fontes narrativas utilizadas por Lopes para composição de sua Crônica de D. Fernando, resta-nos tratar a respeito das fontes documentais e, no que tange a esse assunto, ressaltarmos a forma como foram utilizados os livros de chancelaria, porque, de maneira geral, as demais fontes em nada diferem das que foram usadas na Crônica de D. Pedro I, exceto na quantidade, muito maior na Crônica de D. Fernando. Os Livros de Chancelaria foram conservados na íntegra pelo menos até 1459, diga-se de passagem, graças a D. Fernando que, imitando o exemplo dado pelas chancelarias de Aragão e Navarra, salvou os arquivos medievais portugueses. Até 1378 era costume os arquivos acompanharem os monarcas por onde quer que fossem. Nessa data, D. Fernando estabeleceu uma sede fixa para a chancelaria real, na Torre do Tombo. Em 1459, nas Cortes de Lisboa, resolveu-se mandar fazer versões resumidas dos livros de chancelaria, o que resultou numa redução considerável de informações, pois que, de setenta e cinco volumes das chancelarias de D. João I, D. Fernando e D. Pedro, acabaram restando apenas oito. Como o nosso cronista, para escrever as suas crônicas, utilizou-se largamente das coleções antigas, atualmente “... é a Fernão Lopes que temos de recorrer se quisermos descobrir o teor de alguns dos mais importantes documentos das chancelarias desaparecidas”.

FONTES DE LOPES PARA A CRÔNICA DE D. JOÃO I

Prosseguindo na questão das fontes utilizadas por Lopes, examinaremos as que utilizou para escrever a sua Crônica de D. João I, em relação à qual devemos de pronto ressaltar que, para essa crônica, dispôs Fernão Lopes de muito maior quantidade de textos narrativas do que para as anteriores. O próprio cronista, para considerar o efetivo à disposição dos reis de Castela e Portugal na batalha de Aljubarrota, nos revela que precisou fazer uma seleção das obras lidas para, finalmente, concluir pelo número que achou mais próximo da realidade. No início do capítulo XXXVII, Lopes nos informa que:
“foi vista sobresto a composiçom de muytos, posto que delles rudemente fallassem...”
E mais adiante acrescenta:
“E nos (...) de muyto reuolver de liuros com gram trabalho e diligemçia ajuntamos as mais chegadas aa razom, e em que os mais dos autores pella moor parte comsentem.”
Quer dizer, Lopes leu muitas obras, comparou-as, considerou exatas as informações coincidentes em várias delas ou simplesmente adotou aquelas que julgou mais corretas. Lamentavelmente, entretanto, a maioria destas versões apreciadas por Lopes, desapareceu, não nos ficando sequer a possibilidade de uma eventual averiguação através de alguma citação capaz de as identificar. Contentemo-nos com o que é possível apreciar.
As duas fontes narrativas mais importantes que Lopes utilizou foram a Crônica do Condestável, na sua versão original e a Crônica do doutor Christoforus. Falemos sobre esta última, já que sobre a do Condestável tratamos anteriormente. Christoforus foi um eclesiástico que relatou especialmente os feitos militares do reinado de D. João I. Parece ter sido um escritor muito bom, pois, em caso contrário, por certo, não teria sido tão prestigiado pelo severo espírito crítico de Lopes que o citou textualmente várias vezes. Coisa incomum, uma exceção, pois somente ele mereceu tal tipo de referência. Atitudes contrárias eram mais comuns a Lopes, pois criticava veementemente os autores que não escreviam de acordo como havia ocorrido o acontecimento. “Com os geolhos em terra peça perdom aa verdade aqueles que escreveram errada opinyom”.
Mais importante de que a confiança que o Doutor Christoforus despertou em Lopes, foi a influência que exerceu sobre ele. Já dissemos que Christoforus era um prelado. Ao escrever a sua história do reinado de D. João I, colocou muito claramente a posição da Igreja portuguesa diante da crise sucessória que ameaçou a coroa após a morte de D. Fernando, em 1383: ardente nacionalismo e defesa do papa de Roma. Para Christoforus os castelhanos não eram apenas invasores que tentavam usurpar a coroa, eram hereges cismáticos. De fato, torna-se muito difícil enumerar as páginas em que Lopes assumiu posições pró-Roma e quase impossível citar as em que exaltou o nacionalismo lusitano. De qualquer forma, tomemos ao menos dois exemplos. Ao relatar o clima reinante no seio da hoste castelhana nos momentos precedentes à batalha de Aljubarrota, Lopes conta que “dous bispos que hi vijnham e alguuns frades pregadores outorgauom imdulgencias da parte do Antypapa...” Antipapa! Precisaríamos exemplo mais significativo? Quanto ao sentimento nacional tomemos, para ilustrá-lo, as páginas onde Lopes retrata as tribulações sofridas por Lisboa em virtude da falta de mantimentos. Embora tristes e comoventes, do ponto de vista literário, estas páginas podem se inscrever entre as mais belas escritas por Lopes. Nelas são retratados os sofrimentos do povo que se abrigava em Lisboa durante o cerco promovido pelo rei castelhano:
“Assi que rrogavom a morte que os levasse, dizemdo que melhor lhe fora morrer, que lhe seerem cada dia rrenovados desvairados padeçimentos.”
Todavia, todo esse sofrimento dos lisboetas não foi em vão:
“Hora esguardaae como sse fossees presente, ha tall çidade assi descomfortada e sem nenh a çerta feuza de seu livramento, como veviriam em desvairados cuidados, quem sofria omdas de taaes afflições? Oo geeraçom que depois veo, poboo bem avetuirado, que nom soube parte de tantos malles, nem foi quinhoeiro de taaes padecimentos! os quaaes a Deos por Sua merçee prougue de çedo abreviar doutra guissa, como açerca ouvirees.”
Além das duas fontes narrativas apreciadas acima, devemos ter em conta que Lopes utilizou-se também, para a sua Crônica de D. João I, de coleções de sermões e de obras poéticas patrióticas. Na verdade, quanto a essas obras poéticas, nada é excessivamente taxativo e, se deveras procedente, tornaria invencionices fantasistas quaisquer conjecturas a seu respeito. Russell, baseado na exorbitância de alguns dados oferecidos por Lopes, como o efetivo do exército castelhano e o número de mortes ocorridas na Batalha de Aljubarrota, concluiu que “é sedutora a idéia de que esses relatos seriam obras poéticas escritas no calor do entusiasmo patriótico depois da grande vitória”. Quanto às coleções de sermões, podemos dizer que as evidências sobre a sua utilização são muito maiores do que as relativas aos poemas patrióticos. Este tipo de literatura medieval, tão ao gosto do leitor da época, a exemplo da Crônica do Doutor Christoforus, influenciou a obra de Lopes no que concerne à posição da Igreja portuguesa diante da crise sucessória. O mestre Rodrigo de Simtra, da ordem de São Francisco, notável pregador, segundo Lopes, levou às lágrimas os exultantes portugueses que comemoravam com procissão e missa a retirada dos castelhanos que, sob o comando do próprio rei, haviam cercado Lisboa em 1384.
“E nos assi postos na postumeira parte de tamanha lastima e amgostura, disse o mui alto Rei çellestriall, Padre de gramdes misericordias e Deos de toda comssollaçom, no comssistorio da sua sabedoria: Tempo he que ajamos compaixom com a çidade de Lixboa! ouvida he a tua oraçom! e porque te amei querote livrar, avemdo de ti gramde doo e esto sera em maão forte, e a tua feuza daqui em deamte, em mim será.
Mas por quamto aquell gram Rei de Castella era emdurado em seu coraçom, a nom deçercar esta çidade por cousa que aviinr podesse, ataa que per fame ou força darmas a podesse tomar, nom quis Deos com ell teer outro geito, por mostrar seu grade poderio, salvo aquelle que teve com elRei Faraó...”
Outro longo, belo e não menos comovente sermão utilizado por Lopes foi o proferido por frei Pedro, da ordem de São Francisco, por ocasião do recebimento das bandeiras tomadas aos castelhanos na Batalha de Aljubarrota, pelos moradores de Lisboa. Tomemos um trecho curto, mais ou menos ao acaso, para exemplificarmos:
“E por em eu posso dizer a uos outros: Oo cidade de Lixboa e reyno de Portugall, que graças e louuores podyas dar ao teu Deus por taaes marauylhas e beneficios como este, que por muytos que fossem e em ellas multiplicasses, nom parecesses sseer jngrato? Certamente nom somos abastantes pera ello, por a multidom dos nossos pecados. Pois quem lhas dara por nos, se o humaanaes louuores disto nom ssom abastantes. Dem-lha os sseus ssantos; louuem-no os sseus angeos, e sseiam da hordem do poderyos, a que jsto maaes pertee(n)ce, dizendo em nome de uos todos: Oo Christo Jhesus, ymagem de Deus Padre, poderoso em virtudes e forte em-nas batalhas, muytas graças e louuores te damos que por a tua jnfijnda piedade quisseste oolhaar por os portugueeses o dya do seu gram trabalho, por lhe dar honra de vencimento contra a ssanha de seus cruees emmiijgos!”
Para terminarmos a nossa exposição sobre as fontes usadas por Lopes na elaboração da Crônica de D. João I, registremos que utilizou, além dos livros de chancelaria e documentos diplomáticos, também bulas papais, capítulos das cortes, cartas particulares e, de forma inédita, procedeu ao exame de epitáfios para comprovar os falecimentos em Aljubarrota.
Como já tivemos oportunidade de discorrer sobre os livros de chancelaria e os documentos diplomáticos, esclareceremos agora apenas o que eram as outras fontes anunciadas no parágrafo supra. As bulas, decretos pontifícios, eram muito comuns durante a Idade Média, pois os papas possuíam, até mesmo sobre os soberanos, uma certa autoridade, ao menos espiritual, apesar do Cisma. O uso mais comum das bulas, no que toca à realeza, dizia respeito à dispensa para o casamento entre parentes. A abundância desse tipo de instrumento deve-se a dois fatores usados com muita freqüência nessa época: os casamentos de parentes, até de primeiro grau, entre os familiares da realeza, por um lado, e o costume de considerar-se parente até mesmo aquelas pessoas ligadas pelo compadrio, de outro. E, justamente, o mais célebre exemplo que possuímos de bula papal na Crônica de D. João I, refere-se à dispensa deste rei para contrair matrimônio. Só que nesse caso a dispensa não dizia respeito a parentesco, mas por ser D. João, Mestre de Avis.
O caso foi polêmico por envolver um rei ainda não plenamente reconhecido, nem sequer pelos próprios habitantes de seu reino. Ocorreu que tão logo D. João I foi eleito rei de Portugal, foi feita uma suplicação ao papa Urbano VI, que o dispensasse para contrair matrimônio visto que, como mestre da ordem de Avis, havia feito voto de castidade. Os embaixadores portugueses tiveram muita dificuldade para conseguir a bula, pois, segundo Lopes, um inglês que estava na corte papal informou ao pontífice que o reino português pertencia a Dona Constança e, por conseqüência, ao Duque de Lancaster, seu marido. Ora, como a Inglaterra foi um dos sustentáculos do poder pontifício romano, era natural que o papa desejasse primeiro ver resolvida a disputa pelo trono português para depois expedir a sua Bula. O Duque, que veio a ser sogro de D. João I, tentando ajudar na resolução dessa questão, enviou uma carta ao papa esclarecendo que não estava de forma alguma disputando o trono mas, nesse ínterim, morreu Urbano VI e somente no pontificado seguinte, Bonifácio XIX assinou duas Bulas que, em resumo, davam a dispensa ao rei por estas palavras:
“...te absoluemos e liuramos de toda obrigaçom e legamento de uoto dobediençia, castidade e pobreza, e profissam e obseruamça regullar, em que aa dita hordem per quallquer modo theudo e obrigado fosses, posto que de guardar todos ou cada huum delles juramento fezesses: e jsso mesmo de toodo perjuizo e magoa dinfamya e jnhabilidade que por as ditas razoões ou outras alguumas teuesses.
E mais te legitimamos e restituimos a llegitimo naçimento e te habilitamos, despemsamdo contigo que, nom embargando as ditas cousas e o ffallymento de tua naçemça, semdo geerado do dito Rey dom Pedro e dhuma molher que per matrimonio nom era a el comjunta, posto que esse teu padre e madre cada huum fosse casado no tempo do comçebimento e naçemça.”
Essas bulas não devem ter sido publicadas por Lopes, na sua íntegra, unicamente por dispensarem o rei de seus votos. Na realidade, elas tiveram um significado muito maior, o reconhecimento pelo poder espiritual da legitimidade de D. João para reinar em Portugal e, conseqüentemente, o reconhecimento da própria independência portuguesa.
Outra fonte utilizada por Lopes foram os Capítulos das Cortes. Ele já se utilizara de artigos das Cortes de Elvas de 1361, para elaborar a Crônica de D. Pedro quando discriminou farto material que dizia respeito à grande tensão social em que estava mergulhado o reino, proveniente das disputas entre os partidários do falecido rei D. Afonso IV e de seu filho D. Pedro. Embora, com certeza, tenham sido abordadas muitas destas questões em Elvas, Lopes diz que delas “...não fazemos mais longo processo por não sabermos quanto prazeriam aos que as ouvissem...”. Todavia, é na Crônica de D. João que temos o mais significativo exemplo do uso de artigos de Cortes por Fernão Lopes, pois, ao narrar a eleição do Mestre de Avis para rei de Portugal, baseia-se nos artigos da Corte de Coimbra, realizada em 1385. Nesta assembléia,
“hum notavell barom, homem de perfeita autoridade, e comprido de sçiemçia, mui gramde leterado em lex, chamado doutor Joham das Regas, cuja sotilldade de clareza de bem fallar antre os leterados, oje em dia he theuda em conta”,
defendeu a eleição do Mestre de Avis. Este João das Regras, formado em Bolonha, escola pioneira na formação de legistas que buscavam no Direito Romano a fonte abalizada para a defesa do absolutismo real, não lhe desmereceu o prestígio nem as características. O seu papel nas Cortes poderia ser comparado ao de Nuno Álvares Pereira no campo de luta, pois se o último resguardou-lhe o reino com a sua espada invencível, João das Regras sustentou seus direitos à Coroa ? tão cobiçada por outros herdeiros ? garantindo-lhe a eleição. De fato, João das Regras, com muita habilidade, conseguiu demonstrar que D. João e D. Dinis, filhos de D. Pedro, não eram legítimos porque este rei nunca fora casado com Dona Inês de Castro. Além do mais ambos haviam tomado armas contra Portugal, quando reinava D. Fernando. Dona Beatriz, filha de D. Fernando, rainha de Castela, em virtude de seu casamento, também não era legítima porque sua mãe, Dona Leonor, apesar de ser considerada Rainha de Portugal, não poderia jamais ter se casado legalmente com D. Fernando uma vez que já era casada com João Lourenço da Cunha. Quanto ao rei castelhano, D. João, era descartado não porque João das Regras lhe negasse o parentesco ? primo co-irmão de D. Fernando ? mas porque esses laços eram muito frágeis. E o fato de ser casado com Dona Beatriz também não lhe autorizava a entrar na disputa do trono português uma vez que, como já havia demonstrado, D. Beatriz não era filha legítima. Mais correto, portanto, pelos argumentos de João das Regras, era eleger o Mestre de Avis, filho de D. Pedro, que, embora bastardo, reunia as qualidades próprias de um rei: linhagem real, grande coração, amor aos súditos, bondade, devoção e ordenador discreto das coisas necessárias para a defesa do reino.
Por que omitiu Lopes grande parte das decisões das Cortes de Elvas, dedicou tão reduzido espaço às medidas administrativas de D. João I, em virtude de resoluções de Cortes, conforme se viu na nota de rodapé acima referenciada e, por outro lado, discorreu tão largamente sobre as Cortes de Coimbra, que elegeram o Mestre, rei de Portugal?
Tudo indica que não houve da parte do cronista nenhuma intenção de esconder a verdade. Como citamos acima, Lopes sabia mais ou menos que não interessava muito aos leitores de crônicas, o conhecimento de medidas administrativas tomadas pelas Cortes. Descreve-as somente porque “alguuns queram saber que cousas pediram os poboos em ellas a huum senhor que nouamente emlegiam por el-rey”. Interessava muito mais ao leitor medieval o drama histórico:
“Ora, drama, houve-o nas cortes de Coimbra de 1385, que Fernão Lopes largamente contou, pois aí se lutou tenaz e inteligentemente por aclamar rei o mestre de Aviz; não o houve nas cortes de Elvas, onde o rei simplesmente ouviu muitas e despachou certas das reclamações dos estados, consoante o direito e costumes do tempo.”
Outra fonte importante, largamente utilizada por Lopes, foram as cartas. Essas eram abundantes na Idade Média, pelo fato de não se contar naquele período com meios de comunicação mais eficientes e rápidos do que elas. As cartas eram utilizadas para os mais diversos tipos de mensagens: prestavam-se tanto para a simples transmissão de notícias familiares, como serviam para as convocações militares, transações comerciais ou complicados negócios de Estado. Às vezes eram revestidas de absoluto sigilo, outras eram lidas em público para que a população tomasse conhecimento de seu teor.
Russell, comparando uma carta escrita por Gonçalo Domingues, cônego de Lisboa, ao Abade de Alcobaça, Frei João de Ornelas, com o contido no capítulo IV, da segunda parte da Crônica de D. João I, não teve dúvidas em concluir que a correspondência privada era uma das fontes utilizadas por Lopes, embora, em virtude do desaparecimento da maioria desse tipo de documento, não poder precisar que peso tiveram no conjunto da obra de Lopes.
De qualquer forma, a menção ao uso de cartas, inclusive a transcrição de algumas delas, é uma constante nas crônicas de Lopes. Tomemos alguns exemplos paradigmáticos para demonstrarmos a importância desse tipo de documentação usada por Lopes, não nos restringindo apenas à Crônica de D. João I, conforme sugere o subtítulo, mas mencionando também alguns contidos nas Crônicas de D. Pedro e D. Fernando, para que não fique a idéia de que nestas últimas não tenham sido usadas cartas. Vejamos, inicialmente, um exemplo relacionado com os negócios de Estado: mal havia morrido D. Fernando, o rei de Castela já tomava a iniciativa de enviar cartas à sua sogra, a rainha Dona Leonor, e à nobreza portuguesa, expressando as suas intenções relativas à sucessão ao trono, então vago. Afonso Lopes Texeda, designado embaixador pelo rei castelhano para tratar deste assunto,
“...chegou a Lixboa e deu suas cartas aa rrainha e aaquelles que viinham: nas quaaes era contheudo que bem sabiam como a rrainha dona Beatriz sua molher, filha d'el-rrei dom Fernando, era herdeira do rregno de Portugall, pois seu padre era finado sem leixando outro legitimo filho que de dereito ouvesse d'erdar...”
Um outro exemplo é o representado por cartas que se prestavam para as tão freqüentes convocações militares que se faziam na Península Ibérica. Em junho de 1398, o Conde Nuno Álvares Pereira decidiu invadir Castela e, para tanto,
“...escreueo ao Meestre de Santiago, dom Mem Rodrjgues de Vasconcellos, e a dom Lourenço Esteueenz de Goyos, tente da hordem do Esprital que depois foy Priol, e jsso mesmo ao Almyrante e a todos os capitaes dantre Tejo e Odiana e do reino do Algarue e da Estremadura, como por seruyço del'Rey entemdya demtrar em Castella, nam dizemdo porem donde nem contra qual parte; e que lhe rogaua que vyessem pera elle com sua gentes pera serem seus companheiros na obra que hordenada tinha de fazer.”
Além desses, supracitados, temos também exemplos de cartas através das quais se concediam privilégios à nobreza e a algumas localidades. A mais significativa dessas “cartas de doação”, em nosso entendimento, é a que D. João I deu à Lisboa: após um longo preâmbulo usual, o rei atesta que:
“De nossa própria liberdade e liure vomtade e de nosso poder absoluto lhe DAMOS e outorgamos e aprouamos (e) comfirmamos todollos priuillegios, liberdades, boons hussos, foros e costumes que ata aquy ouueram per os reis que amte nos forom e de que vssarom sem seu contradizimento:
Outrosy lhes outorgamos e damos as graças e mercees, doaçoões e liberdades e priuillegios em os capitollos jusso scpritos conthedos, per elles pedidos (...) E prometemos e juramos de as guardar e manter e de nunca hir contra ellas em parte nem em todo (...); e em testemunho desto lhe mandamos dar esta nossa carta...”
Por fim queremos enfatizar a existência de casos em que, até mesmo para desafiar os adversários, os encarregados de transmitir as mensagens levavam consigo documentos escritos que serviram, evidentemente, para que Lopes reconstituísse alguns diálogos. É o caso do desafio de Nuno Álvares Pereira ao Mestre de Santiago. Segundo o cronista, esse mestre da cavalaria castelhana, após ouvir o desafio feito verbalmente por um escudeiro do Condestável, recebeu dele uma carta, como fica evidenciado pelos seus dizeres: “Escudeiro, segundo vos dizees e por este escrito parece, o Comde ha gramde queixume de mym...”. E, quando o escudeiro voltou com a resposta, pôde-se constatar que ela também se tratava de mensagem escrita: “o Comde ouuyo tudo e visto o escrito que trazia, chamou o seu conselho...”.
Ficamos por aqui nos nossos comentários a respeito das fontes escritas, utilizadas por Lopes. Vejamos agora dois outros recursos utilizados por ele na elaboração de suas crônicas. O uso dos topoi, aparentes achados literários usados por nosso cronista e que representam o recurso a um repertório com raízes recuadas e com foros de autoridade expressa na fórmula e o resultado de suas observações pessoais, tanto quanto saibamos inéditas para um cronista medieval, ao menos no que toca aos túmulos, epitáfios e moedas por ele examinadas.

O USO DOS TOPOI NA OBRA DE LOPES

O uso dos topoi nas crônicas de Lopes é tão variado e freqüente que comportaria um capítulo à parte ao invés deste rápido parêntesis que estamos a fazer e que, por sua própria natureza, será reduzido a apenas alguns exemplos mais significativos. Na verdade, mostraremos três ou quatro casos perfeitamente enquadráveis na classificação elaborada por Ernest Robert Curtius sobre o assunto.
Já no início do prólogo da Crônica de D. Pedro I, aquilo que, numa leitura menos atenta, levar-nos-ia a imaginar que fosse uma confissão de modéstia do cronista, não passa de um topos:
“...é nossa intenção, neste prólogo falar, não como buscador de novas razões, por própria invenção achadas, mas como ajuntador, num breve molho, dos ditos de alguns que nos prouveram.”
E logo adiante, ao encerrar o capítulo em que trata “dalgumas coisas que el-rei Dom Pedro ordenou por bem de justiça e prol de seu povo”, usa novamente outro topos. Depois de enumerar uma série de atitudes do monarca em prol de seu povo, afirma que sobre elas: “não fazemos mais longo processo por não sabermos quanto prazeriam aos que as ouvissem”. Exemplos dessa natureza, encontrados com relativa facilidade nas crônicas de Lopes, constituem-se nos chamados topoi de modéstia: através deles o autor procura mostrar-se humilde diante do seu leitor, referindo-se às suas deficiências e à sua falta de preparo.
Outro topos utilizado com muita freqüência por Lopes é do tipo que Curtius denomina de Tópica Exordial, ou seja, a promessa, logo no início de um determinado capítulo, de seguir caminhos ainda não trilhados, de refutar antigas lendas e coisas desse gênero. Tomemos ao menos uma dessas projeções de intenção de Lopes, encontrada no prólogo da Crônica de D. João I:
“Se outros per ventuira em esta cronica buscam fremosura e novidade de pallavras, e nom a çertidom das estorias, desprazer lhe ha de nosso rrazoada, muito ligeiro a elles douvir, e nom sem gram trabalho a nos de hordenar.”
Também usado constantemente nas crônicas de Lopes, é o topos que leva ao elogio do soberano. Curtius resgata o seu uso desde a pax augusta, e estabelece as nuanças de sua trajetória até Chrétien de Troyes. Lopes utilizou-o, adaptando-o às expectativas de sua época, sempre quando teve a necessidade de passar ao leitor a imagem do soberano que a partir de determinado momento assumira o trono. De D. Pedro I diz que :
“...usou da justiça, de que a Deus mais apraz que cousa boa que o rei possa fazer... era gago... grande caçador e monteiro... era muito viandeiro, sem ser muito comedor mais que outro homem... foi grande criador de fidalgos... acrescentou muito nas contias dos fidalgos... era em dar muito ledo... dizendo que o dia que o rei não dava, não devia ser havido por rei... era ainda de bom desembargo... era galardoador dos serviços que lhe fizessem.. e nunca tolheu a nenhum cousa que lhe seu pai desse, mas matinha-a e acrescentava nela.”
D. Fernando era
“...mancebo vallente, ledo e namorado, amador de molheres... havia bem composto corpo e rrazoada altura, fremoso em parecer e muito vistoso, tall que estando acerca de muitos homees, posto que conhecido nom fosse. logo o julgariam por rei dos outros. Foi gram criador de fidallgos... era cavalgante e torneador, grande justador e lançador de tavollado; era muito braceiro... cortava muito com huua espada e rremessava bem a cavalo... amava justiça... muito liberall... grande agasalhador dos estrangeiros... fez muitas doações de terras aos fidallgos de seu rreino, tantas e muitas mais que nenhuu rrei que ant'elle fosse... amou muito seu poboo.”
Esses eram soberanos distantes e de outra dinastia. Ao abordar o fundador da casa reinante que em seus dias ocupava o trono e antes da exaltação de praxe a D. João I, Lopes utiliza-se daquilo que Curtius classifica como “os topoi do inexprimível”, ou seja, a acentuação, da parte do autor, de sua incapacidade de dominar o assunto. Não suficiente, na seqüência deste topos, começa logo o outro, de exaltação:
“Este grande e muy honrrado senhor, mais excellente dos reys que em Portugal reynaram, foy sempre fiel cathollico... muy deuoto da preçiossa Virgem... sua conuersaçam era de bramdos e homrosos costumes... non era sanhudo nem cruel, mas manso e benignamente castigaua... amballas virtudes que no rey deue dauer, saber, justiça e piedade, eram em el compridamente... seemdo graçiosso companheiro açerca dos senhores e fidalgos e benigno trautador do comuum poboo... homrou muyto e amou sua molher dhonesto e saão amor... esplamdeçeo em el a virtude da grandeza... todos reçebiam delle gramdes e assinadas merçees...”
Um tanto curiosamente, a rainha Dona Leonor Teles também foi exaltada por Fernão Lopes, mas deixaremos de anotar aqui os predicados a ela atribuídos por fazermos menção a eles, mais demoradamente, no capítulo sobre “As mulheres”. De qualquer forma, o que esperamos, é ter evidenciado que Lopes usou como muita freqüência os topoi, dos quais, até aqui, apenas tomamos alguns exemplos, não desconhecendo a existência de muitos outros, inclusive o chamado topos eclesiástico, que abordaremos no segundo capítulo deste trabalho.

INOVAÇÃO DOCUMENTAL

Lopes, na sua incessante tentativa de buscar a verdade, para relatar aos seus leitores, não se contentou apenas com o uso de documentos escritos. Inovou. Foi a Alcobaça, onde foram enterrados os corpos de Inês de Castro e de D. Pedro I, constatando que este rei, em vida,
“...mandou fazer um monumento de alva pedra, todo mui sotilmente obrado, pondo enlevada sobre a campa de cima a imageem dela com coroa na cabeça, como se fora rainha. E este monumento mandou pôr no Mosteiro de Alcobaça, não à entrada onde jazem os reis, mas dentro da igreja à mão direita, cerca da capela-mor.
Semelhavelmente mandou el-rei fazer outro tal monumento e tão bem obrado para si, e fê-lo pôr acerca do seu dela, para quando se acaecesse de morrer o deitarem nele.”
Fruto também de sua observação é a descrição das moedas que D. Pedro I mandou cunhar. Por certo Lopes dispôs dessas moedas, manuseou-as, comparou-as com as de seu tempo para poder retratá-las tão eficazmente. Vejamos como descreve uma pequena moeda chamada dobras, das quais eram necessárias cem para fazer-se um marco. Essas dobras,
“...de uma parte tinham quinas e da outra figura de homem com barbas nas faces e coroa na cabeça, assentado numa cadeira com uma espada na mão direita: e havia letras ao redor por latim que em linguagem diziam: ‘Pedro rei de Portugal e do Algarve’; e da outra parte ‘Deus, ajuda-me e faz-me excelente vencedor sobre meus inimigos’.”
Alguém, lendo esta descrição, pode deixar de fazer uma idéia de como era essa moeda? Claro que a descrição poderia ser muito mais detalhada: ele poderia, dirão os mais exigentes, colocar a espessura, o diâmetro e até mesmo o peso da moeda, parece-nos, todavia, que como a descreveu bastou para que qualquer leitor tivesse uma idéia clara de como ela era. Mas não estamos discutindo o mérito da descrição e sim as fontes utilizadas por Lopes na elaboração de suas crônicas. Para tanto, os dados que expusemos são mais que esclarecedores: Lopes examinou com muito cuidado as moedas correntes.
Mais surpreendente ainda do que a apreciação dos túmulos de Inês de Castro e de D. Pedro e do que o exame das moedas circulantes àquela época, foi a diligência de Lopes na conferência dos epitáfios daqueles que tombaram em Aljubarrota, para discriminar-lhes os nomes. Ao que nos parece, Lopes recorreu a esse método em virtude de contar com documentação contraditória, especialmente no que se refere ao número de mortes ocorridas nessa batalha. Árduo trabalho, merecedor de nosso respeito, sobretudo pelo que revela de intuição já “moderna” de metodologia de pesquisa histórica.
De fato, conforme pudemos ver, se na Crônica de D. Pedro Lopes deixou a desejar no que diz respeito à documentação utilizada, porque dispôs de poucas fontes, e se na de D. Fernando já pode contar com material considerável, na de D. João I, viu-se envolvido com tantos documentos e às vezes tão contraditórios, que precisou recorrer à pesquisa in loco, como mencionamos acima. Mas o uso tão intenso e criterioso de fontes faz com que levantemos uma outra questão, aliás já discutida por muitos autores: teria Lopes sido apenas um cronista ou já um historiador? Ou seja, o primeiro historiador português...

LOPES, UM HISTORIADOR?

Quer nos parecer que ao longo dos anos, isto é, na medida em que escrevia, Lopes aprimorava cada vez mais tanto o seu estilo quanto o seu método de pesquisa. Esse aperfeiçoamento do cronista, o uso criterioso das fontes, o empenho quase obsessivo na busca da verdade, a ordenação coerente dos acontecimentos, em suma, a utilização de uma metodologia de trabalho, foram, por certo, os motivos que levaram alguns historiógrafos a considerá-lo o primeiro historiador português.
De nossa parte, considerar Lopes um historiador não nos parece nenhum absurdo desde que se tenha sempre em mente a época em que viveu e os hábitos dos escritores daquele tempo. E vamos além, cremos que Lopes conseguiu, no final do século XV, realizar mais ou menos, aquilo que, por exemplo, um Jayme Cortesão, após quarenta anos de persistentes trabalhos de investigação, concluiu ser a atitude mais correta entre os historiadores: “que emitissem um juízo equilibrado entre a criação coletiva e das personalidades representativas”, e, se dissemos “mais ou menos” é porque, evidentemente, no conjunto de sua obra, o equilíbrio não é perfeito e nem poderia sê-lo, considerando-se os padrões então vigentes. Embora tenha procurado retratar a alma do povo, alongou-se mais em descrever a participação da nobreza no conjunto dos acontecimentos. De qualquer forma, “o seu critério de seleção e de crítica aproxima-o, surpreendentemente, da historiografia do século XIX”.
Considerá-lo, entretanto, simplesmente o primeiro historiador português, como fez, por exemplo Braamcamp Freire, é um postulado que, se não é incorreto, ao menos deve ser bem matizado. A história da humanidade tem nos mostrado que ninguém, em qualquer ramo científico, pode criar alguma coisa inteiramente inédita, sem nenhum precursor e Lopes não se constituiu em exceção. Ao que parece, o interesse pela história, em Portugal, manifestou-se muito cedo. Já na época de D. Dinis, pode-se perceber que foi muito estimulada. Quer dizer, pode-se argüir que houve em Portugal uma verdadeira escola de escritores que, ao longo dos séculos, foi se aperfeiçoando, até encontrar em Lopes o artífice mais brilhante. Isso porque “... em Lopes há alguma coisa mais do que o génio com que uma escola se distinguiu. Se não foi o primeiro cronista português, foi sem dúvida, o primeiro dos historiadores modernos”.
Como vemos, esta afirmação de Russell não somente endossa a de Braamcamp Freire, de que Lopes foi o primeiro historiador português, como também a amplia. Todavia, cremos ter deixado claro que foi o primeiro historiador português no sentido de que foi o ponto culminante, que coroou, aliás com muito sucesso, todo o trabalho que vinha se desenvolvendo até então em Portugal por uma verdadeira escola, na qual destacam-se o desconhecido autor da Crônica do Condestável e Christoforus, que Lopes parece ter elegido como o melhor de seus antecessores. Esta mesma opinião é partilhada por Salvador Dias Arnaut por entender que “numa época em que existiu um Doutor Cristóvão e um Martim Afonso de Melo e se pressentem tantos anónimos escritores, não pareceu necessário admitir que só Fernão Lopes pudesse ter escrito uma obra que aliás em nada aumenta a sua glória”.
Estamos inclinados a inferir que Lopes pode ser considerado um historiador, apesar das restrições colocadas. Entretanto, vamos acrescentar mais algumas ressalvas que lhe são feitas por Williams Entwistle, não por concordarmos que sejam significativas a ponto de alterar o nosso ponto de vista, mas justamente porque nos ensejam a oportunidade de contrapormo-nos à idéia a elas subjacentes de que ele não seria um historiador e nem sequer um homem erudito. Tais ressalvas dizem respeito especialmente a constatação de que Lopes não teria usado adequadamente os documentos e teria uma acentuada tendência de fazer “plurais de singulares”. Assim, é que os “gramdes vollumes de livros de desvairadas limguagees e terras...” que diz ter lido, não passariam de obras portuguesas, latinas e castelhanas que circulariam na época em Portugal. Lopes não teria lido sequer Froissart ou Pere del Punyalet que escreveram, segundo Entwistle, obras relevantes para o seu tempo. Quanto aos outros “plurais de singulares”, explica-nos o próprio Entwistle que Lopes, ao usar “uns” ou “alguns”, estaria apenas referindo-se a Ayala e seus leitores e não a outros cronistas. No que toca aos documentos, Entwistle entende que apesar de tê-los usado, Lopes não chegou a torná-los a base de seu trabalho, bem como censura o fato de não ter estudado o campo de batalha de Aljubarrota nem ter verificado os sítios de Trancoso ou Valverde, ao menos para a mesma conferência que fizera em Alcobaça, para discriminar os mortos de Aljubarrota.
Ora, no que diz respeito a esta última afirmação, quer nos parecer que Entwistle extrapolou em muito o nível de exigência, pois o uso de fontes documentais como base de um trabalho é uma exigência que se deve fazer a um historiador atual, não a um cronista-historiador. Por outro lado, não compreendemos como Froissart ou Punyalet deveriam ser leituras indispensáveis a Lopes. Acreditamos ser mais interessante apreciar Lopes pelo que fez do que pelo que poderia ter feito. Ademais, tomando por base as crônicas de D. Pedro, D. Fernando e D. João I, podemos afirmar que Lopes era um homem culto. Segundo Rodrigues Lapa, conhecia Aristóteles, Túlio, Ovídio e Petrarca. Antonio Borges Coelho acrescenta-lhe o conhecimento de Cícero, Sêneca, Beda, Eusébio, Santo Agostinho e repete Aristóteles, também mencionado por Lapa. Vários destes autores aparecem citados literalmente ao longo das crônicas escritas por Lopes - Santo Agostinho, do qual menciona a Cidade de Deus, Aristóteles, a quem chama de “claro lume de filosofia”, Túlio, que é o mesmo Cícero, citado por Borges Coelho [Marco Túlio Cícero] e Beda - os demais foram identificados através das idéias dos autores mencionados ou por passagens citadas. Com certeza Lopes conheceu também as aventuras do Graal, chegando mesmo a comparar cavaleiros portugueses com os heróis lendários. Como cronista, não deve ter deixado de ler, quantos pode, os trabalhos de seus colegas de profissão, destacadamente o espanhol Ayala e o português Christoforus, dos quais, inclusive, copiou bons trechos, como já temos visto. E, finalmente, como cristão, que indubitavelmente era, Lopes devia conhecer ao menos algumas das muitas vidas de santos que circulavam na época e, com certeza, conhecia muito bem a Bíblia, usando-a com freqüência, inclusive para fazer comparações. Em conclusão, podemos afirmar, não sem boa dose de ironia, que Lopes, a tal ponto pode ser considerado um historiador, que mereceria mesmo ser criticado, do ponto de vista da historiografia contemporânea, por enaltecer os vencedores. Afinal, Antonio Saraiva não está totalmente desprovido de razão ao afirmar que:
“aquilo que conhecemos da obra de Fernão Lopes não é com efeito mais do que a história e justificação da revolução portuguesa do final do século XIV segundo o ponto de vista dos seus vencedores.”

3. FERNÃO LOPES E OS OUTROS CRONISTAS DO PERÍODO

Quer nos parecer, portanto, que não seria a leitura de mais um ou dois cronistas, seus contemporâneos ou não, que alteraria a competência de Lopes na abordagem de determinados assuntos. Sabemos que os cronistas tinham estilo e perspectivas diferentes acerca de uma mesma questão, o que não desqualifica Lopes em relação a Froissart. Lopes tinha o seu estilo próprio, original, insuperável. Froissart, que viveu entre 1337 a 1410, legou, sem dúvida uma bela obra, no entanto, é grande a diferença que os separa.
“Ao passo que um segue o seu mito cavalheiresco com ausência total de espírito crítico e passa ao papel as vagas recordações dos veteranos das campanhas peninsulares, o outro labuta através de documentos apodrecidos, examina meticulosamente o campo de Aljubarrota, decifra penosamente os epitáfios desvanecidos dos túmulos de Alcobaça. Embora quási contemporâneos, um pertence ao crepúsculo da Idade-Média; o outro parece já anunciar a chegada dos sábios e humanistas do Renascimento.”
A única possibilidade de influência que poderia existir, caso Lopes conhecesse a obra de Froissart, seria a de que, copiando-o largamente, o seu estilo poderia sofrer alguma alteração. Esta dedução a fazemos porque, ao menos, foi assim quando Lopes copiou Ayala e Christoforus. Se tomarmos, por exemplo, a Crônica de D. Pedro e compararmos as partes que foram copiadas de Ayala com as narrativas bélicas das Crônicas de D. Fernando e D. João I, denotaremos um estilo mais seco, em virtude da influência sofrida. Se nos valermos da Crônica de D. João I, verificaremos que, quando copia Christoforus, principalmente no que tange às atividades militares, o seu estilo mostra-se mais técnico. Isto não quer dizer que ao copiar alguns autores, Lopes tenha incorporado totalmente os seus diferentes estilos e muito menos as suas concepções, o que, se assim fosse, não teria redundado apenas em perda e ele teria obtido, por certo, uma perspicácia maior, que lhe permitiria analisar com mais profundidade os acontecimentos políticos e militares.
Mas como já afirmamos, Lopes tem o seu estilo próprio e que se manifesta especialmente original, inigualável, ao introduzir o povo em sua obra. Mais que em qualquer outro aspecto, quer seja de ordem militar, religiosa, política ou comercial, que se possa imaginar, é neste ponto, ao falar do povo e fazer o povo falar, que Lopes se encontra, projeta-se, supera-se como cronista para transformar-se no primeiro grande historiador português. E, ao contrário dos cronistas franceses e flamengos, que não compreenderam os movimentos sociais que narraram, confundindo-os com arruaças de malfeitores, “a grande superioridade de Fernão Lopes como historiador é esta: o ter compreendido os acontecimentos, porque se identificou com a força transformadora”.
É claro que não lhe faltaram críticos detratores, alguns, por sinal, muito severos. Moraes Sarmento, por exemplo, numa obra de seiscentas páginas intitulada D. Pedro I e sua época, foi um dos que procurou passar uma imagem negativa de Lopes, tentando demonstrar que o cronista procurou infamar a memória de D. Pedro, influenciado pelo clero que não tinha aquele rei em boa conta, especialmente pela sua tumultuada vida conjugal. Moraes Sarmento, entretanto, encontrou um defensor de Lopes que respondeu à altura a todas as suas críticas, pois Gonçalves Cerejeira, usando apenas um décimo das páginas utilizadas por Sarmento, sessenta ao todo, conseguiu, embora ressaltando que nem tudo o que se encontra na crônica de D. Pedro seja a pura expressão da verdade histórica, restituir a autoridade ao cronista, se é que porventura Sarmento a tivesse abalado.
O Conde de Vila Franca também foi bastante duro com Lopes. Acusou-o de esconder a verdade e chamou-o de “arteiro”. Todavia, em seu trabalho, D. João I e a Aliança Inglesa, tivemos a paciência de contar e constatamos nada mais nada menos que cento e trinta e oito citações do cronista. Ora, esta obra de Vila Franca tem trezentas e duas páginas, o que significa que praticamente em cada duas páginas há uma referência a Lopes. Ninguém perderia tanto tempo com um autor que não merecesse respeito. E as referências a Lopes não se restringem a Vila Franca, visto que
“... a importância dos seus depoimentos pode ser medida pelo vasto número de citações da Crónica que se pode encontrar em qualquer estudo sério de História Medieval Portuguesa, tal a riqueza dos elementos que fornece, e a sinceridade e fidelidade de que se reveste a narração dos acontecimentos.”
Sinceridade e fidelidade. Sincero, Lopes jamais atribuiu a si o que não fez. Embora em seu tempo não fosse usual a citação das fontes utilizadas Lopes sempre procurou, a seu modo, deixar claro quando algo não era de sua autoria. Dizem uns, afirmam alguns, são expressões muito utilizadas por ele, mas é no prólogo da Crônica de D. Pedro I, onde define o que entende por Justiça, que nos deixa bem à mostra o seu espírito sincero:
“...é nossa intenção neste prólogo, muuito curtamente falar, não como buscador de novas razões achadas, mas como ajuntador, num breve molho, dos ditos de alguns que nos prouveram.”
Fiel, Lopes, quando os utilizou, copiou quase literalmente os seus predecessores, possibilitando aos pesquisadores a identificação de forma relativamente fácil dos autores transcritos. E tamanha é a sua fidelidade às fontes que “...é a Fernão Lopes que temos de recorrer se quisermos descobrir o teor de alguns dos mais importantes documentos das chancelarias desaparecidas”.
Mas não se resumem à fidelidade e à sinceridade as virtudes de Lopes, elas são muitas. Tomemos mais uma, muito importante para a prática do historiador e que se constituiu numa das preocupações mais obstinadas de Lopes: a busca da verdade. Qualquer historiador que se debruce sobre a obra de Lopes constata inevitavelmente a disposição do cronista em escrever a verdade. Para tanto, contrapõe opiniões e, com freqüência, recrimina severamente aqueles que, na sua opinião, escreveram coisas inverídicas. São comuns, ao longo de sua obra, expressões do tipo: “leixadas todallas openioões e ditos d'estoriadores que a esto contradizem” ou “mas tall scpriuer foy bulra composta pera emganar os que nom sabem”, ou ainda, “o cronjsta ha de seer muyto çerto em seu razoar”, como também, “pois que o discpreto emtendimento deseia saber a uerdade de todo” e “a uerdade, que errar nom pode”. Todavia, a mais bela frase usada por Lopes para demonstrar o seu amor à verdade está contida num desabafo que faz ao contestar os que escreveram “erradas estoryas” a respeito de uma campanha de Nuno Álvares:
“Porém tam maa e tam errada opnyom, defamador de sseus boons e leaaes vasallos, com os geolhos em terra peça perdom aa verdade...”
A expressão mostra toda a força da indignação de Lopes e sugere um ato de profunda submissão, como se a verdade fosse uma deusa e os difamadores pecadores. Por outro lado, obviamente, sem levarmos em conta que Nuno Álvares foi o seu herói preferido, Lopes demonstra todo o seu respeito à verdade. Não é o caso de discutirmos aqui o que é a verdade, mas precisamos deixar claro que o amor dedicado por Lopes à verdade era sincero, todavia, à sua verdade. Como bem observou Entwistle: “Desejava honestamente escrever a verdade: mas como bom patriota, acreditava que era verdade aquilo que era mais favorável à sua pátria”.

4. O VÍNCULO EMPREGATÍCIO DE LOPES

Além desta questão, que deixamos em suspenso no fecho do item anteriormente abordado, que faz parte do substrato de Lopes e que abordaremos mais adiante, temos a considerar uma outra, que pode levar os homens a se despojarem de seus princípios, o que eventualmente poderia ter ocorrido com ele. Trata-se do seu vínculo empregatício com a coroa.
Já tivemos a oportunidade de referir que Lopes era assalariado régio e que inclusive, em 1434, D. Duarte destinara-lhe a importância de catorze mil reais para realizar o seu trabalho. Este vínculo levou Antonio Brásio a dizer que Lopes foi um “cronista palaciano, oficial, a soldo do Estado e, portanto, de certo modo, comprometido.” Uma definição concisa, clara e ponderada, amplamente aceita. Ninguém poderá negar que Lopes tenha sido um cronista palaciano, muito embora outros escritores do gênero tenham sido mais assíduos freqüentadores das cortes. Muito menos podemos negar um certo comprometimento de Lopes com o poder, justamente em virtude de ser um cronista oficial, mas julgamos ter sido muito feliz a expressão de Brásio de que comprometido Lopes o era “de certo modo”. Com efeito, apesar de ter ocupado tantos e por muitos anos cargos oficiais, Lopes não pode ser considerado um bajulador, pois ressaltar as qualidades dos reis era inevitável para qualquer homem seu contemporâneo, consciente da realidade medieva, fato que ele, ao que tudo indica, compreendia bem. Por isto não deixou de tecer elogios às boas qualidades dos reis, amas, por outro lado, não se furtou de censurá-los quando, em seu entender, excediam às suas prerrogativas.
Realçar as qualidades dos reis bem que poderia ter sido a fórmula encontrada por Lopes para a abertura de um largo caminho por onde pudessem transitar livremente as suas opiniões, sem correr riscos de censura, o que significaria, indubitavelmente, a perda de suas regalias. Pode-se então inferir que Lopes viveu uma delicada situação, pois de um lado era premido pelas circunstâncias e precisava enaltecer as realizações dos soberanos, principalmente dos portugueses e, de outro, havia de sua parte, um compromisso muito forte com a verdade, o que o obrigava a ser imparcial. Oliveira Marques parece ter entendido bem isto que representa ser contraditório em Lopes, assinalando que
“...Fernão Lopes, porém, ainda um homem 'medieval', combinou o inevitável louvor aos vencedores com um relato franco dos acontecimentos e dos seres humanos, que o tornou espontaneamente 'moderno' e científico.”
De fato, a maior preocupação dos cronistas medievais eram as atividades reais e os feitos cavaleirescos, destacando-se, dentre eles, as realizações individuais dos fidalgos. Lopes, um homem medieval, como temos frisado, não fugiu à regra, todavia, foi muito além do comum: introduziu a arraia meuda, os tripas ao sol, em suas narrativas. E a introdução do coletivo é realmente espetacular. Mostra o povo participando, envolvendo-se, extravasando a sua raiva ou rezando fervorosamente para obter ou para agradecer uma graça, inclusive no caso das freqüentes campanhas militares empreendidas pela nobreza.
O que quer dizer que Lopes não escreveu apenas sobre os reis antigos, não fez somente a apologia da nobreza cavaleiresca, foi o “cronista de uma causa nacional e patriótica que triunfou”, portanto, em sua obra entram os mais diferentes segmentos da sociedade medieval portuguesa, embora em proporções diferentes, evidentemente. A forma como Lopes viu essa sociedade, em resumo, é o que pretendemos ver a seguir.

5. LOPES E A SUA CONCEPÇÃO DA HISTÓRIA

Segundo Lopes, para escrever a história, era necessário que se escrevesse a verdade. Lopes, como temos visto, foi um grande devoto da verdade. Ele nos deixou clara esta sua preocupação com muita freqüência e nos mostrou o caminho, o método que utilizou para chegar à verdade ao afirmar que:
“... o cronjsta ha de seer muyto çerto em seu razoar, e por em antigamente nenhu m era ousado descpreuer estoria, saluo aquell que visse as cousas ou delllas ouuve comprido conheçimento; porque a estoria ha de seer luz da uerdade e testemunho dos antigos tempos. E nos, posto que as nom vissemos, de muyto reuoluer de liuros com gram trabalho e deligemçia ajuntamos as mais chegadas aa razom, e em que os mais dos autores pella moor parte comsentem.”
Na maneira de entender de Lopes, para escrever a verdade, o historiador deveria ter “comprido conheçimento” dos fatos, ou seja, tê-los assistido, testemunhado ou ouvido diversos depoimentos de participantes de uma cadeia de eventos. Lopes não possuía a percepção de que cada um tinha, e tem ainda hoje, uma maneira diferente de compreender o mundo e, conseqüentemente, os acontecimentos, e que, a verdade, neste sentido, é limitada. Por não vivenciar aquilo que escreveu, Lopes acabou inovando: foi buscar a verdade nos documentos. Muito embora isto em si não queira dizer que tudo o que escreveu fosse realmente verdadeiro, nos demonstra a sua preocupação, a sua maneira de ver as coisas e é isto que nos interessa por ora.
Mas Lopes tinha consciência de que somente a utilização de documentos não era tudo de que necessitava para escrever a história verdadeira. Ele procurou ser imparcial, ver os dois lados da moeda, enfim, ter uma visão global da realidade a ser descrita.
“E nós, porque dissemos deste rei Dom Pedro que era grado e ledo em dar e não dissemos de algumas grandezas que dignas sejam de tanto louvor, poderá ser que nos prasmarão alguns, dizendo que não historiamos direitamente.”
Quer dizer, o historiador não deve relatar apenas os acontecimentos que destaquem os defeitos ou as qualidades de uma personagem, mas oferecer aos leitores uma visão geral destas duas faces. O historiador nunca pode falar vagamente sobre os acontecimentos, especialmente se isso o levar a desviar-se da verdade ou “moormente quando per seu escrever fica maa fama d'alg uas pessoas”. Os padrões de comportamento moral de Lopes não lhe permitiam, portanto, utilizar-se da história para difamar as pessoas, fossem elas amigas ou adversárias. E mais, os fatos deviam ser apurados com rigor, desprezando-se todos aqueles que não houvessem sido tirados de “autentica scriptura”.
Além disso, no dizer do próprio Lopes, a história, para ser facilmente compreendida e lembrada, deve ser muito bem ordenada, apesar de que às vezes os acontecimentos, ocorrendo concomitantemente, obrigam o historiador a abandonar a cronologia rígida para dar realce ao enredo. Num emaranhado em que
“... elRei de Castela vem pera emtrar em Portugal; Nuno Allvarez outro ssi veemsse a Lixboa; desi o castello da çidade trabalhasse o Meestre com ho poboo de o tomar ; alçamsse villas comtra os alcaides dos castellos pello rregno; levamtãsse huniões dhu s comtra os outros; ffazemsse outras muitas cousas em hu a sazom, de guisa que h as torvam as outras, a sse nom poderem comtar nos dias que acomteçerom.”
Lopes não teve dúvidas, optou pelo enredo, como supra dissemos.
Mas é no prólogo de sua crônica de D. João I, que Lopes nos oferece, com muita clareza, sua maneira de escrever a história. Inicialmente, coloca uma questão que leva aqueles que se propõem a narrar alguma coisa a se desviarem do verdadeiro sentido da história, que é a verdade: a afeição pela terra onde nasceu e se criou o escritor, e os vínculos deste com o Senhor que lhe proporciona a subsistência para que escreva sobre os seus feitos ou os de seus antepassados. Com referência à terra de nascimento é até certo ponto compreensível que os homens tenham por ela algum sentimento de afeição em virtude do apego que a convivência diária, desde o nascimento, provoca nas pessoas, o que as leva a exagerar os louvores ou minimizar os seus defeitos, conforme o caso. No que diz respeito à afeição para com aqueles que lhes concedem meios de subsistência, também é compreensível a benevolência dos escritores. Mas, apesar disso, Lopes censura os que procedem dessa maneira e se propõem a seguir rumos diferentes. Isso fica patente quando afirma que:
“Nos certamente levamdo outro modo, posto adeparte toda afeiçom, que por aazo das ditas rrazoões aver podiamos, nosso desejo foi em esta obra escprever verdade, sem outra mestura, leixando nos boons aqueeçimentos todo fimgido louvor, e nuamente mostrar ao poboo, quaaes quer comtrairas cousas, da guisa que avehero.”
Somente em uma hipótese Lopes deixaria de escrever a verdade: se a fonte da qual retirou a informação fosse falsa. Mas isto, segundo ele, é errar involuntariamente e não mentir. De qualquer forma, consciente deste perigo, que é a utilização de fontes falsas, Lopes precaveu-se e, para não incorrer nesse erro, examinou e confrontou, com muito cuidado e diligência, livros e escrituras as mais variadas.
Não há porque duvidar de Lopes, pois, afinal, praticamente toda a sua vida foi dedicada a esta muitas vezes mal compreendida tarefa. Não temos dúvida de que ele realmente procurou ser imparcial e escrever a verdade, mas ele próprio sabia que não era fácil tal tarefa. Ao encontrar dificuldade para discriminar os nomes dos fidalgos que ajudaram o Mestre de Avis na defesa do reino, Lopes parece indignar-se com os escritores antigos que negligenciaram o fato, porque tinha consciência de que passados alguns anos, tais nomes tornar-se-iam irrecuperáveis:
“Quem querees vos que tire ja agora descoridom de tamtos anos os nomes daquelles que outras testimunhas nom tem, salvo esqueeçimento e ciimza, que aadur pode seer achada? Quem cuidaaes que se nom emffade, rrevolver cartairos de podres escripturas, cuja velhiçe e desfazimento, nega o que homem queria saber? Quem achara tamtos bitafes amtiigos, que os muimentos em que são escpritos, dem testemunho de quem jaz em elles? Quem comtemtara voomtades alheas e tam desvairados juizos dos hom ens de guisa que a todos praza o que dizer queremos? Certamente he cousa impossibell.”
Este desabafo, apesar de deixar a impressão de que alguém reclamara com o cronista o esquecimento do nome de algum antepassado, demonstra a consciência de Lopes no manuseio das fontes. Ele sabia que devia vasculhar tudo o que tivesse ao seu alcance para retratar a verdade, parecia entender que a história se faz com documentos, não importando inclusive o tipo, mas compreendia que o passado não pode ser resgatado em sua totalidade.
E todo o trabalho na busca da verdadeira história tinha uma finalidade concreta e muito útil, segundo Lopes:
“...non por tall memoria dos mortaaes trazer comssigo algu sprituall proveito, mas por dar aazo aos que esto ouvirem, de seguir os boos e homrrosos feitos, per que os de seu linhagem gaanharom gramde e notavell fama.”
Quer dizer, para Lopes, que conhecia Cícero, não era difícil conceber que a história fosse uma espécie de “mestra da vida”. Conhecendo os exemplos dignificantes de seus antepassados, os coevos teriam um exemplo a seguir. Da história se esperava, portanto, exemplo moral, mas não somente isso, Lopes vai além:
“... nom ha cousa tam çerta n per que sse os hom es melhor avisem, daquello que aos autos cavalleirosos perteeçe, que esguardar nas obras, per que os amtiigos floreçerom, ou ouverom algu comtrairo; doutra guisa seemdo homem dellas inoramte, quasi çego he nas que ssom por viienr.”
Espelhar-se nos exemplos dos antigos, era o conselho de Lopes, pois ignorando-os não haveria nenhuma possibilidade de se vislumbrar o futuro. Basicamente, portanto, a história servia para lançar luz sobre os acontecimentos que estavam por vir. Não que o homem tivesse qualquer poder de interferir nestes acontecimentos, pois, para Lopes, havia uma lógica conduzindo a humanidade ao seu destino. Esta possibilidade de se “prever” o futuro, esta “lógica”, a que nos referimos, somente era concebível em virtude da existência de um plano divino preconcebido. A história da humanidade nada mais seria, portanto, que a realização do desígnio da providência divina. “Deus é providente e construtivo, tem um plano próprio, no qual não permite a interferência do homem”.
LOPES EM CONTRADIÇÃO COM O SEU TEMPO?

A partir das afirmações acima, concluímos que, se Lopes afastava-se da Idade Média por sua maneira de apurar a veracidade dos fatos, por seu método de pesquisa, pela sua posição nacionalista, por outro lado vemos que, ao menos no que diz respeito à sua concepção de história, não diferia das idéias dos escritores medievais em geral. Na realidade, o que Lopes ignorava é que para escrever a verdade não bastava apenas a coragem, que, aliás, não lhe faltou, de desvincular-se dos sentimentos de amor à terra e de afeição aos Senhores que patrocinavam os cronistas. Igualmente não imaginava ele que toda a sua formação cultural e religiosa, que o imaginário de sua época é que, na maioria das vezes, lhe oferecia a medida exata dos conceitos que emitia, e estava a acompanhá-lo em cada frase que escrevia, em cada posição que tomava. Por desconhecer a existência deste seu substrato, que o levava a ser como era e a escrever como escreveu, Lopes jamais se preocupou em esconder ou disfarçar suas convicções. De resto, nem havia motivo para que ele procedesse de forma contrária. Os exemplos, que possibilitam identificar Lopes com a concepção cristã de história, são abundantes em sua obra. Tomemos apenas um, por ora: O conde João Fernandes Andeiro devia ser morto por D. João porque “...o mui alto Senhor Deos, que em sua providência nenhu a cousa falleçe, que tinha desposto de o Meestre seer Rei, hordenou que o nom matasse outro senom ele...”
Por que o Andeiro devia ser morto? Por que pelas mãos do Mestre? Segundo Lopes, por obra de Deus, já vimos, mas ao ler essa afirmação, seus leitores deveriam deduzir que Deus tinha boas razões para assim proceder. Essas razões só podem estar numa espécie de castigo divino aplicado ao conde pelos seus amores clandestinos com a rainha Dona Leonor. Quanto ao fato de tê-lo sido pelas mãos do Mestre, fazia deste, segundo a vontade divina, melhor do que ninguém, merecedor da ascensão ao trono: vingador de seu meio irmão, o rei D. Fernando, surgia ele então como o restaurador da moral da corte. Enfim, a impressão que nos fica é a de que não passava pela cabeça de Lopes a possibilidade das pessoas agirem segundo a sua própria vontade: de nada adiantaria ao Andeiro não querer ser o amante da rainha, como também não seria possível ao Mestre pretender não se tornar o seu assassino. Essas decisões já haviam sido tomadas por desígnio superior, era, nada mais nada menos, o plano de Deus sendo executado; aos homens cabia a resignação a esta vontade. E apesar dessas considerações nos soarem de forma demasiadamente categórica, não temos como deixar de constatá-las, afinal nem sequer a questão do livre-arbítrio, tão cara ao tomismo, foi considerada por Lopes. Desconheceria ele, porventura, a obra de Tomás de Aquino? Desconhecendo-a diretamente, seria possível admitir que o pensamento tomista não lhe chegasse através dos padres da Igreja? Hipóteses realmente inquietantes, sobre as quais não temos muitas pistas, mas que, se as tivéssemos, serviriam apenas para nos comprovar se a opção de Lopes pela predestinação agostiniana se processou de forma consciente.
Afinal esta posição fica sempre muito clara, não se limitando à morte do Andeiro. A mão de Deus estava em toda a parte, nos mínimos detalhes da vida cotidiana. A Deus eram atribuídas as vitórias e as derrotas de guerra, Deus era o responsável pelo medo ou pela coragem dos combatentes. Deus, enfim, era quem dava rumo à história. Vejamos mais detalhadamente esses enunciados, através de mais alguns exemplos, sem o objetivo de acrescentar alguma informação nova, mas somente a título de reforço ao que vimos afirmando. Tomaremos por eixo a batalha de Aljubarrota, sem dúvida a mais importante dentre as que Lopes narrou.
Em agosto de 1385, após ter sido fragorosamente derrotado em Aljubarrota e com medo de se tornar prisioneiro, o rei castelhano fugiu apressadamente do local, sem mesmo esperar pelo resultado final da batalha. Ao chegar em Santarém, altas horas da noite, transfigurado pela dor do fracasso, pedia a Deus que lhe tirasse a vida e lastimava-se muito por ter sido um mau rei e um mau parceiro:
“Oo Deus, porque te prougue leixar hu m rey tam soo e tam desemparado de tantos e boons como hey perdidos! Viuyrey lastimado em todos meus dias, e mais me vallyrya a morte que a vida. Oo Senhor, porque me leixaste vemçer? e de quem! e sseerem moortos tantos e tam boons fidallgos? e a maão de quem! Bem posso dizer que em maa hora vijm a Portugal, pois que fiquey rey sem gente.”
O rei não considerou sua derrota em função da possibilidade do efetivo do inimigo ser maior ou menor, não fez nenhuma consideração a respeito do armamento utilizado pelas forças em confronto, não analisou nenhuma possível falha estratégica e nem sequer aventou a hipótese de erros de comando. Isso tudo pouco importava porque, afinal, o destino da batalha estava nas mãos de Deus. A questão, portanto, era saber por que era merecedor da derrota, por que Deus o havia abandonado. E derrotado por quem? pergunta o rei. Ora, isto quer dizer que se houvesse perdido para um rei de seu nível, a derrota seria melhor assimilada; todavia, perdeu para o Mestre de Avis, alguém que ele nem sequer reconhecia como rei. Tais perguntas ele dirigia, é bom enfatizar, a Deus e não aos seus comandantes. Em última análise, Deus tinha suas razões para dispor sobre os acontecimentos terrestres, como melhor entendesse, pouco significando se os mortais encontrassem ou não algum nexo nestas razões.
As lamentações do rei castelhano, por certo, constituem-se numa das muitas passagens em que Lopes reproduziu Ayala, o que nos enseja um rápido comentário a respeito. Em primeiro lugar, devemos considerar que Lopes concordou com o texto, caso contrário não o teria reproduzido. Depois, mesmo admitindo que Ayala, na sua versão original, tenha polido as lamúrias do rei castelhano para enquadrá-las em seu discurso narrativo, não há como negar que elas reproduzem o pensamento daquele monarca a respeito dos acontecimentos. Finalmente, acreditamos que se Ayala redigiu o texto como o fez, é porque acreditava também em seu teor. Conseqüentemente, somos levados a admitir que a concepção de Lopes, relativa à predestinação da história, não lhe era particular e muito menos original, ao contrário, constituía-se na regra geral.
Seguindo o mesmo raciocínio, tomemos agora o sermão proferido por frei Pedro, na catedral de Lisboa, na ocasião em que os seus moradores receberam de D. João, as bandeiras e pendões dos castelhanos vencidos em Aljubarrota, cujo título, “A Domino factum est istud et (est) mirabille in occullis (nostris)”, Lopes traduziu como “o muy alto Deus fez esta cousa e he marauilha amte os nossos olhos”, para sentirmos como um contemporâneo procurava explicar os acontecimentos, tendo por diretriz a vontade divina.
Lopes narra que, inicialmente, frei Pedro distinguiu milagre de maravilha, exemplificando, para clareza dos presentes, que não foram milagres, mas maravilhas o que os feiticeiros do faraó fizeram. Na seqüência, frei Pedro relatou maravilhas, feitas por Deus, que constam no Antigo Testamento. Josué venceu cinco reis, porque Deus enviou pedriscos sobre seus exércitos, e Gedeão, com trezentos homens, dizimou seus inimigos que eram numerosos como gafanhotos. E, finalmente, passa a narrar as maravilhas coevas, dizendo que Deus não somente as realizou como também fez com que alguns as profetizassem.
Descartando a hipótese de ter sido milagre, frei Pedro lembrou em seu sermão que quando o rei castelhano cercou Lisboa [1384], tendo a peste se alastrado pelo acampamento, era maravilha ver que somente morriam os castelhanos e nenhum português, embora os prisioneiros fossem colocados junto com os pestilentos para contaminarem-se. Em seguida, conta algumas passagens que, mesmo parecendo maravilhas, não o eram. Dois escudeiros, um castelhano e outro português, travaram luta entre si, considerando que teria razão naquela guerra que se travava entre Portugal e Castela, o reino cujo representante saísse vitorioso. O fato de Gomes Rodrigues, o representante português, ter matado seu adversário, poderia ser obra divina, mas poderia também ter sido mera coincidência. Também não pode ser considerado maravilha o fato de que cachopos [rapazes] tivessem aclamado como rei o Mestre de Avis, quando este se dirigia às Cortes de Coimbra de 1385, que o haveriam de eleger, posteriormente, rei de fato. “Isto podia ter sido ensinado”, diz frei Pedro. Nem mesmo as pombas brancas que voavam em torno da bandeira de D. João, antes da batalha de Aljubarrota, poderiam ser consideradas como sendo uma maravilha porque, segundo o pregador, isto “podia ser de costume”.
Rejeitando, além do milagre, também alguns outros acontecimentos, como os citados acima, como sendo maravilhas feitas por Deus, deve ter ficado fácil para o experimentado pregador convencer aos seus ouvintes de que os outros episódios que passaria a narrar teriam, desta vez, realmente, o caráter de maravilhas realizadas por Deus.
Não foi por acaso, portanto, segundo frei Pedro, que Frei João da Barroca, um emparedado que residia em Jerusalém, chegou a Portugal. Tratava-se, diz-nos Fernão Lopes, de um castelhano que vivia emparedado em Jerusalém e que teve uma revelação de que deveria ir ao porto de Jafa, onde encontraria uma nau que o levaria a Lisboa. Isso feito, chegou ele a Portugal e pediu que o levassem a uma pobre e pequena casa próxima ao mosteiro de São Francisco, e que o emparedassem aí, deixando-lhe apenas uma pequena abertura. Permanecendo ali encarcerado, frei João logo começou a ser tido como santo e muitos o iam visitar para pedir-lhe conselhos. Dentre os visitantes foi aconselhar-se com ele o Mestre de Avis,
“...pois a tall carrego quall lhe deziam que tomasse, nom soomente compria aver a ajuda das gemtes, mas as orações e prezes dos boos, e a ajuda de Deos e sua graça.”
E a ajuda de Deus, a maravilha, está na previsão do emparedado que lhe pediu que ficasse no reino, pois “a Deos prazia de ell seer rei e senhor delle, e seus filhos depos sua morte”.
Maravilha também foi considerado, por frei Pedro, o episódio em que Nuno Álvares Pereira, ao passar por Santarém, mandou “correger” a sua espada. O alfageme, após o trabalho, não lhe quis cobrar, dizendo-lhe que aceitaria o pagamento quando ele voltasse, como Conde de Ourem. Ocorreu posteriormente, quando Santarém se encontrava em posse dos portugueses, que D. João I, ordenasse a prisão do alfageme por suspeita de que era aliado dos castelhanos [setembro de 1385]. A mulher, vendo o marido preso e os seus bens tomados, lembrando-se do episódio da espada e aproveitando-se da presença de Nuno Álvares no local, já como conde de Ourem, foi até ele e pediu-lhe que intercedesse junto ao rei em favor de seu marido. Nuno Álvares, de fato, foi até o rei, relembrou-lhe a história e este mandou que o prisioneiro fosse solto e os seus bens restituídos. Estava confirmada a profecia e feito o pagamento.
Para não nos tornarmos enfadonhos com tantos exemplos, limitemo-nos a um último. Uma menina, filha de Esteves Eanes Dereado, com apenas oito meses de idade, teria se sentado por três vezes no berço e, erguendo a mão, teria dito “Portugall, Portugall, por el-rey dom Joham”. Isto, evidentemente, muito antes do Mestre ter sido eleito rei, embora não nos seja fornecida nenhuma pista da data exata desta proeza.
A HISTÓRIA ERA DETERMINADA POR DEUS

Engenhosamente esquematizado, o sermão de frei Pedro, induz os ouvintes a crer que nestes casos não houve milagre e que não se pode tomar qualquer fato interessante como sendo uma maravilha. Todavia, à medida em que descaracterizava estes fatos interessantes, coincidências casuais, enfatizava como verdadeiro e como maravilha praticada por Deus, a profecia feita por uma menina de apenas oito meses, de que D. João seria rei. Mas se tal profecia ocorreu ou não, a nós pouco importa; interessa-nos que através dela fica-nos muito bem caracterizada a intenção do autor do sermão e do próprio Lopes, que se não aceitasse o sermão como verdadeiro não o teria transcrito sem contestá-lo, em mostrar como conclusão de seus argumentos que “Certamente podemos dizer o que diz nosso tema que todas estas cousas obrou o Senhor Deus, e som marauilha amte os nossos olhos”.
E o pregador vai além. Se o rei castelhano não houvesse quebrado os tratos feitos por ocasião de seu casamento com Dona Beatriz, filha de D. Fernando, o Mestre de Avis sequer seria regedor do reino; portanto, de certa forma, o responsável, o instrumento, pela consecução da obra divina foi o próprio rei de Castela. Que Deus realizaria esta obra, aliás, já havia sido profetizado. Em um jantar por ele oferecido, o copeiro-mor da rainha de Castela, Vasco Martins de Melo, após perguntar insistentemente quem haveria de barrar o rei, seu senhor, de tomar Portugal, ouviu de um conselheiro que se fazia presente a resposta de que Deus o barraria.
“E assy foy de feito: que ueendo o muy alto Deus sua maa vontade e perverssa condyçom, naquell dia da gram batalha lhe tolheu a homra e o reyno, e deo-(o) a el-Rey nosso Senhor, que o bem mereçya per uirtudes e caualleyroso esforço: (a) qual cousa he marauilha ante os nossos olhos.”
Frei Pedro considerava que, numa batalha, pode se explicar pela razão o fato do vencedor ser o possuidor do maior número de combatentes e do melhor armamento, todavia, quando o vencedor fosse o mais fraco, então a vitória seria obra de Deus, maravilha. Em Aljubarrota, como os portugueses eram numericamente inferiores e muito mal armados “ca o que tynha cota nom tynha loudel, e o que tynha panceira nom tiynha bracellotes, e muytos delles com bacenetes sem caras” tem-se que admitir, segundo o autor, que a vitória não se deu “per humanal força mas per diuinal juizo, a que prougue de seer assy, e he gram marauilha ante os nossos olhos”.
Encerrando o seu sermão, frei Pedro eliminou qualquer possibilidade do homem ser agente da história porque, segundo ele, nem sequer houve qualquer inovação tática na batalha. Tudo aconteceu mesmo por obra de Deus, segundo se pode ver pela conclusão do seu raciocínio:
“Oo que marauylha tam grande, e que jujzo do muy alto Deus, que aqueel que com jinfijnda multidom de hoste cuydou de gastar a terra e tomar o reyno, que sseu nom era, fugyo assy del desonradamente que mais a pressa sseer nom podia: e os portugueeses cobrarom de sseus emmijgos tam honrosa fama e boa nomeada, qual muy longa velhiçe ja nunca tirara de memoria! Assy que, esguardadas todas estas cousas com saao e limpo emtemdimento, achares que todas ob(r)ou o nosso Deus, e ssom maraujlha ante os nossos olhos.”
Este Deus, sem dúvida alguma, misericordioso, que determina os rumos da história da humanidade, exige de seus protegidos alguma retribuição. E é ao próprio frei Pedro que recorremos para tomarmos um exemplo, porque foi ele que, um dia após o seu sermão na Catedral, participando de uma reunião da Câmara, alertou aos presentes sobre os perigos de não se louvar a Deus após uma vitória. Poderia advir aos ingratos, pesados castigos. Era preciso louvar ao Senhor com cantar novo e por isso as pessoas reunidas naquele dia, na Câmara, resolveram que todo ano, na semana da Assunção da Virgem se fizesse em Lisboa três procissões, uma no mosteiro da Trindade, outra no de São Francisco e a terceira em Santa Maria da Graça do mosteiro de Santo Agostinho. Nestes locais se deveria rezar, respectivamente, três, cinco e sete missas cantadas. Isso tudo porque foi graças ao “Senhor Deus e aa ssua preçiossa Madre”, com a mediação de São Vicente e São Jorge, a quem seriam também feitas homenagens anuais em seus respectivos dias, que os portugueses obtiveram a vitória sobre os seus inimigos.
Como vemos esse Frei Pedro também tinha a visão de que a história dependia da vontade de Deus. É até mesmo lamentável que nada saibamos sobre ele além de que era franciscano. Isso, aliás, não seria muito, nem sequer nos abriria a perspectiva de desenvolvermos algum tipo de raciocínio amparados na maneira de pensar desses frades. Os franciscanos, fruto de uma reforma religiosa pela qual passou a Igreja no século XII, tinham os olhos postos no passado, ao menos no que tange ao tempo ideal de Cristo e dos Apóstolos, mas em meados do século XIII apresentavam defecções, cismas e tantas controvérsias que não nos é possível enquadrá-los em alguma das várias facções da Ordem e, em conseqüência, ter uma idéia mais clara sobre o seu modo de pensar. De qualquer forma, estamos convictos de que se Lopes não concordasse com as suas idéias não as teria reproduzido e, para reforçarmos ainda mais este postulado, tendo ainda como eixo a batalha de Aljubarrota, vejamos a expectativa dos seus principais atores, do lado português.
Nas horas antecedentes ao embate, os comandantes portugueses estiveram entre os combatentes incentivando-os para a hora decisiva, não só porque era costume esse tipo de procedimento, como também porque temiam que os seus comandados se intimidassem ao avistarem as tropas castelhanas já em formação.
“...os castellaaos forom prestes de todo e sua batalha hordenada; a qual era tam grande e assy fremosa de ueer que os portugueses nom parecyam mays antelles que o lume dhuma pobre estrella ante a claridade da lua em seus perfeitos dyas.”
Nuno Álvares Pereira, a cavalo e tendo um escudo a defendê-lo de alguma eventual seta inimiga, andava de um lado para o outro orientando como deviam proceder no momento do choque com os castelhanos, e prevenindo-os de que todo o alarido que os inimigos provocariam seria passageiro e, finalmente, que
“fossem fortes e esforçados, auemdo gramde fé em Deus por cujo seruyço ally eram vijndos, defendendo justa querella por sseu reyno e por a Ssanta Egreia...”
Da mesma forma, o rei D. João I, após ter se confessado e recebido a comunhão e as bênçãos do arcebispo e colocado sobre o peito uma cruz vermelha, pedindo que os seus procedessem da mesma forma, passou a incentivá-los para a batalha. E, não bastando esses atos significativos em termos de crença religiosa, o seu discurso foi entremeado de citações a Deus e a Virgem, do qual destacamos:
“Amigos senhor(es), nom embargando que nossos emmygos venham a nos em muyto grande multidom como veedes (...) sseede fortes e nom temaaes nada, pois que ligeira cousa he ao Senhor Deus sojugar muytos em maãos de poucos...”
E até mesmo o arcebispo de Braga, muito bem armado, segundo Lopes, andava entre uns e outros, esforçando-os, absolvendo-os de seus pecados e dizendo-lhes que repetissem continuamente durante a batalha: “Et verbum caro factum est”, ao que os ignorantes soldados, nada entendendo, interpretavam como sendo: “muy caro feito he este”.
Brincadeiras à parte, devemos acrescentar ainda que Lopes copiou as três últimas passagens mencionadas de Christoforus, valendo, neste caso, o mesmo raciocínio já empregado: se Christoforus colocou essas palavras na boca desses personagens sem que eles as pronunciassem, fica claro que, ao menos, ele acreditava nos desígnios divinos; se eles, todavia, disseram-nas realmente, então todos acreditavam na interferência de Deus nos rumos da história. Esta é a nossa convicção, embora não descartemos a possibilidade de que o nome de Deus fosse utilizado por força do hábito.
Mas esta questão ficará para o próximo capítulo, onde, com certeza, será reforçada a idéia de que no período estudado acreditava-se que a Deus cabia o plano geral da história da humanidade. Por ora limitar-nos-emos a afirmar que Lopes não se constituiu em exceção, e no que diz respeito à concepção da história, foi um homem tipicamente medieval.

A ÍNFIMA PARTICIPAÇÃO DO DIABO

Mas não apenas ao homem era inadmissível qualquer interferência no plano divino. O próprio diabo, tão temido durante a Idade Média, paradoxalmente, desempenhou papel pouco significativo na história, do ponto de vista de Lopes. Em suas crônicas, das raras vezes em que aparece mencionado, a maior parte é por força de expressão: “daaeo ao demo”, “dou ao demo”, “venho do demo”, “daa-os ao demo”, “dou oge eu ao demo ty e a teu Rey e as mercees que me el ha de fazer”, “o demo lhe gradeçe”, “o demo lh’agradeça”. E, mesmo assim, como se depreende, dava-se ao demônio aquilo ou aqueles que se tinha em pouca valia. Em outras oportunidades, quando o diabo aparece interferindo nos acontecimentos cotidianos, pouco valor lhe é dado, pouco poder lhe é atribuído. Vejamos como
isso era apresentado, mas antes confirmemos que Lopes acreditava na existência de Satã.
No capítulo onde trata sobre a vinda de Frei João da Barroca ? o emparedado que aconselharia o Mestre de Avis a permanecer no Reino ? para Lisboa, Lopes, preparando os leitores para o futuro encontro, aproveita a oportunidade para fazer algumas reflexões sobre as maneiras como se davam as revelações. Vejamos como se refere ao demônio:
“As rrevellaçoões outrossi em sonhos som per cimquo modos, convem a saber: sonho, visom, oraçom, nom sonho, famtasma; e estes dous modos postumeiros algu as vezes veem per inchimento do estomago; outras per mimgua de viamda; outras por amor dalgu a pesssoa a que gram bem queremos; outras vezes per tram temor; outras per aazo de profumdo pemssamento dhumor menemcolico; e aas vezes per emgano de Sathanas que sse transfigura em Amgio de Luz; de guisa que a estes dous modos postumeiros, nenhu pode dar interpretaçom que çerta seja.” [grifo nosso]
Constatada a crença de Lopes na interferência do diabo na vida terrena, tomemos agora uma prova do que teria sido uma sua atuação efetiva. Foi o diabo, segundo os dizeres de Lisboa personalizada por nosso cronista, quem aconselhou alguns portugueses a abandonarem o Mestre de Avis, e a bandearem-se para o lado castelhano:
“...emduzidos de todo per spiritu da Sathanas, e maao comselho de falssos Portugueeses, poucos e poucos leixarom seu boõ proposito, tornamdo a fazer seus sacrificios, e adorar os idollos em que amte criiam...”
Quer dizer, os adversários é que eram guiados pelo Diabo! Jamais os partidários do Mestre. Prova é que quando Nuno Álvares, em sua campanha militar, propôs-se tomar o castelo de Neiva, ocorreu um fato que bem nos comprova essa afirmação. Saiu o Condestável com o seu exército da cidade do Porto, onde pernoitara, e seguia para o seu destino quando foi alcançado por seus auxiliares que lhe contaram a seguinte história: sua mula, que lhe carregava a cama, disparara, saíra da cidade pela mesma porta pela qual ele havia passado e caíra morta. Como interpretassem isso como um mal sinal, pediam-lhe que não prosseguisse. Nuno Álvares, entretanto, não lhes dando ouvidos, mandou que colocassem a sua cama em outra besta e que o seguissem. Assim foi feito, mas
“dizem que logo em esse dia aveo assy que açerca daquella porta, homde a azemella moreo, o spiritu malino tomou huum homeem, e fallou delle muytas cousas; amtre as quaaes disse que el matara aquella aazemella, cuidando que por a morte della o Comdestabre nom fosse mais adeante homde auia de fazer muytas e booas cousas, e que el tam gram fee leuaua comsigo que se nom tornou (por) nenhuuma cousa nem leixou de comtinuar seu camjnho; e que se repreemdia do que tinha feito, pois que mais nom aproveitara.”
Portanto, além de guiar os adversários para o lado castelhano que, mesmo com essa ajuda recebida, acabou sendo perdedor, pouca influência exercia o diabo. Muito menos, evidentemente, sobre o Condestável, cuja fé, como diz o cronista, era grande. Quer dizer, se Satanás teve alguma importância no desenrolar dos acontecimentos narrados por Lopes, foi justamente no sentido de servir como contraponto ao Bem, para demonstrar que contra a vontade de Deus, como veremos adiante, nada podia ser feito.